quarta-feira, 3 de julho de 2013

O Sagrado e o Profano no Cordel


Texto de ARIEVALDO VIANNA

O saudoso pesquisador Ribamar Lopes chamava atenção para a presença constante do diabo nos folhetos de cordel, ora ludibriado por um velho astucioso, ora enrascado numa luta com Lampião, vez por outra metido em questões com São Pedro, Santo Antônio, Padre Cícero e outros santos da devoção sertaneja. O sagrado e o profano são temas marcantes na Literatura de Cordel.


Quando criança eu frequentava as festas de santo não propriamente movido pela fé, mas pela curiosidade infantil de menino sertanejo que gosta de ver ajuntamentos de pessoas, camelôs vendendo miçangas, leilões animados, toques de fole, conversas pitorescas ao pé do balcão. Foi assim nas Santas Missões de Dom Rufino, em São José da Macaóca, foi assim nos festejos de São Roque, na Vila Campos, era assim na Festa de São Francisco, em Canindé, evento que marcou profundamente a minha infancia, pois era ali que eu e minha avó Alzira adquiríamos os tão cobiçados folhetos de Literatura de Cordel.

Outra coisa que me deixou saudade eram os brinquedinhos daquele tempo... lúdicos, artesanais, fabricados na periferia das cidades: caminhãozinho de madeira, joão-teimoso, joão galamarte, aquele burrinho (ou vaquinha) que se mexe em cima de um barril quando apertado por baixo e um brinquedo muito do safado que as crianças não podiam adquirir - um caixãozinho de defunto com um esqueleto tarado no seu interior. Alguem lembra disso? Quando a pessoa abria era aquela surpresa: o esqueleto estava "armado" tal e qual o defunto da música "Romance de uma caveira". Gostava de observar também as bancas de jogo, aquele jogo dos preás que entravam em determinadas tocas, aquele das argolas que laçavam carteiras de cigarros com cédulas de diversos valores. Tudo isso me remete diretamente aos festejos religiosos que observei na infância e que hoje, nem de longe, conseguem repetir a mesma emoção que eu sentia quando menino.


Foi num desses folguedos do passado, no final da 1970, que adquiri em Canindé este curioso folheto de José Pedro Pontual, “As prezepadas de Satanás na Igreja”, reproduzido posteriormente numa antologia organizada por Sebastião Nunes Batista:

As presepadas do satanás na igreja
Autor: José Pedro Pontual

Quem crer na misericórdia
Da Providência Divina
Nunca cai em tentação
Nem também sofre ruína
Sendo justo para Deus
Satanás não lhe domina

E quem não crer nas palavras
Do nosso Deus criador
Não pode viver feliz
É um ente malfeitor
Que vive solto no mundo
Causando o maior pavor

Para provar o que digo
Vou contar um ocorrido
Que servirá de exemplo
A qualquer ente banido
Que profana contra as forças
Do Messias prometido

Na usina Santo Inácio
Perto da cidade Cabo
Um macumbeiro perverso
Virou-se num bichão brabo
Com o satanás no couro
Contendo esporão e rabo

Chamava-se esse ente
Antônio Pedro Morais
Ruim igualmente a peste
Matou os seus próprios pais
Maltratava Jesus Cristo
Gostava do satanás

Ele ainda era solteiro
De ruim vivia só
Era doido por um jogo
De baralho ou dominó
Dava tudo por Xangô
Vivia do catimbó

Na macumba ele fazia
Moça casar sem querer
E tendo raiva de um
Fazia o pobre correr
Latindo de mundo afora
Para quem quisesse ver

Mulher casada que ele
Pensasse um pouquinho nela
Preparava sete pingos
Das lágrimas de uma vela
Com enxofre e creolina
E botava na porta dela

Pó de cavalo do cão
Com sua feitiçaria
Tronco de jurema preta
Cuspia em cima e benzia
Qualquer mulher se entregava
A ele no mesmo dia

Tinha um molambo enrolado
Num pacote de cordão
Um esqueleto de um sapo
E um livro de oração
Uma coruja pelada
Nas garras de um gavião

Dezesseis caranguejeiras
E uma lacraia choca
Um urubu e um gato
Dentro de uma maloca
Quatro dentes da finada
Bisavó da mãe de Noca

Raspa de unha e um dente
Da víbora de faraó
A queixada de um jumento
Do tempo da sua avó
Sete espinhas de jibóia
Dentro de um caritó

A polícia o perseguia
Mas nunca pôde pegá-lo
Porque ele se envultava
Em gato, cão ou cavalo
Cegava as autoridades
E não sofria um abalo

Nunca existiu um cristão
Pra dar um tabefe nele
E nem houve macumbeiro
Para trabalhar contra ele
O que tentasse morria
Tudo tinha medo dele

Tinha um tacho muito grande
Que o satanás lhe deu
Nesse tacho cozinhava
Qualquer um preparo seu
Muito mais que Cipriano
O infeliz aprendeu

Ele tinha a oração
De Pezeta e Cafuringa
Uma caveira e uma negra
Chamada Tota do Pinga
Os olhos e a boca eram
Cobertos de pichilinga

Tinha as pestanas da negra
Verdelenga Curutuba
Um chifre de cabra preta
E um saco de curuba
E dizia abertamente:
Meu poder ninguém derruba

Dizia mais que Jesus
Para ele não existia
Era a ilusão dos bestas
Igreja era outra arrelia
O satanás para ele
Era um ser de mais valia

A força que acredito
É a de pai Lucífer
Com ela eu devoro um
A hora que bem quiser
Desonro qualquer donzela
Descaso qualquer mulher

O cabra que me abusar
Eu lhe empesto com brocha
E sangue de gato preto
Nunca mais ele debocha
Morre roído na rua
Igual tapuru na rocha

Dizem que o padre Cícero
Pode mais que satanás
Mas é também macumbeiro
Como eu e nada mais
Cristo era o poderoso
Morreu, perdeu o cartaz

Só acredito que ele
Era bamba de primeira
Se me virasse um bicho
Daqui para quinta-feira
E fosse daqui do cabo
Até lá numa carreira

Quando ele disse isso
Viu o diabo em sua frente
Deu um rinchado tão grande
Que assombrou muita gente
Saiu danado correndo
Igual cachorro doente

Nasceu-lhe um rabo comprido
Um esporão na canela
Sua língua ficou preta
Que só fundo de panela
Assim contou-me uma moça
Que ele foi dono dela

Na carreira que ele ia
Destinou-se ao Juzeiro
Dando cada relinchado
De assombrar qualquer romeiro
Com os olhos encarnados
Que parecia um braseiro

Passou em Serra Talhada
Com o maior desespero
Numa certa encruzilhada
Mordeu um catimbozeiro
Cortou o nariz dum corno
Na estrada de Salgueiro

Adiante ele encontrou-se
Com uma mulher chifreira
Ela deu-lhe uma dentada
No cangote bem certeira
Que rasgou até os pés
Todo o couro da traseira

Na quinta-feira bem cedo
Em Juazeiro chegou
Entrou de igreja adentro
Defronte ao altar parou
Nessa hora o padre Cícero
Na sua frente ficou

(...)

In “Antologia da Literatura de Cordel”, Sebastião Nunes Batista – Organizador, Fundação José Augusto,  Natal - 1977