sexta-feira, 1 de março de 2013

O DIPLOMA MAIS IMPORTANTE DA MINHA VIDA


Tinha eu 14 anos, quando meu pai me falou... parece música do Paulinho da Viola, mas a história é verdadeira. Meu pai Evaldo Lima achou que eu deveria fazer um curso de datilografia para tentar algum emprego, afinal de contas eu era o filho mais velho e já estava ficando um rapazinho. Na qualidade de pioneiro de uma numerosa prole deveria me qualificar para o mercado de trabalho. Fiz o curso de datilografia numa velha máquina Olivetti, com o professor Armando Uchoa, na Avenida José Otoni Magalhães, próximo a Praça 4 de outubro, em Canindé.
Ali eu datilografei os meus primeiros cordéis, por isso demorei mais tempo que os demais para concluir o curso. Papai, é claro, estranhou a demora... todo mundo fazia o curso em, no máximo, 5 meses. Eu levei um semestre inteiro. Fazia o exercício em 5 minutos e gastava o restante do tempo datilografando meus poemas. Saí do curso apto para colaborar com o jornal HORIZONTE DA CULTURA, do Colégio Estadual Paulo Sarasate, onde fiz valiosas amizades, dentre os quais os poetas Mário Lira e Silvio Roberto Santos. O ‘presidente’ do jornal era o Antonio Lopes Maurício, atualmente Promotor Público em Belém do Pará.
Do colégio passei para a Rádio Uirapuru de Canindé como redator do programa ‘Canindé Informa’, apresentado por George Hércules e Assis Vieira.  Minha facilidade para redigir e habilidade com a velha máquina de escrever me credenciavam para isso, quando eu tinha apenas 16 anos! Dali passei para a Radio São Francisco, antes mesmo de ser implantada, e para Prefeitura onde ocupei o cargo de Diretor de Cultura e Assessor de Imprensa em algumas gestões. E a velha máquina me acompanhando na promissora trajetória... Saí dali para escrever textos de humor para a dupla Paulo Diógenes (Raimundinha) e Ciro Santos, graças a um ‘empurrãozinho’ do amigo Toinho Pereira. Tímido como sempre fui, jamais iria me apresentar como redator de humor para quem quer que fosse. Fiz amizade com Tarcísio Matos, um bamba dessa área e passamos a escrever juntos textos para a revista Varal, do saudoso Vescêncio Fernandes, para o programa ‘OS TRAPALHÕES’ (nos idos de 1992), sob direção do Wilton Franco, para o jornal O POVO e para meu futuro livro de estréia ‘O baú da gaiatice’, tudo numa velha Olivetti.
Trabalhei como redator nas duas principais emissoras de rádio de Canindé, na Rádio Verdes Mares AM, nas TV’s Cidade e Manchete, na Rádio Iracema e na Rádio Cidade AM de Fortaleza. Vim conhecer o computador em 1995, na agência de propaganda do Cel. Ronald Pedrosa, a RONMA PUBLICIDADE. Tinha meus dólares guardados debaixo do colchão, então adquiri um computador, uma impressora e um scanner por uma légua de dinheiro. Mais de 6 mil dólares e ainda me diziam que era barato. Após a compra, efetuado o pagamento à vista, em dólar, me disseram que eu só receberia meu equipamento 15 dias depois. O homem comprava tudo em Miami e eu corria o risco de não receber, caso ele fosse preso em alguma alfândega. Me livrei da máquina de escrever, mas, em compensação, continuo digitando rapidamente com os 10 dedos sem olhar para o teclado do computador. Graças a quem? Graças ao diploma mais importante da minha vida, o curso de datilografia.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Texto de ARTUR PIRES

Um Assaré de lembranças*

Fonte: http://impressoesmundanas.blogspot.com.br/
 
(Ilustração: Patativa do Assaré - Infogravura de Arievaldo Viana)
 
