segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

CEGO ADERALDO



Entre o real e o imaginário

|Em produção | Cantador que recebeu homenagens de Baden, Gismonti, Luiz Gonzaga e do Grupo Opinião reviverá num "drama figural do sertão"



Publicado por O POVO em 30/04/2019



Imagens de Rosemberg Cariry e Cego Aderaldo (Foto: DIVULGAÇÃO)

O cineasta cearense Rosemberg Cariry, autor de Cego Aderaldo, O Cantador e o Mito, longa documental sobre Aderaldo Ferreira de Araújo (1878-1967), prepara agora a versão ficcional da vida do menino pobre que tornou-se fonte de inspiração de Baden Powell, Egberto Gismonti, Luiz Gonzaga, do Grupo Opinião (nas vozes de Nara Leão, Zé Ketti e João do Vale) e de Téo Azevedo. O filme, em fase adiantada de roteirização, se chamará A Lenda do Cego Cantador.
Para muitos especialistas, as composições que Baden e Gismonti dedicaram ao cego cearense estão entre as criações supremas de nossa música popular. Prova disso, é que artistas internacionais da grandeza de Ravi Shankar, Simone Zanchini, Grazyna Auguscik, Naná Vasconcelos e Ricardo Hersz emprestaram o virtuosismo de seus instrumentos e, no caso de Grazyna, sua voz, a gravações antológicas da composição gismontiana.

Rosemberg Cariry, 65 anos, é hoje o mais importante difusor da obra e vida de Aderaldo. Em 2012, ele lançou, no Cine Ceará, o documentário Cego Aderaldo, O Cantador e o Mito. Em 2017, o diretor de Corisco & Dadá lançou poderoso livro-álbum - Cego Aderaldo - O Homem, O Poeta e o Mito. Recheou, com vigorosa narrativa sobre os 89 anos de vida do artista nascido no Crato, alentadas 779 páginas. E, para enriquecer seu ensaio sobre a criação popular nordestina, o autor mobilizou monumental iconografia direta ou indiretamente ligada a Cego Aderaldo. Acervo de imagens de um cantador (e seu entorno) jamais reunido em um só volume. O álbum, editado pela Interarte, traz ainda CD com o longa documental que o cineasta dedicou ao popular conterrâneo.

Ao regressar, agora pela vereda ficcional, à vida do Cego Aderaldo, Rosemberg Cariry promete dar asas à imaginação. "Vou contar em A Lenda do Cego Cantador" - promete - "a história real e imaginária do poeta, cordelista, trovador, músico, projecionista de filmes, empresário, negociante, propagandista, dono de circo, violeiro-cantador-repentista Aderaldo Ferreira de Araújo". O roteirista não exagera. O cego exerceu todos estes ofícios. Desprovido da visão desde os 18 anos, mesmo assim dedicou-se à projeção de filmes e foi, inclusive, fonte inspiradora (e transfigurada) de um dos longas ficcionais de Cariry: Cine Tapuia (2008).
O cego do Crato teve infinitos e importantes pares e amigos, dispostos a tudo para perpetuar sua obra. A começar por Rachel de Queiroz (1910-2003), amiga sincera que o recebia em sua fazenda Não Me Deixes, no Quixadá.

Em uma das crônicas que dedicou ao conterrâneo em sua importante coluna na revista O Cruzeiro (outubro de 1959), a autora de O Quinze registrou: "Ele é a voz cantadeira de toda uma gente que não tem outra forma de expressão própria, que não lê nem escreve e, na sua necessidade de poesia e comunicação, fala e se entende pela boca do cantador. Ele é o lírico, o épico, o noticioso, o cômico".
Cariry será obrigado a resumir a acidentada e longa saga do Cego Aderaldo em sua "narrativa ficcional e lendária". Para materializar em imagens "o desejo de revelar também o mito e a narrativa romanceada", poderá abrir o filme com o doloroso momento em que o jovem perdeu a visão frente à caldeira de uma fábrica, na qual era trabalhador (mal) assalariado.

Ou será que escolherá a tragédia da perda da mãe, aquela que cuidava do filho cego, em momento em que a pobreza da família era humilhante? Tão humilhante, que para conseguir mortalha para embalar o corpo materno, Aderaldo dirigiu-se a local onde paroaras (cearenses que iam trabalhar nas seringas da Amazônia e conseguiam acumular dinheiro) se divertiam. Mesmo com o coração mortificado, se dispôs a tocar sua viola e cantar em troca de tostões que lhe permitissem "amortalhar a mãe".
Se preferir momento menos sofrido, Cariry poderá abrir seu filme com as festivas chegadas do Cego Aderaldo à fazenda Não Me Deixes. Rachel de Queiroz relembrou, também em crônica, o que acontecia com os trabalhadores quando o Cego aparecia por lá: "Os homens largavam a enxada nos roçados, as mulheres deixavam o milho no pilão, esquecendo o pão e a hora da janta. (...) E quando se deu fé, o terreiro e o alpendre estavam cheios de gente, e Aderaldo, sentado na cadeira de lona, dava a sua grande risada e contava causos e desfiava motes e depois pegava no grande violão e cantava e rememorava desafios, e fazia, como é de praxe, a louvação dos presentes".
Respaldado pelas pesquisas que alimentaram seu longa documental, Rosemberg garante "dramaturgia que beberá nas fontes da oralidade", ao mesmo tempo em que "retomará uma estética mais ousada, elaborada a partir das manifestações dramáticas populares".

