sexta-feira, 3 de julho de 2015

UM CONTO DE CRUZ FILHO

A BASÍLICA


Basílica de São Francisco das Chagas - Canindé-CE (Foto Francisco Estrela)

Fugindo um pouco à tradição do CORDEL, publicamos hoje um conto do canindeense José da Cruz Filho, com apresentação do poeta Sílvio Roberto Santos, presidente da Academia Canindeense de Letras, Artes e Memória - ACLAME:

UM CONTO DO RÚSTICO ORFEU
Silvio R. Santos

Ao publicar, em 1971, aos 87 anos, o seu Histórias-de-Trancoso (sic), Cruz Filho, a exemplo de sua poesia, parece não ter querido tomar conhecimento dos novos rumos do conto. Para ficar só em dois exemplos, em 1969, Dalton Trevisan publicara A Guerra Conjugal e, já em 1963, sai o primeiro livro de Rubem Fonseca: Os Prisioneiros, inaugurando um novo padrão de contista.
As 28 peças que enfeixam Histórias-de-Trancoso são tentativas, quase sempre logradas, de se estabelecer episódios com aproximações ao conto moral, denunciando, com frequência, certamente suas leituras de Boccacio e até prenúncios velados de misoginia. Por outra vertente, no livro também aparecem instantâneos em prosa poética como em O Sertão, O Luar e a Fera e A tragédia de Certo Sapo e um inconfessável A Caça da Sempre-Ausente o que aparentemente cinde o conjunto do volume. A unidade dos textos é então forçada por seu estilo grandiloquente.
A Basílica, um dos contos mais interessantes dentre os 28 que compõem a obra, narra um importante fato histórico da cidade de Canindé: a reforma da Basílica de São Francisco pelos capuchinhos, no ano de 1910, segundo registro dos historiadores.
Ao narrar a origem do templo encontra o autor ocasião para externar suas convicções agnósticas, provindas talvez do que chamou  de encontro feliz com Spencer e Renan: "Construído primitivamente por volta do último terço do século XVIII, sob a invocação de São Francisco das Chagas, pela mão de um fanático lusitano que até ali se aventurara, viera continuamente sofrendo continuadas reformas através dos anos, até assumir o aspecto que no momento revestia". O templo é demolido: "A despeito de tudo, o santuário se desfazia a olhos vistos, mordido pelos instrumentos de aço dos demolidores. Sobre o piso da velha nave acumulavam-se os destroços, logo retirados em carroças rangedoras".
Mas há imprecações: "Por que tolerava o Santo aquela profanação? - dizia o poviléu - sem fazer uso do raio contra os malfeitores? Onde andariam os serafins, com suas espadas de foto, que não acutilavam os inimigos de Deus?"
Numa de suas melhores constituições de personagem, introduz o narrador a figura da velha Clementina. Não mais transcreveremos, pois havia de se furtar ao leitor o que consideramos esboço dorsal da história, na sua feição episódica.
Assim, salvo o parágrafo final, pejado de desdém, é um texto sólido de um profundo conhecedor das nuances morfo-sintáticas da língua portuguesa.
Embora obtendo reconhecimento nacional, em seu tempo, por um Alceu Amoroso Lima, por exemplo o que já seria bastante, ficamos a aguardar, hoje, a simpatia das autoridades por novas edições de sua obra.