Artur Pires

Foi em Assaré, Cariri cearense, que vivi os primeiros anos da minha infância. Nasci em Barbalha (por vontade de minha mãe, que é de lá), também no Cariri (e viajava para lá e para o Crato com frequência para visitar a parentada), mas é do Assaré que carrego as mais remotas reminiscências pueris, lá pelos derradeiros anos da década de 80. Morávamos eu, meus pais e uma das minhas irmãs numa casa simples e bonita, de mureta branca e portãozinho de ferro - à vista de todos os que passavam em frente ao local -, jardim multicor, tomado de flores e plantas, que davam uma suavizada de brisa leve e fagueira ao calor de suar em bicas que fazia por aquelas bandas.
As samambaias suspensas em jarros se espreguiçavam na varanda, os crótons margeavam os cantos do muro com sua mistura de cores, os beija-flores toda manhã vinham bicar as papoulas e, pintando parte da paisagem do jardim de encarnado, um bouganville vermelho recebia cotidianamente a visita de sabiás e bem-te-vis em seus galhos.
 
No quintal, mais pés de plantas: goiaba, ata, mostarda, pimenta malagueta, pimentão, tomate, capim santo, erva cidreira e erva doce esverdeavam aquela parte de trás da morada. Os calangos eram vistos aos magotes. Ficavam também por ali as galinhas de capoeira que minha mãe criava. Nesta fase da infância, meus animais de estimação eram os pintinhos. Quando brincava com eles, minha mãe ficava de olho em mim para que não os esmagasse em arrochos desmedidos. Algumas vezes os vi nascer, naquela luta árdua pela liberdade:
O pinto dentro do ovo
aspirando um mundo novo
não deixa de biliscar,
bate o bico, bate o bico,
bate o bico, tico tico
pra poder se libertar
(Patativa do Assaré – Lição do Pinto)

De vez em quando, uma galinha mais gorda era escolhida e ia para a panela. Não gostava que lhes torcessem o pescoço para matá-las, mas as adorava ao molho ou à cabidela. Hummmm! Certa vez, mamãe inventou de criar também no quintal um veado, o Bambi, que pouco tempo depois foi morto por uma cobra.
 
- Tenho impressão de que foi cascavel ou coral – diz ela, ainda hoje.

Só sei que, por conta desse ataque mortal, meus pais eram cheios de cuidados quando eu e Alana, minha irmã, íamos ao quintal:
 
- Cuidado, vocês, que aí tem cobra. Calcem pelo menos uma chinela – dizia mamãe, com voz firme.

No tempo de chuva, as gias, os cururus e as rãzinhas de banheiro saíam do brejo e se entocavam nas matas do jardim e do quintal lá de casa. De noite, era um coaxado medonho, mas a gente se acostumava. As cigarras, com seu grito agudo, também surgiam aos montes. Mas eu me vidrava mesmo era nos vaga-lumes e seu piscar de luzinhas mágico.
 
- Chega, Artur, vem ver um vaga-lume!

E eu saía de onde estivesse, em disparada, para apreciá-lo. E ficava ali, embasbacado, observando-o, até a hora em que ele cansava de se exibir para mim e ia embora.
 
Na parte interna da morada, móveis amadeirados, escuros e com acabamentos curvilíneos remetiam a um estilo considerado démodé nos dias de hoje. Foi num piso de taco de madeira onde dei meus primeiros passos, ainda cambaleantes, e depois, já craque na arte de andar, brinquei com meu cavalinho feito de cabo de vassoura.

(Ilustração: Klévisson Viana, na HQ Lampião)

Próximo à casa, na esquina, ficava a bodega do seu Canuto, onde meus pais compravam artigos domésticos e trocavam uma prosa costumeira. Havia também nas proximidades a bodega do seu Pedro: cachaça, querosene e sabão não faltavam nunca. A mulher de seu Pedro, dona Lurdes, vendia o melhor dindim da cidade. Foi ela quem provocou em mim o gosto por picolés.
 
A Escola Patativa do Assaré, onde aprendi o bê-a-bá, ficava nas redondezas da praça da matriz, a principal da cidade. A nossa casa ficava a três quadras de lá. Às segundas-feiras, fervia naquele quarteirão a feira de alimentos diversos (desde hortaliças a quebra-queixo), fumo de rolo, roupa e o comércio de artigos sertanejos (chapéus, gibões, chicotes, peitorais, alpercatas: tudo em couro). A praça ficava abarrotada. Esbarrões eram frequentes. Vinha gente da serra de Santana, de Amaro, de Genezaré e de Aratama. Até de Saboeiro, Antonina do Norte e Tarrafas.
 
