quarta-feira, 27 de março de 2019

UM CABRA DE LAMPIÃO



O irreverente ZUCA IDELFONSO, personagem do livro O BAÚ DA GAIATICE

A HERANÇA DO PARAÍBA
(É feio, mas é bom...)


Há cerca de 15 anos eu realizava uma pesquisa sobre o anedotário dos sertões de Canindé e Quixeramobim, em especial da nossa família, para dar sequência ao trabalho iniciado no livro O Baú da Gaiatice, que tivera ótima aceitação junto ao público.
Foi aí que o tio José Bruno Vianna me contou a curiosa história do caboclo Chico Paraíba e de umas glosas feitas pelo Zuca Idelfonso, após a morte do sujeito, tratando de suposta herança deixada por ele. Chico Paraíba foi um andarilho, um camarada do oco do mundo que apareceu em meados da década de 1920 na Fazenda Cacimbinha puxando apenas uma corda... a cachorra havia morrido de fome no caminho. Como se não bastasse, vinha doente de sezão, impossibilitado de trabalhar, porém conseguiu pousada na casa de meu bisavô Olympio Vianna, onde se restabeleceu e mostrou ser homem disposto e trabalhador. Ontem, dia 25 de março de 2019, fui novamente à terra de meus antepassados com o objetivo de entrevistar meu tio Luiz Gonzaga Vianna (Tio Liu) já nonagenário, porém com a memória em perfeito estado e a dicção impecável. Ele é um verdadeiro guardião da história de nossa família e dentre os assuntos abordados na entrevista, veio à baila o curioso episódio do Chico Paraíba.
Aliás, não foi bem uma entrevista, mas uma conversa descontraída entre parentes, onde puxei pela memória do meu interlocutor, relembrando assuntos dos quais ele foi testemunha ou soube através de informações colhidas junto aos antigos.


Casa da Cacimbinha, construída por meu bisavô Olympio Vianna


Várzea do Riacho Cacimbinhas


Com minha mãe Hathane e meu tio-avô Luiz Gonzaga Vianna

Parte desse relato encontra-se no livro Mala da Cobra – Almanaque Popular, obra que ainda permanece inédita, apesar de ter sido escrita em 2003. Na época eu escrevi esse texto intitulado A herança do Paraíba (É feio, mas é bom), do qual apresento alguns trechos:

Segundo o relato do tio José Bruno, Chico Paraíba era trabalhador e extremamente usurário, um pirangueiro de peso e medida, portanto não lhe foi difícil amealhar alguns cobres depois de alguns meses de extenuante trabalho. O caboclo aplicava suas economias comprando cabeças de gado e jumentos que criava nas capoeiras do Pai Vianna, seu protetor. Trabalhou noutras fazendas da região, tangeu comboios no rumo da serra do Baturité e, ao cabo de alguns anos, já era possuidor de 14 cabeças de gado, um lote de jumentos e um capital avaliado em mais de três contos de réis.
Mas não há bem que sempre dure... Mal alimentado, já que não usufruía de seus haveres da maneira devida, constantemente exposto ao sol e à chuva, acabou contraindo uma infecção intestinal, uma fraqueza crônica ou outra moléstia mais grave que lhe desfigurou o corpo e consumiu-lhe as forças. Tocado pela mão negra do destino, resolveu procurar abrigo na casa de seu antigo patrão, o velho Olímpio Viana, proprietário da Fazenda Cacimbinha. Segundo o Tio Liu, as mazelas do Paraíba podem ter se agravado pelo fato dele não gostar de tomar banho. Ele exalava forte mau-cheiro e o suor não saía direito porque os poros estavam tapados pela sujeira.
 “Pai” Viana o tratou com benevolência e a caridade digna de um verdadeiro cristão, fornecendo-lhe um quartinho isolado na casa velha para abrigar-se e uma pessoa para tratar de sua doença, que todos julgavam ser contagiosa. Quem cuidava do enfermo era o Antônio Bento, evitando que morresse à míngua, sem alguém que pelo menos lhe fizesse um chá ou lhe pusesse uma vela acesa nas mãos.
O Paraíba possuía um verdadeiro “putufu” de dinheiro nos dois bolsos da calça, pois havia passado o seu rebanho bovino nos cobres, ficando apenas com alguns jumentos. Não se apartava de suas economias por nada. Dormia agarrado com os bolsos. Um dia, sentindo que ia morrer, chamou ‘seu’ Vianna e pediu-lhe que liquidasse algumas contas pendentes, mandasse celebrar algumas missas em intenção de sua alma e fizesse bom proveito do dinheiro que sobrasse. O Paraíba morreu, as missas foram celebradas, as dívidas foram pagas e uma parte do dinheiro foi convertida em esmolas.  Viana não queria ficar com aquele dinheiro impregnado do suor do moribundo e ganho a duras penas. Resolveu levar o restante para o Dr. Josias, Juiz de Quixeramobim, para dar o destino que melhor aprouvesse à Justiça. Nesta dita viagem, levou o seu genro Caboclo Vianna, para casar no civil com a minha avó Aurinha, e trouxe umas sacas de cal para caiar o oitão da casa.