 Canindé - xilogravura de João Pedro do Juazeiro

A BASÍLICA (conto)
O venerável templo erguia as torres a um recanto da principal praça da cidadezinha, como que a montar guarda à vida do povo que mourejava a seus pés, na ingrata faina de viver segregado do mundo, aos raios do candente sol do Trópico.
Tinha o antigo santuário a sua pequena história, que não faltara a lenda que costuma acompanhar quase sempre o aparecimento de núcleos humanos em quaisquer regiões da terra. Construído primitivamente por volta do último terço do século XVIII, sob a invocação de São Francisco das Chagas, pela mão de um fanático lusitano que até ali se aventurara, viera sofrendo continuadas reformas através dos anos, até assumir o aspecto que no momento revestia. Vira, à sua sombra, formar-se a aldeia primitiva, que mais tarde passou à categoria de vila e depois à cidade. Vira crescer e prosperar a população nativa. Ouvira as vozes apostólicas de Frei Vidal da Penha, Frei Serafim, de Catânia, Frei Cassiano de Camachio e do Padre Sena Freitas, que todos ali andaram a semear notícias das benemerências e terrores do Céu, em dias que se sumiram no ocaso das idades.
            Em época mais próxima, entrara-lhe portas a dentro Frei Davi de Dezenzano, com a sua chusma de frades capuchinhos, que tomou o encargo do governo da paróquia e administração do patrimônio do orago. Este, desde o início da construção da primitiva capela, teria vindo, segundo o parecer de seus devotos, beneficiando a população da cidade com o influxo de suas graças e curas maravilhosas; a devoção, no decurso do tempo, ampliou a sua área, chegando a territórios distantes, do alto-Amazonas a Alagoas e Bahia, de onde acorriam caravanas contínuas de romeiros interessados em justar as suas contas pias com o padroeiro, pagando-as, ora em moeda sonante, ora em toscos ex-votos talhados em madeira, cuja própria anatomia estaria vezes a denunciar os equívocos em que haviam caído os ingênuos peregrinos.
            Com a jurisdição dos capuchinhos veio a ter o vetusto templo a sua sentença de morte. Começara então o prestigioso santuário a receber os mortíferos golpes da picareta do arquiteto Antônio Mazzini, que lhe esbarrondavam as sólidas paredes, para, sobre os seus escombros, edificar magnífica basílica.
A população urbana, salvante reduzido escol social, era de mentalidade francamente rudimentar. Entregava-se, sem maior exame, a práticas feiticistas, tentava apaziguar os trovões e os relâmpagos com rezas e incineração de palhas bentas, julgando assim propiciar as potências celestes. Por ocasião das longas estiagens periódicas que flagelavam a região sertaneja, improvisavam os devotos piedosas procissões, por sugestão dos seus crédulos  mentores capuchinhos, as quais percorriam os campos adjacentes, ao ritmo de ladainhas e invocações melodiosas.      Agora, diante da demolição do velho templo, revoltava-se a mesma turba de fanáticos, a vociferar contar a ação do camartelo do arquiteto que lhe derruía as paredes seculares, impregnadas da fé e das dores de muitas gerações. Era aquilo autêntica obra de vândalos  pensava. Debalde se lhe apresentava a planta da projetada basílica, que vantajosamente substituiria o santuário, de cujos altares tinham sido retiradas as imagens do padroeiro e do seu séquito de santos dos dois sexos, ora recolhidos a outra igreja da cidade. A despeito de tudo, o antigo santuário se desfazia a olhos vistos, mordido pelos instrumentos de aço dos demolidores. Sobre o piso da velha nave acumulavam-se os destroços, logo retirados em carroças rangedoras.   Por que tolerava o Santo aquela profanação  dizia o poviléu  sem fazer uso do raio contra os malfeitores? Onde andariam os serafins, com as suas espadas de fogo, que não acutilavam os inimigos de Deus?
Simultaneamente com o azoinar dos protestos e imprecações da turbamulta, circulavam as lendas, os boatos mal alinhavados, transmitidos em todas as direções, com a cegueira da fé e da estultice  popular. A imagem de São Francisco   afirmava-se  exilada na igreja das Dores, fora vista a chorar, com um lenço à mão, ao qual enxugava as lágrimas que lhe corriam pelas faces. Houve quem assegurasse que a imagem do orago fugira para a Itália, montada num jumento, conduzindo consigo o sacrário do templo destruído...
Foi então que, certa manhã, a velha Clementina, anciã de 85 anos de idade, a cujos ouvidos havia chegado a notícia do sacrilégio, tomou a resolução de ir despedir-se do seu querido templo. Na pia da venerando igreja batizara-se sua mãe, escrava como ela havia sido, batizara-se ela própria e batizaram-se ainda as suas filhas, provindas de pais avulsos. Ali teria assistido ela, segundo a sua memória conturbada, a última missa, celebrada, com evidente anacronismo, por Frei Vidal da Penha, acolitado por uma turma de anjos da Corte Celestial, expressamente de lá enviada pelo santo Padre Cícero Romão Batista...
Delirava. Após longuíssima reclusão em seu miserável casebre, onde era habitualmente socorrida pela caridade pública, meteu-se naquele dia num surrado vestido, pôs à cabeça os restos de um lençol encardido e, claudicante sobre as duas alpercatas,  tomou o rumo do centro da cidadezinha, arrimada ao grosseiro bordão caseiro. Aos tropeções, cai aqui, cai acolá, transpôs vagarosamente a distância que a separava do santuário derrocado.
Que viu ela, Senho Deus, ao estacar perplexa diante dos escombros do saudoso templo?   Ruínas, tão somente ruínas, das quais as cataratas de seus olhos só permitiam lobrigar vultos esparsos...
Convulsivo tremor apoderou-se da antiga escrava. Balbuciou palavras ininteligíveis, alçou os braços descarnados, o bastão desprendeu-se-lhe das mãos e Clementina caiu morta diante do espaço ora vazio do sítio em que teria sido Tróia...  Ao entardecer daquele dia, quando o poente era suntuoso incêndio de ouro e púrpura para engalanar os funerais do Sol, uma carreta puxada por magro cavalicoque conduzia, aos solavancos, através do calçamento de pedra solta das ruas, o cadáver de Clementina à vala-comum do cemitério da cidade. Não havia ela merecido a graça de ver em breve desenhar-se, sob o céu de Canindé, a altaneira cúpula da Basílica que ora proclama ali a imortalidade mística do lendário utopista da Úmbria.
Entrementes, ocorreu o caso do encontro do sacristão Estanislau, ao anoitecer do dia seguinte, com o fantasma da ex-cativa, quanto este procurava reaver o cajado que deixara caído nas imediações das ruínas do templo. Acompanhava-o, naquela ocasião, segundo o testemunho do mesmo visionário, pequeno demônio de pêlo cor-de-rosa deveras encontradiço em cavidades de catacumbas arruinadas de antigos campos-santos.