Meus pais não me deixavam ir só à feira. Claro! Era um meninote de apenas quatro, cinco anos no máximo. Um pingo de gente, de pele preta, grande sinal de nascença nas costas, cabelo de índio, parecendo cortado em cuia, boca e olhos miúdos, curioso e medroso. Ia para a feira com mamãe. Quando ela ia, me levava porque percebia meu encanto com aquela miscelânea toda da feira do Assaré. Tipos diversos. Ir àquela feira, que ficava a poucos quarteirões de casa, era como dar a volta ao mundo. Tudo era novo – e tudo era mágico!
 
- Eita que tá crescendo rápido o minino, dona Ana! – dizia Galego, verdureiro onde mamãe sempre comprava as frutas e verduras lá de casa, bagunçando com seus dedos grossos e peludos os meus cabelos na altura da testa.
 
- É.... Meu neguim! – dizia minha mãe, toda orgulhosa com a cria, novamente bagunçando meus cabelos à altura da testa.
 
Após pegar as laranjas, beterrabas, bananas e hortaliças que Galego separava toda segunda-feira para ela, me pegava pelo braço e seguíamos o passeio. Entre os tipos da feira, eu observava com mais atenção os sertanejos, aqueles cabras da pele engelhada pelo sol castigante do semiárido, das mãos grossas e calejadas devido ao manejo do arado e da enxada no roçado. Trabalhadores. Enxugavam o suor da fronte com uma rápida passada de mão. A cabaça d´água amarrada à cintura, a camisa de botão aberta na altura do peito e o terço envolto no pescoço:
 
- Me vê dois rolo pra módi d´eu levar pro Saboeiro!
 
Fumo de rolo – que era enrolado na palha do milho - e rapadura eram artigos imprescindíveis à feira. Quase sempre passeando entre os feirantes e clientes, lá estava ele, com seu jeito gracioso, simples, prosador, poético: Patativa do Assaré. Toda segunda-feira, descia a serra de Santana, distrito de Assaré, e se misturava à multidão. Quando já estava na cidade, apenas atravessava a rua, pois sua casa em Assaré fica em frente à praça da matriz.

(Ilustração: Klévisson Viana, na HQ Lampião)

Patativa era gênio... E gente! Das melhores! Sua simplicidade era admirável, assim como sua sabedoria. Devido à amizade do poeta com meu pai e com minha mãe, que era professora de Isabel, neta dele, fomos diversas vezes à sua casa em Assaré e uma vez à sua morada na serra de Santana. A casa era simples: taipa e terra batida. Mas a vida deles ali na serra era digna. Não havia barriga roncando de fome; se chovesse, a roça dava conta do sustento. Por isto mesmo, a chuva era a coisa mais aguardada ao longo do ano. Na seca braba, o sertanejo se virava como podia: tanajuras, tejos, pebas e preás iam pro forno. Naquele dia, fomos convidados para um almoço farto: mugunzá, galinha caipira, milho assado, banana maçã, melancia, pamonha, jerimum, canjica, cuscuz. Tudo criado, plantado e colhido ali mesmo. Antes do almoço, quase como um ato ritualístico, Patativa e os seus entornaram uma terça de cachaça, naqueles copos americanos. Glut! De uma vez só, sem fazer careta!
 
- É pra módi abrí o apititi – disse um dos parentes do poeta que estavam em volta da mesa.

Da casa de Patativa ao lado da praça da matriz, em Assaré, onde fui mais vezes, carrego flashes de memória mais vivos, mais detalhados. A cadeira de balanço na sala, onde ele gostava de se balançar enquanto enrolava seu fumo, já com as mãos trêmulas pelo peso da idade, mas com a habilidade de quem sabia o que estava fazendo; o grande pote de barro, sobre o jirau, onde ficava a água que dona Belinha, mulher de Patativa, me servia num caneco de flandre; a moringa; a grande panela de barro; o bule onde era servido o café (meus pais adoravam o café de dona Belinha!); as fotografias familiares antigas, mais parecendo pinturas, decorando as paredes da casa; e, logicamente, toda a prosa, toda a poesia, toda a oralidade extasiante do maior poeta popular de todos os tempos. Eu, minino véi, nem compreendia a grandeza de Patativa à época, mas adorava ouvir as rimas e melodias daquela cantoria, sob a voz nasalada, telúrica e verdadeira do poeta.
 