Foi o bastante para o maledicente Zuca Idelfonso, falador por natureza, poeta ocasional, aproveitar o ensejo para fazer o “testamento” do falecido Chico Paraíba, dizendo quem havia lucrado com os bens por ele deixados. Quem já leu O Baú da Gaiatice sabe que o personagem em questão tinha um modo peculiar de falar, trocando algumas letras. Eis alguns trechos do irreverente poema:

REFRÃO:
É xeio, mas é bom
Deixe quem quigé falar...

— A herança do Paraíba
Causou grande rejultado
“Giana” pintou a casa
Caboclo xaiu cajado,
E até o Chico Lobo
Que era xeu axilhado (afilhado)
Entrou no xeu testamento
Ganhou um par de calxado:
Uma chinela de pneu
Com o calcanhar furado...
É xeio, mas é bom,
Deixe quem quigé falá!

Os chinelos deixados pelo finado Paraíba eram de pneu, com buracos em forma de meia lua no calcanhar e outros profundos sulcos no local dos dedos. Zé Viana assegurava que na marca do dedão cabia um ovo de capota.



Lampião - desenho de Arievaldo (Direitos Reservados)


A CONFISSÃO DO PARAÍBA
(EX-CABRA DE LAMPIÃO)


Agora vamos à parte mais interessante da história, que foi confirmada por tio Luiz Gonzaga na entrevista gravada na manhã de ontem (25/03). Apesar de ter vivido nos sertões cearenses por mais de dez anos, pouco se sabia sobre a origem do caboclo, que não gostava de falar do seu passado. Também nunca apareceu parente nem aderente do mesmo. Quando estava às portas da morte, meu bisavô Olympio, que era muito religioso, mandou um portador a cavalo no Quixeramobim buscar o padre Jaime Felício, vigário da paróquia, para confessar o moribundo.
Chico Paraíba nunca havia se confessado, em toda a sua existência, mas sentindo a aproximação da morte consentiu em ser ouvido em confissão pelo dito sacerdote. Apontando o local onde o padre se sentara, após a confissão, tio Liu me repetiu o que já fora dito anteriormente pelo Zé Vianna:
“— O padre Jaime disse ao papai que o Paraíba teria um fim de vida bem-aventurado, porque fora ouvido em confissão e se arrependera de seus pecados. E disse que o havia instruído para pedir bênçãos para todos da casa, quando chegasse no outro mundo. Foi então que o padre Jaime fez a grande revelação. Chico Paraíba confirmou, durante a confissão, o que já dissera a amigos mais chegados: havia pertencido ao bando de Lampião em determinado período da sua vida, e que resolvera viver incógnito nos sertões do Ceará, onde não seria perseguido por seus inimigos dos tempos do cangaço.”
Eu dou total credibilidade a essa história por dois fatores importantíssimos: primeiro, o relato do Tio Luiz Vianna não destoa em nada do que me foi dito quinze anos antes por José Vianna, já falecido. Ambas as versões são de uma linearidade impressionante, nos menores detalhes. Em segundo lugar, devemos levar em consideração que o caboclo só fez essa revelação já às portas da morte, no momento de sua confissão. Foi um segredo confiado a um sacerdote. Certamente que o Padre Jaime não revelou outros detalhes da confissão, que deviam ser mantidos em segredo, segundo manda a Igreja, porém não viu mal nenhum em revelar ao protetor de Chico Paraíba a sua verdadeira origem. Cangaceiro, ex-cabra de Lampião, falecido em 1940 na fazenda Cacimbinha, o cabra do ôco do mundo só não levou este segredo para o túmulo devido a confissão que fez antes de receber a extrema unção.
Ao longo de sua atividade como chefe supremo do cangaço, Lampião recrutou centenas, talvez mais de um milheiro de cabras. Muitos morreram em combate, outros foram capturados pelas volantes. E, como em toda atividade guerreira, certamente também existiram os desertores. Cabras que fugiram durante uma refrega com os macacos e resolveram dar novo rumo às suas vidas, bem distantes do teatro da luta, onde ninguém soubesse de suas origens. Seria esse o caso do paraibano que morreu na Cacimbinha? Qual seria o seu codinome durante o período em que pertenceu ao bando do famoso Virgulino Ferreira da Silva?