Se conseguir transformar seu roteiro em realidade (apesar das dificuldades impostas por tempos de crise econômica e governo avesso à produção cultural), o realizador cearense promete "um drama figural do sertão, com estrutura de musical popular, alegórico e transbarroco".
Cariry já visualiza "sequências e cenas compostas ao modo do romanceiro do cordel", tendo como "fio condutor da história, o grande amor de Aderaldo por Angelina, um amor trágico e irrealizado, que lhe marcará, para sempre, a vida, a poesia e a morte".
Angelina Coelho de Moraes, há que se esclarecer, foi o amor de juventude de Aderaldo. Mas ao vê-lo cego, a moça desistiu do casamento. Casou-se com outro. O Cego morreu solteiro e alimentou-se, pelos muitos anos que viriam, daquele amor de juventude.
Rosemberg Cariry prevê, em seu drama figural, o registro das principais criações ("cantorias") do Cego Aderaldo, interpretadas por grandes nomes da viola contemporânea do Nordeste.
É mais que natural que Rosemberg Cariry, assim como Rachel de Queiroz, ame as cantorias de Cego Aderaldo. Afinal, na qualidade de conterrâneos do artista, ambos tiveram proximidade com seus versos e seu original toque de viola (rabeca, ou bandolim). Mas o que levou dois fluminenses como Baden Powell (1937-2000) e Egberto Gismonti, a se interessarem pelo cantador nordestino a ponto de imortalizá-lo em composições que Zuza Homem de Melo e Tárik de Souza (ver Ponto de Vista) consideram verdadeiras obras-primas?
Tudo indica que Baden Powell conheceu a arte do Cego Aderaldo graças ao antológico Show Opinião, que estreou em Copacabana, em dezembro de 1964. O espetáculo, dirigido por Augusto Boal, uniu Nara Leão, Zé Ketti e João de Vale, e transformou-se em espécie de "missa leiga".
Perplexa com o triunfo do golpe militar de 1964, a esquerda dedicada à criação artística resolveu produzir espetáculo capaz de somar música e protesto político, mas sem perder o humor. Entre os momentos mais divertidos do Show Opinião está o que evoca peleja entre o Cego Aderaldo e Zé Pretinho, materializada em mais de 370 versos (exatas 63 sextilhas rimadas). Nara, cautelosa, enfrenta o trava-língua "Quem a paca cara compra/ cara a paca pagará", com variações ("Quem a cara cara compra/ Caca cara Cacará"). Estes versos fazem parte da Peleja de Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum (este debocha da cegueira de Aderaldo, que responde com impropérios sobre a negritude do contendor, mais politicamente incorreto, impossível). O público que, todas as noites, lotava o Teatro Opinião, ria satisfeito da trinca Nara-Zé-João evocando o cantador cearense.

Como Baden participou de shows do Grupo Opinião (e deve ter ouvido infinitas vezes o elepê que resultou do espetáculo, em 1965), era natural que conhecesse e admirasse a obra do Cego Aderaldo. Além do mais, graças ao apoio de políticos e, em especial do poderoso paraibano Assis Chateaubriand e de seu império radiofônico e televisivo, o Cego teve viagens patrocinadas ao sudeste brasileiro. Viajou a São Paulo e/ou Rio por cinco vezes.

Baden compôs Cego Aderaldo, umas mais sublimes faixas de seu clássico 27 Horas de Estúdio em 1969. A composição de mesmo nome (Cego Aderaldo), do multi-instrumentista Egberto Gismonti, foi criada em 1981. O artista do Carmo era, naquele momento, um astro internacional, festejado por artistas da Índia, Polônia, Itália, Alemanha, França, Noruega, etc.

Numa tarde de domingo, em março deste ano, conversamos, por telefone, com Gismonti. O virtuose do violão confessou ter poucas lembranças da origem de Cego Aderaldo, uma de suas "800 composições". Gismonti não deu o relevo merecido à sua composição, gravada por muitos e grandes artistas, incluindo Ravi Shankar e a voz aliciante da polonesa Grazyna Auguscik.

Por Maria do Rosário Caetano (pesquisadora e crítica de cinema)