quinta-feira, 21 de novembro de 2013

UM CONTO DE CÂMARA CASCUDO

 

Um conto do mestre Luís da Câmara Cascudo, para "calanguear" essa quinta feira modorrenta:



LAGARTIXA DE OURO
Luís da Câmara Cascudo

 

Frei Serafim de Catania, da ordem dos capuchinhos, chegou ao Recife em 11 de setembro de 1841, começando a percorrer todo o Nordeste em pregação catequística. Foi o grande missionário dos sertões de pedra, dirigindo as "Santas Missões" que ficaram relembradas nas memórias coletivas das regiões visitadas. Irradiava energia, persuasão, bondade. A fama de fazer milagres derramou-se.

O brigadeiro Dendé Arcoverde, rico, poderoso, com um exército de guarda-costas e um harém de seis mulheres, domina o solar de Cunhaú como o derradeiro barão feudal. Frei Serafim foi visitá-lo. Quando o deixou, Dendé Arcoverde dispersou seu bando guerreiro, despediu as mulheres, desarmou-se e nunca mais mandou matar alguém, exceto a si próprio, pois suicidou-se, para não ser preso, a 26 de julho de 1857.

Frei Serafim, a 21 de fevereiro de 1858, benze a primeira pedra da futura matriz do Ceará-mirim, a mais linda igreja da província.

Foi de inexcedível dedicação na epidemia de cólera-morbo.

Henrique Castriciano, estudando O último enforcado (Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, V, nº 2, 381, Natal, 1907), registra que a mulher Josefa Maria da Conceição avisara ao amásio Alexandre José Barbosa que não matasse a vítima, "porque o santo padre frei Serafim estava a chegar e podia adivinhar". Era esta a fama do capuchinho já em 1845.

Velho, doente, cansado, frei Serafim voltou à Itália, para sua amada Catania, na Sicília, onde faleceu a 14 de maio de 1887.

Veio várias vezes ao Rio Grande do Norte e, entre outras, deixou esta lenda de sua intervenção miraculosa.

Um homem de bem, pobre, com família numerosa, estava sendo impaciente de receber os 100 mil réis, e não sabia que fazer para enfrentar a vida difícil. Foi procurar frei serafim de Catania no consistório da igreja de Santo Antônio, expondo, com lágrimas, sua desventurada situação. O frade ouviu-o, animou-o e erguendo-se, olhou ao derredor, vendo apenas uma lagartixa que balançava a cabeça numa janela. O capuchinho fez o sinal da cruz e o animal imobilizou-se como feito de bronze. Frei Serafim embrulhou-o num pedaço de papel e entregou-o ao necessitado penitente.

"Peça dinheiro emprestado sob este penhor e livre-se da miséria. Daqui a um ano volte, trazendo o objeto e o coloque no altar, nos pés de Santo Antônio. Promete?"

"Juro pela salvação da minha alma!" — respondeu o pobre homem.

Correu ao agiota, pedindo a fortuna de 500 mil, deixando um depósito. O onzenário abriu o embrulho e encontrou uma lagartixa de ouro, com a boca de rubis e os dois olhos de brilhantes. Valia o triplo. Pesou, provou, experimentou e deu os 500 mil réis ao freguês. Este, com menos de um ano, estava livre de preocupações. Possuía casa própria, gado, uma loja, a família tranqüila e feliz, cavalo de sela para o trato dos negócios. Foi ao usurário, liquidar o débito. Este propôs comprar a lagartixa de ouro. "Não é minha", explicou o abastado negociante.

Recebendo o penhor, foi à igreja de Santo Antônio e, feita a vênia, depôs o pacote aos pés do orago. Imediatamente o papel mexeu-se e dele saiu, esfomeada e rápida, uma lagartixa, viva e veloz, em desabalada carreira. O homem percebeu o milagre de frei Serafim de Catania e, ajoelhando, rezou longamente, agradecendo a mercê.

O inimitável Ricardo Palma conta episódio semelhante ocorrido em Lima, no Peru. O taumaturgo é outro franciscano, frei Gomez, nascido em 1560 na Estremadura e falecido a 2 de maio de 1631. Era frade leigo, enfermeiro durante quarenta anos. (Ricardo Palma, Flor de tradiciones, "El alacran de Fray Gomez", p.88-94, México DF, 1943).

Um castelhano honrado e velho veio procurar frei Gomez, suplicando-lhe o milagre de uma esmola de 500 duros por seis meses. Frei Gomez nunca tivera uma peseta. Ouvindo o suplicante, comoveu-se e, arrancando uma página de um livro, encolveu com ela um escorpião que atravessava o recanto. Era o lacrau agressivo, anzol na cauda, tesouras abertas, pequenino e feroz. O homem levou o escorpião ao agiota pelo empréstimo de 500 duros.

