domingo, 26 de junho de 2011

NA FOGUEIRA DE SÃO JOÃO

Fazenda Sabonete - Madalena-CE


Fazia muito tempo que eu não passava um São João nos cafundós do sertão, assando milho nas brasas da fogueira, ouvindo os clássicos de Luiz Gonzaga, João Silva e Trio Nordestino. Este ano pude refazer essa trilha tão marcante em minha infância. Estive na fazenda Sabonete, imediações de São José da Macaóca, no município de Madalena-CE. Lá encontramos o Sr. Raimundo Policarpo, pai de minha companheira Juliana, sempre atencioso e prestativo, a nos ajudar nos preparativos da folia. Milho verde, baião de dois com queijo, costelas de carneiro e uma boa cerveja gelada faziam parte do cardápio improvisado. E, de quebra, Policarpo ainda recitou, de memória, trechos do folheto “O príncipe João Sem Medo e a Princesa da Ilha dos Diamantes”, de Francisco Sales Areda:

João Sem Medo foi um príncipe
Duma coragem sobrada –
Viajou por muitos bosques,
Lutou com coisa encantada
Brigou, desencantou reinos,
Sem nunca temer a nada.

(...)

Estava ali, contemplando
A beleza da paisagem
Ouvindo o vento embalar
Nas árvores, sobre a folhagem
Nisto chegou um gigante
E lhe falou com coragem:

- Quem és tu? De onde vens?
Perguntou-lhe o monstro preto,
Pisando aqui nesse bosque
Nada de bom lhe prometo
Pois quem passar nesta serra
Não tem perdão, eu derreto!

Bem no peito do gigante
Tinha uma caçoleta
Toda de ouro maciço
Em forma de borboleta
João meteu-lhe a espada
Que ela fez pirueta!

Quando a jóia caiu lá
Disse ele: - Eu me garanto,
E o gigante gritou
Berrando, num triste pranto
- Ah miserável infeliz!
Redobraste o meu encanto.

(...)


Sr. Policarpo


UMA TRAVESSURA JUNINA



Quando criança, eu passava essa data tão marcante na fazenda Ouro Preto, onde nasci, rodeado de irmãos, primos e outros companheiros de travessuras. Montar num cavalinho de tala de carnaúba, e passar correndo junto à fogueira, queimando as palhas da ponta da cauda do “cavalo” nas labaredas era uma brincadeira arriscada, mas muito divertida. O rádio velho da minha avó, sintonizado na Difusora Cristal de Quixeramobim dava o tom da alegria:

“Eu este ano vou fazer
Uma fogueira no quintal
Estou sozinho sem ninguém
Mas isso não faz mal...
São João mandou me avisar
Pra fazer a sua festa assim
Muita gente a lhe festejar
Com alegria do princípio ao fim
Eu vou fazer como ele mandou
Pra ser mais feliz no amor...”

(S. João no quintal – Trio Nordestino)
O São João da minha infância, em meados da década de 1970, era um momento marcante, esperado com grande ansiedade. No alpendre do Zé Miguel, nosso vizinho, os sanfoneiros Pedrinho e Vicente Araújo (filhos do Edmundo) entoavam marchinhas juninas, xotes e mazurcas para alegria dos casais. Chegaram mesmo a fazer uma quadrilha marcada pelo Beca do "véi" Zé de Sousa. Uma graça! Eu era tão pequeno que não pude participar da brincadeira, mas lembro bem das saias coloridas dando “rabanadas de fulô de amor” pertinho do rosto da meninada.