Em 1990, meu pai, que era bancário, foi transferido para Redenção, no Maciço de Baturité. Fomos embora do Assaré, mas aqueles anos vividos ali reverberam em mim ainda hoje. Voltamos lá algumas vezes, visitamos Patativa. Ele veio nos visitar certa vez, quando já morávamos em Fortaleza. As lembranças do Assaré não estão guardadas na memória à toa. Sempre que ameaço esquecê-las, elas vêm à tona para me reavivar e mostrar a beleza da simplicidade e da sabedoria sertaneja: plantar, colher, comer. Viver! Com prosa... E poesia!
 
Vida eterna a Patativa e ao Assaré!


(Xilogravura/ilustração: Arievaldo Viana)

Mas porém vou lhe contá,
as coisa aqui como é,
sou fio do Ceará,
nascí aqui no Assaré,
...
Nesta bôa terra nossa
quando é tempo de invernada
bota girmum chega a roça
fica toda encaroçada
...
Não sendo tempo de fome
sinhô douto pode crê,
nesta terra o cabra come
até a barriga inchê,
nem carne, nem macarrão,
mas porém mio e feijão
e farinha é a vontade,
nimguém come da ração
como se faz na pensão
lá das rua da cidade
...
Tô lhe contando a certeza
das coisa do meu sertão,
aqui ninguém tem riqueza
mas porém tem munta ação
(Patativa do Assaré – Ilustrismo Senhô Doutô)
 
 
* Texto publicado no Portal Vermelho

 
Raramente publico textos de outros autores neste espaço, mas resolvi reproduzir esse belo texto do amigo ARTUR PIRES - Jornalista e Especialista em Docência do Ensino Superior, ambas pela UFC - e blogueiro, pela beleza lúdica e telúrica que o mesmo contém.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

PROFESSOR FOLHETO

 
 
Esta maletinha acima pertenceu ao Sr. João Inácio de Lima e foi disponibilizada por um de seus descendentes no blog www.cordeisherdadosdomeuavo.blogspot.com.br juntamente com fotos de cantadores famosos do Pajeú e outras regiões, além de fragmentos de diversos folhetos raros, inclusive uma peleja entre José Duda e Antonio Marinho datada de 1915.
 
Minha avó Alzira de Sousa Lima tinha uma maleta parecida com esta, porém bem mais sortida. Parte do acervo fora adquirida de um vendedor ambulante que se chamava Damásio Paulo (imagino que se tratasse do poeta Damásio Paulo da Silva, que trabalhou durante alguns anos como chefe da tipografia de José Bernardo da Silva, em Juazeiro do Norte). Quando me entendi por gente, a maletinha de minha avó estava abandonada em cima de um antigo caixão de farinha, no quarto grande da casa velha, para onde minhas tias deportavam tudo aquilo que consideravam quadrado, cafona e obsoleto. Nas paredes só havia lugar para pôsteres de Jerry Adriani, Roberto Carlos e Wanderley Cardoso. No rádio, os programas que tocavam Luiz Gonzaga ou cantoria também eram desdenhados pela 'nova' geração influenciada pela Jovem Guarda. Eu adorava ouvir os programas que minha avó sintonizava e tinha nas veias o germe da poesia. Fui responsável pelo resgate dessa preciosidade - a tal maletinha de 'romances', embora tenha ouvido alguns protestos do tipo: - Esse menino parece um velho, anda agarrado com esses romances 'véi' empoeirados, que só servem para sujar a casa!
 
A literatura de cordel foi responsável, informalmente, pela alfabetização de milhares de crianças nordestinas, num tempo em que o IBGE registrava mais de 60% de nossa população como analfabeta. O tempo passou e a poesia popular continua excercendo esse papel de ferramenta auxiliar no ensino dentro das salas de aula. O professor que descobre o seu potencial fica encantado com os resultados obtidos. Não é a toa que o poeta Manoel Monteiro, de Campina Grande, batizou oportunamente o cordel de 'Professor Folheto'.