Transformara-se numa jóia de rainha. Er aum broche, com forma de lacrau. O corpo formado de uma esmeralda magnífica, engastada em ouro, a cabeça de brilhantes com dois rubis por olhos. O agiota ofereceu emprestar-lhe o quádruplo. O homem aceitou unicamente os 500 duros e tão bem os movimentou que estava farto e sereno de economia no fim do semestre. Foi pagar a dívida e recobrar a jóia.

Levou-a a frei Gomez. Este repôs o escorpião no peitoril da janela, abençoou-o: "Animalito de Dios, sigue tu caminho..."

E o lacrau recomeçou a andar livremente pelas paredes da cela.

Não ponho dúvidas em crer que a divina intervenção ter-se-á realizado na cidade do Natal na segunda metade do século XIX e na cidade de Lima nos princípios do XVII.

Mas há outra, irmã e bem expressiva, René Basset (Mélanges africains et orientaux, p.307, Paris, 1915), comentando E. Gaultier no Contribution à l’étude de la littérature copté (Cairo, 1905) divulga o caso que na América do Sul tivera personagens como frei Gomez e frei Serafim de Catania.

É uma tradição cristã no Egito. Ligada ao ciclo taumatúrgico de São Basílios.

Um pobre, protegido pelo santo, toma emprestado 40 dinares a seu padrinho, dando de caução uma serpente ordinária que São Basílios tornara de ouro, com a cabeça de esmeralda e os olhos de rubis. No fim do ano, o agiota, levado pela avidez e aconselhado pela mulher, recusou devolver o penhor, raro e precioso. Mas a jóia voltou a ser serpente, venenosa e viva. O episódio dos coptas egípcios mantém as mesmas pedras, esmeralda, rubi e o ouro. O ensinamento moral copta em nada altera a substância temática das tradições brasileira e peruana.

(Cascudo, Luís da Câmara. "Lagartixa de ouro". O Estado de São Paulo, 12 de outubro de 1958
 
 

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Aniversário de LEANDRO e do FITICO


 
19 de novembro, dia da Bandeira nacional, é a data de aniversário do maior poeta da Literatura de Cordel, Leandro Gomes de Barros (1865) e também de meu bisavô Francisco de Assis de Souza — o Fitico do Castro —, que embora não tenha se dedicado a esse ofício, também fazia os seus versinhos...  testamentos de Judas e segundo alguns teria escrito também A Onça da mão torta e O Boi Vermelhinho, dois cordéis que tiveram certa repercussão no limiar do século XX, mas que circularam somente de forma manuscrita em cadernos de família.

De Leandro eu já falei bastante neste blog e estou prestes a lançar a sua biografia pela Editora Coqueiro, do Recife. O projeto inicial previa, além da biografia, uma Antologia Comentada do grande poeta. Estou tentando captar recursos para executar essa idéia.

Voltemos ao meu bisavô, figura que desejo homenagear nesta data dos 143 anos do seu nascimento. O velho Fitico era um danado… Possuía uma pequena, porém ótima biblioteca com livros editados no Brasil, Portugal e até Alemanha, quase todos de temática sacra e gostava muito de escrever, em bom português e ótima caligrafia. Olympio Viana (o Pai Viana da Cacimbinha), um de meus bisavós maternos, também tinha esse hábito. Quanto ao Miguel do Castro dizem que também era poeta de nomeada, pois quando estava moribundo ainda teve fôlego para compor essa quadrinha para uma comadre que viera visitá-lo: 

— Quatro coisas me aborrecem,
Fora faca que não corta...
Dormir cedo, acordar tarde,
Mulher feia e besta torta! 

— Pegue esta pra você, comadre! — Teria dito o enfermo. 
 

Francisco de Assis de Sousa nasceu no dia 19 de novembro de 1870 e casou-se com uma sobrinha, Maria das Mercês Viana de Sousa, filha de sua irmã Francisca, mais conhecida como ‘Mãe Souza’ e de Miguel Martins Viana. A moça era 14 anos mais jovem, pois nascera no dia 18 de fevereiro de 1884. Ainda adolescente, Fitico estudou na capital, nos bons tempos da Fortaleza descalça, quando chegou a conhecer a famosa Marica Lessa (Maria Francisca de Paula Lessa), personagem que inspirou Manoel de Oliveira Paiva em seu célebre romance Dona Guidinha do Poço. Já senil e amalucada, a velha ainda teimava em protestar inocência no caso do assassinato do seu marido, o coronel Domingos Victor Abreu, morto pelo escravo Corumbé, a mando da própria Marica Lessa e de seu amante Senhorinho, segundo se dizia.