Minhas tias, as que ainda não haviam se casado, faziam advinhações com bacias d'água, faca na bananeira, aliança no copo d'água e outras mais. O objetivo de tais advinhações creio que é desnecessário registrar.
Na véspera de São João, logo cedo, vovô acionava seu fiel ajudante João “Lima” (Lima era o sobrenome de meu avô e as pessoas da redondeza chamavam o João desse jeito por ele ser considerado quase um membro da família). Pois bem, João era incumbido de cortar lenha verde e fazer duas cargas que eram transportadas em lombo de jumento até o terreiro da frente. No final da tarde, vovô arrumava a lenha cuidadosamente e fazia a fogueira. Meus primos Totonho, Oswaldo e Marquinhos, companheiros inseparáveis de travessura, tiveram uma idéia bombástica naquele ano de 1976... Botar cabaças verdes na fogueira para escutar o ‘papôco’ das bichas no meio das labaredas. Por detrás da casa grande, junto ao chiqueiro das criações, nasceu uma ramada espessa sobre um pé de mofumbo, carregadinha de cabaças de tamanho e formato variado. Vovô já tinha projetos para a safra da cabaceira. Com as maiores, ele pretendia fazer cuias e vasilhas de carregar água para o roçado. As menores, em formato de “marimba” seriam serradas no fundo e no bico e transformadas em funis para botar nas ancoretas que seguiam para o açude em lombo de jegue.
A ramagem da cabaceira, sobre a moita de mofumbo, mais perecia uma árvore de natal sobrecarregada de bolas e enfeites. Em pleno mês de junho, quando a ramagem já começava a ficar ‘zarolha’, aquele pé de planta carregado de cabaças e pontilhado de flores de mofumbo e melões de São Caetano era mesmo um espetáculo singular, de encher a vista. Vovô amava aquele conjunto, mais por sua beleza natural que pela sua utilidade prática...
Meus primos, sedentos por uma travessura, não pensaram duas vezes. Munidos de foices e facões atacaram o pé de cabaceira depois do meio dia, quando julgavam que o vovô dormia a sua siesta costumeira. Ledo engano... O velho tinha o ouvido apurado. Os golpes de foice na moita de mofumbo, associados com o alarido que o Marquinhos costumava fazer, logo chamaram a sua atenção. Vovô era esquentado, tinha pavio curto, embora tivesse um coração de manteiga. No momento da raiva, contudo, agia impetuosamente. Adivinhando o que se passava, saiu deslizando de mansinho pelo pé da cerca, por detrás do curral, e colheu o trio de peraltas em pleno flagrante. O chiqueirador (também chamado macaca de couro) chiou nas canelas da meninada. Totonho, o mais esperto, correu logo com um saco repleto de cabaças. Oswaldo fez o mesmo, mas o pobre do Marquinhos acabou pagando o pato. Eu me comprazia, não nego, da aflição dos meus companheiros de travessuras, pois haviam me deixado de fora da brincadeira e pretendiam espocar as cabaças sem a minha participação. Todo menino tem um pouco de sadismo nessas horas.
A noite, depois que as fogueiras foram acesas, o pipocar de cabaças no terreiro de meu tio Zé Oswaldo era um espetáculo à parte. Mesmo com as pernas encalombadas pela surra que levou, Marquinhos era o mais animado jogando cabaças verdes na fogueira de São João. Jamais esqueci daquelas cenas, até porque, no dia seguinte, fiz uns versinhos em sextilha narrando o episódio das cabaças. O folheto tinha um título bem sugestivo: “A grande surra dos tiradores da cabaça”. O saudoso pesquisador Ribamar Lopes, que não sabia do caso, mas que já ouvira falar desse texto, imaginava se tratar de um folheto de duplo sentido. Infelizmente não recordo de um trecho sequer desta obra pioneira...

Tudo isso passou numa velocidade assombrosa deixando somente retalhos de lembrança na memória dos antigos meninos do sertão. Hoje, em plena era do “forró de plástico”, haverá muito pouco o que recordar no futuro. Queimou-se tudo tão rápido quanto as fogueiras e os balões de papel seda que a moçada dos Três Irmãos costumava soltar nas noites juninas. Estrelas artificiais que rivalizavam em brilho com os astros do céu, mas que duravam tão pouco tempo...

Arievaldo Viana Lima


Yuri saboreando uma espiga de milho assado na beira da fogueira


Um comentário:

  1. Ao resgatar estas memórias da sua meminice, Arievaldo confirma o quanto ele conserva do sertão na própria alma. Peraltices daquele tempo era bem diferentes das de hoje. Longe dos brinquedos industriais e eletrônicos, as crianças do sertão desenvolviam uma criatividade a toda prova. Felicito ao poeta pela chance que deu ao filho Yúri, de ver uma noite de S. João tipicamente matuta, como se percebe pelo relato e as fotos publicados pelo poeta. O Policarpo é um velho camara, espírito boêmio, ótimo anfitrião e um sertanejo arretado. Tive oportunidade de conhecê-lo uma noite no Sabonete, e dele ouvir velhas cantigas...

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