quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Gonzaga por Cascudo






TEXTO DE CÂMARA CASCUDO NA CONTRACAPA DO DISCO "LUIZ GONZAGA", 1973 (Emi-Odeon):

"LUIZ GONZAGA é uma legitimidade do sertão tradicional. Sua inspiração mantém as características do ambiente poderoso e simples, bravio e natural, onde viveu. Não imita. Não repete. Não pisa rastro de nome aclamado. E ele mesmo sozinho, inteiro, solitário, povoando os arranha-céus com as figuras imortais do Nordeste, ardente e sedutor, fazendo florir cardeiros e mandacarus, levantando os mormaços dos tabuleiros através das cidades tumultuosas onde permanece.
Fui menino no Sertão, 1909-1913. Tenho na memória o timbre das grandes vozes infatigáveis, ímpeto de guerrilhas no açodamento dos "crescendo", nasalamente infalível na modulação para "fechar" na dominante. Sertão sem rodovias, luz elétrica, gasolina. Vaqueiros, cantadores, romeiros de São Francisco de Canindé, Juazeiro, Santa Rita dos Impossíveis. Poeira heroica das feiras e das vaquejadas. Viola do rojão de dois-por-quatro, sanfonas de oito baixos, pobreza milionária na emoção irradiante, inexplicável alegria das coisas suficientes.
Luiz Gonzaga é um documento da Cultura Popular. Autoridade da lembrança e idoneidade da convivência. A paisagem pernambucana, águas, matos, caminhos, silêncio, gente viva e morta. Tempos idos nas povoações sentimentais voltam a viver, cantar e sofrer quando ele põe os dedos no teclado da sanfona de feitiço e de recordação.
Não posso compará-lo a ninguém. Luiz Gonzaga é uma coordenada humana que as ventanias urbanas fazem vibrar sem modificação. Não é retentiva, artificialismo, sabedoria de recursos mentais "aproveitando" o Sertão. Ele próprio é a fonte, cabeceira e nascente de suas criações. Sertão é ele, como a Bretanha está no bretão e a Provença em Mistral. Bem logicamente, a sua terra muda a fisionomia pelas mãos de ferro do Progresso. Técnicas, máquinas, combustíveis, sonhos novos. Mas, pelo lado de dentro, o Homem não muda, como a sucessiva aparelhagem em serviço do seu interesse. Luiz Gonzaga presta-nos, a nós, devotos das permanentes culturais brasileiras, a colaboração sem preço de uma informação viva, pessoal, humana.
Sanfoneiro do Sertão, brasileiro do Brasil, os que amam terra e gente nativa te saúdam na hora em que tua voz se eleva, vivendo a sensibilidade profunda da tu'alma sertaneja...

LUÍS DA CÂMARA CASCUDO - Natal, janeiro de 1973.
Fonte: Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

SECA, FOME E DESCASO


  1. Patativa, foto de Tiago Santana


A  MORTE  DE  NANÃ

Patativa do Assaré

Eu vou contá uma históra
Que eu não sei como comece,
Pruquê meu coração chora,
A dô do meu peito cresce,
Omenta o meu sofrimento
E fico uvindo o lamento
De minha arma dilurida,
Pois é bem triste a sentença
De quem perdeu na isistença
O que mais amou na vida.

Já tou véio, acabrunhado,
Mas inriba deste chão,
Fui o mais afurtunado
De todos fios de Adão.
Dentro da minha pobreza,
Eu tinha grande riqueza:
Era uma quirida fia,
Porém morreu muito nova.
Foi sacudida na cova
Com seis ano e doze dia.

Morreu na sua inocença
Aquele anjo incantadô,
Que foi na sua isistença,
A cura da minha dô
E a vida do meu vivê.
Eu bejava, com prazê,
Todo dia, demenhã,
Sua face pura e bela.
Era Ana o nome dela,
Mas, eu chamava Nanã.

Nanã tinha mais primô
De que as mais bonita jóia,
Mais linda do que as fulô
De um tá de Jardim de Tróia
Que fala o dotô Conrado.
Seu cabelo cachiado,
Preto da cô de viludo.
Nanã era meu tesôro,
Meu diamante, meu ôro,
Meu anjo, meu céu, meu tudo.



Pelo terrêro corria,
Sempre sirrindo e cantando,
Era lutrida e sadia,
Pois, mesmo se alimentando
Com fejão, mio e farinha,
Era gorda, bem gordinha
Minha querida Nanã,
Tão gorda que reluzia.
O seu corpo parecia
Uma banana-maçã.

Todo dia, todo dia,
Quando eu vortava da roça,
Na mais compreta alegria,
Dentro da minha paioça
Minha Nanã eu achava.
Por isso, eu não invejava
Riqueza nem posição
Dos grande deste país,
Pois eu era o mais feliz
De todos fio de Adão.