Fitico foi contemporâneo e admirador do Padre Cícero Romão e protetor do Padre Azarias Sobreira, o melhor e mais fidedigno biógrafo do patriarca do 'Joaseiro'. Encontrando-o adoentado, ainda adolescente, a caminho do Convento de Canindé, onde foi seminarista, Fitico prontificou-se a cuidar de sua saúde na Fazenda Castro, de sua propriedade. No Castro, o jovem Azarias recebeu calorosa acolhida durante meses, até recuperar-se e poder retornar aos estudos religiosos, pois era esse o seu intento. Quando ordenou-se sacerdote, veio celebrar uma missa na capelinha do Castro, erguida pelo meu bisavô, dedicada à Jesus, Maria e José, capela na qual eu viria a me batizar pelas mãos do padre Vital Elias, então vigário de Madalena. Ali também fiz a primeira comunhão que me foi ministrada pelo Padre Nery Feitosa, escritor e historiador dedicado.

Minha avó Alzira Viana de Sousa Viana (Lima, após o matrimônio) era leitora contumaz dos clássicos do cordel e papai, Francisco Evaldo de Sousa Lima, um apaixonado por cantoria que não aventurou-se pelo mundo com uma viola às costas porque a família (meu avô, principalmente) não foi de acordo. Mas adquiriu um vasto cabedal de livros e folhetos que decorava com grande facilidade e lia ou declamava para os filhos sempre que tinha tempo. Dois de meus irmãos também fazem versos com grande facilidade, são eles Klévisson e Itamar.
 
Casa do Fitico, construída por seu pai Miguel do Castro em 1851
 
 
O BOI VERMELHINHO (TRECHOS)
Autoria atribuida ao FITICO

Caros amigos leitores
Todos prestem atenção
Que agora eu vou contar
A história dum barbatão
Que aconteceu algum tempo
Aqui no nosso sertão,


"Nasci nas Lages dos Lessas
Debaixo de um juazeiro
Minha mãe me disse um dia
Que eu ia ser cangaceiro
E eu prometi a ela
De nunca entrar em chiqueiro.


No dia em que eu nasci
A vinte e sete do mês
Num dia de sexta-feira
Foi esta a primeira vez
Que houve um eclipse total
Em novecentos e seis.

 

O FITICO E SUA FAMÍLIA

Nome: Francisco de Assis de Souza

Nascimento: 19 de Nov de 1870

Morte: 22 de Abr de 1962

Pais: Miguel José de Sousa e Francelina Paulino do Amor Divino

Irmãos: Maria Joaquina do Espírito Santo (Mariazinha), Antonio José de Sousa, Francisca de Sousa, Maria do Rosário de Sousa, Raquel de Sousa, Izabel de Sousa (Zabilinha), Maria de Santana de Sousa, Joaquim José de Sousa (Quinca), José Joaquim de Sousa (Dedé), Maria dos Reis de Sousa

Esposa: Maria das Mercês Sousa Viana

Filhos: Assis, Moça, Mariquinha, Francelina, Alice, Raimundinha, Álvaro, Zezinho, Alzira, Luizinho, Zequinha e Carmelita.

Netos e bisnetos: Uma infinidade, quase tão numerosos como os descendentes do patriarca Abraão.

 

LAGARTIXAS VERDINHAS PELO CHÃO


Poema de Patativa do Assaré ilustrado por Mariza Viana e lançado pelas Edições Demócrito Rocha. Trabalho bastante pitoresco, com belas ilustrações. O véi Patativa entendia do riscado! Sabia muito de poesia e manjava também de engenharia genética...
TRECHOS:
Um calango nas árvores trepou
E ficou a vagar de copa em copa
Qual vaidoso rapaz, que tudo topa,
Lagartixa do mesmo se agradou
E com ele ao seu lado passeou
Pelos matos frondosos do sertão
Surgiu logo uma nova produção
Porque Deus desta forma permitiu
E mais tarde, na Terra, a gente viu
Lagartixas verdinhas pelo chão.
Essa história que eu conto aconteceu,
Foi por isso que um tal naturalista
Exibindo um papel de cientista
De saber o segredo prometeu,
Pelejou porém nada resolveu
A pesquisa do mestre foi em vão
E depois que não teve solução,
Ficou ele a dizer que não sabia
Porque neste Brasil a gente via
Lagartixas verdinhas pelo chão.
(...)