sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

ROMANCEIRO SERTANEZ


O Afilhado da Virgem e a sina do enforcado

Texto de Paiva Neves


 Em “O afilhado da virgem e a sina do enforcado” o poeta Arievaldo Viana resgata a rica tradição da literatura de cordel em contar histórias. Nesse folheto de fôlego o poeta foi na medida e em 159 estrofes de seis versos reconta o clássico conto “O defunto”, do escritor português Eça de Queirós. É uma obra para ler e reler, pois em cada leitura é possível perceber determinadas nuances que em uma leitura aligeirada pode passar despercebida ao olhar menos atento.
Por exemplo, na minha primeira leitura me deleitei com o aspecto geral da narrativa, com o jogo de cenas da trama do vilão e o ímpeto benevolente do mocinho, e não me apercebi da riqueza no diálogo do mocinho com o cadáver. Sim, estamos falando de personagens totalmente boas e outras totalmente ruins pois essa é uma característica dos clássicos do cordel que tinha como objetivo contemplar leitores menos exigentes, leitores contextualizados e concretos de uma determinada época histórica. Leitores/ouvintes (2000) como bem foi caracterizado por Ana Maria de Oliveira Galvão. Segundo essa autora, no recorte da sua pesquisa de Doutorado, o público leitor de cordel dos anos 30 a 50, em Pernambuco era leito/ouvinte devido aos altos índices de analfabetismos. Dessa forma, os folhetos eram comprados e os poucos leitores alfabetizados liam ou cantavam as histórias rimadas para os demais. Assim, já que o ato de ler é bem mais amplo do que uma simples decodificação da palavra escrita, o público leitor ia além daqueles que de fato estava lendo, passando a abranger a totalidade do público ouvinte.
Nessas leituras coletivas eram lidos e ouvidos textos que iam além dos folhetos de 08 páginas. Os grandes romances da Literatura de Cordel de autoria de Leandro Gomes de Barros, José Camelo Resende e tantos outros cordelistas de peso foram avidamente consumidos por esses leitores/ouvintes. Com o tempo essa tradição foi sendo extinta tanto pelos leitores/ouvintes como pelos poetas e passou a ser produzidos mais os folhetos com textos menos extensos.
Arievaldo Viana, nesse texto resgata essa tradição, a tradição do romance longo, de 32 páginas. “O afilhado da virgem e a sina do enforcado” é uma história que se Europa medieval. Uma jovem pura e bela, protótipo da mulher submissa, com um casamento arranjado, como era costume à época é casada com um velho perverso e ranzinza. Logo no início do enredo aparece um jovem na história e se apaixona perdidamente pela mocinha. O velho e perverso marido, que mantinha a mulher presa, desconfiando das intenções do rapaz resolve matá-lo, no entanto como o rapaz era devoto e afilhado da virgem termina sendo salvo por o cadáver de um enforcado. A seguir leia o início do romance e trechos da singular conversa do rapaz com o enforcado. Para ler a obra completa faça seu pedido pelo “Email”  cordelriaflordaserra@gmail.com ou pelo WhatsApp (085) 999569091, enviamos pelo correio.

Nossa língua portuguesa
Tem renomados autores
No Brasil ou Portugal
Existem grandes valores
Que lapidam a “Flor do Lácio”
Na função de escritores.

Através dos meus pendores
E pensamento veloz
Quero traçar um poema
Depois soltar minha voz
Tendo por base uma obra
Do grande Eça de Queirós.

“O defunto”, esse é o título
Original desse conto
Já diz um velho ditado
Quem reconta, aumenta um ponto;
Leitor, se for pretensão,
Queira me dar um desconto.

À narrativa remonto
Buscando um novo traçado
A começar pelo título
Que é mais do meu agrado:
“O afilhado da Virgem
E a sina do enforcado.”

Em mil, quatrocentos e
Setenta e quatro, em Castela
Residia uma senhora
Jovem, sábia e muito bela
Tinha o porte de princesa
Numa educação singela.

Tinha o talhe muito esbelto
E os lábios nacarados
Sobre a cabeça brilhavam
Lindos cabelos dourados
A pele branca encantava
Lembrando campos nevados.

Chamava-se Leonor
Essa divina beldade
Contava, por esse tempo,
Dezoito anos de idade
Casara com um fidalgo
Embora contra a vontade.

Com Dom Alonso de Lara
Homem de idade avançada
A belíssima Leonor
Casara quase obrigada,
Morava com o seu marido
Em Segóvia, enclausurada.

Além de velho e ranzinza
Alonso era ciumento
Não a deixava sair
E a tudo estava atento
A vigiava em segredo
Tinha cisma até do vento.

Levava a moça esta vida
Com Dom Alonso de Lara
Sair daquela prisão
Era coisa muito rara
Porém jamais lamentava
Sua sorte tão avara.

Defronte ao seu palacete
Num sobrado de esquina
Morava Dom Rui de Cárdenas
Moço de aparência fina
Sobrinho do Arcebispo
Uma mente cristalina.

(...)

Passando defronte o campo
O seu sombreiro tirou
Fez uma rápida oração
Depois se persignou
Uma voz misteriosa
Nesse momento escutou:

- Oh, cavaleiro, detende-vos,
Vinde cá!  - Assim dizia
A voz que ele escutou
Porém não compreendia
Que fosse de um enforcado
Que a ele se dirigia...

Quis seguir o seu trajeto
Mas logo que ele sai,
A voz lhe diz novamente:
- Oh, cavaleiro, esperai
Pois tenho algo a dizer-te
Peço-lhe então que voltai!


Um leve frio na espinha
Nesse momento sentiu
Porém detendo o cavalo
Aos mortos se dirigiu:
- Quem, dentre vós, me chamou?
Nesse momento ele ouviu:

- Fui eu, senhor! Disse um deles,
Vos peço um grande favor
Cortai depressa essa corda
Quero segui-lo, senhor,
Pois sei que vais a Cabril
Para negócios de amor!

Dom Rui puxou a espada
Sentindo um leve pavor,
Cortou a corda e mostrou-lhe
O sinal do Redentor;
O enforcado ajoelhou-se
Com reverência e temor.

Primeiro Dom Rui pensou
Ser do diabo uma cilada,
Mas o enforcado lhe disse:
- Não tenhas medo de nada,
Quero somente ajudar-te...
Ao longo dessa jornada.

- Pelo favor que agora
Eu pretendo vos prestar
Espero boa indulgência
Que os céus irão me dar...
Dom Rui então consentiu
O homem lhe acompanhar.

Então, com grande surpresa
Percebeu que o enforcado
Sem demonstrar grande esforço
Corria ali, do seu lado,
Disposto a acompanhá-lo
Como havia anunciado.


(...)