Mas, neste mundo de Cristo,
Pobre não pode gozá.
Eu, quando me lembro disto,
Dá vontade de chorá.
Quando há seca no sertão,
Ao pobre farta fejão,
Farinha, mio e arrôis.
Foi isso o que aconteceu:
A minha fia morreu,
Na seca de trinta e dois.

Vendo que não tinha inverno,
O meu patrão, um tirano,
Sem temê Deus nem o inferno,
Me dexou no desengano,
Sem nada mais me arranjá.
Teve que se alimentá
Minha querida Nanã,
No mais penoso matrato,
Comendo caça do mato
E goma de mucunã. 

E com as braba comida,
Aquela pobre inocente
Foi mudando a sua vida,
Foi ficando deferente.
Não sirria nem brincava,
Bem pôco se alimentava
E inquanto a sua gordura
No corpo diminuía,
No meu coração crescia
A minha grande tortura.

Quando ela via o angú, 
Todo dia demenhã,
Ou mesmo o rôxo bejú
Da goma da mucunã,  
Sem a comida querê,  
Oiava pro dicumê,   
Depois oiava pra mim
E o meu coração doía,
Quando Nanã me dizia:
Papai, ô comida ruim!



Foto: http://www.naturezabela.com.br

Se passava o dia intêro
E a coitada não comia,
Não brincava no terrêro
Nem cantava de alegria,
Pois a farta de alimento
Acaba o contentamento,
Tudo destrói e consome.
Não saía da tipóia
A minha adorada jóia,
Infraquecida de fome.

Daqueles óio tão lindo
Eu via a luz se apagando
E tudo diminuindo.
Quando eu tava reparando
Os oinho da criança,
Vinha na minha lembrança
Um candiêro vazio
Com uma tochinha acesa
Representando a tristeza
Bem na ponta do pavio.

E, numa noite de agosto,
Noite escura e sem luá, 
Eu vi crescê meu desgosto,
Eu vi crescê meu pená.   
Naquela noite, a criança
Se achava sem esperança
E quando vêi o rompê
Da linda e risonha orora,
Fartava bem pôcas hora
Pra minha Nanã morrê.  

Por ali ninguém chegou,
Ninguém reparou nem viu
Aquela cena de horrô   
Que o rico nunca assistiu,
Só eu e minha muié,   
Que ainda cheia de fé
Rezava pro Pai Eterno,
Dando suspiro maguado
Com o seu rosto moiado
Das água do amô materno.

E, enquanto nós assistia
A morte da pequenina,
Na menhã daquele dia,
Veio um bando de campina,
De canaro e sabiá
E começaro a cantá
Um hino santificado,
Na copa de um cajuêro
Que havia bem no terrêro   
Do meu rancho esburacado.

Aqueles passo cantava,
Em lovô da despedida,
Vendo que Nanã dexava
As misera desta vida,
Pois não havia ricurso,
Já tava fugindo os purso,
Naquele estado misquinho,
Ia apressando o cansaço,
Seguido pelo compasso
Da musga dos passarinho.

Na sua pequena boca
Eu via os laibo tremendo
E, naquela afrição loca,
Ela também conhecendo
Que a vida tava no fim,
Foi regalando pra mim
Os tristes oinho seu,
Fez um esforço ai, ai, ai,
E disse: “abença, papai!”
Fechô os óio e morreu.

Enquanto finalizava
Seu momento derradêro,
Lá fora os passo cantava,
Na copa do cajuêro.
Em vez de gemido e choro,
As ave cantava em coro.
Era o bendito prefeito
Da morte de meu anjinho.
Nunca mais os passarinho
Cantaro daquele jeito.

Nanã foi, naquele dia,
A Jesus mostrá seu riso
E omentá mais a quantia
Dos anjo do Paraíso.
Na minha maginação,
Caço e não acho expressão
Pra dizê como é que fico.
Pensando naquele adeus
E a curpa não é de Deus,
A curpa é dos home rico.

Morreu no maió matrato
Meu amô lindo e mimoso.
Meu patrão, aquele ingrato,
Foi o maió criminoso,
Foi o maió assarsino.
O meu anjo pequenino
Foi sacudido no fundo
Do mais pobre cimitero
E eu hoje me considero
O mais pobre deste mundo.

Soluçando, pensativo,
Sem consolo e sem assunto,
Eu sinto que inda tou vivo,
Mas meu jeito é de defunto.
Invorvido na tristeza,
No meu rancho de pobreza,
Toda vez que eu vou rezá,
Com meus juêio no chão,
Peço em minhas oração:
Nanã, venha me buscá!