Conto extraído do livro Histórias-de-Trancoso, publicado em 1971. Atualizou-se a acentuação gráfica e a ortografia em certos casos.)



DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR

José da Cruz Filho (16/10/1884 - 29/08/1974), nasceu em Canindé. Estudou as primeiras letras no Colégio Santo Antônio, fundado pelos frades capuchinhos. Muito jovem ainda, passou a interessar-se pelas letras. Fundou, em 1903, juntamente com Augusto Rocha e Gregoriano Cruz o primeiro jornal que circulou em sua terra natal, chamado “O Canindé”. Transferiu-se na segunda década do Século XX para Fortaleza, onde desenvolveu intensa atividade jornalística e poética. Em 1963 foi eleito Príncipe do Poetas Cearenses.
Crítico literário, contista e historiador, tendo colaborado com jornais e revistas do Ceará e de outros estados do Brasil.
Publicações: Poemas dos belos dias, 1924; Síntese da História do Ceará, 1931; Poesia, (seleção), 1949; O soneto, (Monografia), 1961; Toda a musa, 1965; Histórias de Trancoso, (contos), 1971; Poemas escolhidos, 1986; e História do Ceará (resumo didático), 1987.
Ingressou na Academia Cearense de Letras no dia 8 de setembro de 1922 (primeira reorganização), ocupando a cadeira número 27, cujo patrono era Rocha Lima.

Com as subseqüentes reorganizações, ocupou as cadeiras 7 (1930) e 39 (1951) tendo como patrono o escritor Araripe Júnior.