sábado, 29 de junho de 2013

AINDA O CEGO ADERALDO

 
Cego Aderaldo, o mais lírico violeiro
e cantador do Brasil

J. Lindemberg de Aquino

Cem anos já são passados do nascimento do mais famoso dos poetas cantadores e violeiros do Nordeste (o centenário do Cego aconteceu em 1978 – este artigo é de 1977), o Cego Aderaldo. Cearense do Crato, teve por berço o cenário emoldurado de verdes e azuis da Serra do Araripe o cascatear de fontes e regatos cristalinos e a terra histórica, de mártires e de heróis.

Poeta e repentista, o verso saia-lhe natural, rude, rústico e espontâneo, seja a entoar louvores ou a ferrotear os adversários dos incansáveis desafios sertanejos, seja em epigramas vorazes contra os que lhe testavam a argúcia e a inteligência, seja na exaltação das belezas da terra, dos sentimentos diversos ou nos repentes gozados, humorísticos, galhofeiros e ferinos que faziam a delícia dos auditórios.

Na poesia de Aderaldo cintilam faiscações primorosas de uma inteligência inconfundível. Tinham os seus versos configurações geniais, mostrando a lucidez de um espírito observador e analítico, como esses:

O filho do alfaiate — seu brinquedo é com retalho,
O filho do jogador gosta muito é do baralho,
E o filho do preguiçoso só dorme bem no borralho,
O filho do homem praiano, seu vício é comer areia,
O filho da costureira sua roupa é muito feia,
Porque é feita de taco
Que sobrou da roupa alheia
O filho do carteiro — brinca com caixão e saca,
O filho do feiticeiro só fala em urucubaca,
O filho do vaqueiro junta ossinhos, chama vaca…
O filho do ferreiro, seu brinquedo é uma safra,
O filho do pescador aprende a fazer tarrafa,
E o filho do cachaceiro nasce lambendo garrafa…

 

Falando sobre a terra natal de Aderaldo, o grande Jáder de Carvalho diz:

“Cego Aderaldo… de onde era filho? Ele mesmo, nas suas memórias aponta o Crato como o chão onde a parteira lhe apanhou o corpinho nutrido. Mas a terra mesmo da gente não é aquela onde nasce o corpo: é aquela onde nasce a alma. E a alma do cantador famoso veio à luz em Quixadá. Foi na cidade das pedras na cidade do chão duro e salgado, que veio ao mundo a alma do mais agressivo o mais lírico violeiro e cantador do Brasil.

A alma da gente, ó meu leitor — continua Jáder de Carvalho – não brota logo com o corpo, entre as dores do parto: brota na hora em que o menino principia a entender, a sentir o mundo, o céu, o canto dos pássaros, o mugido de uma vaca o relincho de um cavalo, o aboio de um vaqueiro — em qualquer dessas coisas pode estar a raiz da alma. Como pode estar também, no gemido de uma viola, num apito de fábrica, no silvo de um navio no dobrar de um sino, no barulho do mar.

A alma de Aderaldo nasceu — e disso tenho certeza, sob o sol de fogo de Quixadá, ao pé de uma mãe viúva, que, de tão pobre, teve de empregar a dois vinténs por dia o órfãozinho de cinco anos…”

Eduardo Campos, ao analisar o Cego Aderaldo afirma:

“Não se repetia, aí estava a grande vantagem sobre os outros.

Não era cantador das palavras difíceis, dos que se acodem nos dicionários ou nos livros sagrados. Os seus grandes livros de sabedoria estavam na natureza, no estranho mas belo mundo que ele, a rigor, aprendeu a ver através dos outros”.

O Aderaldo sempre cantou sua cegueira em diferentes ocasiões.

Eis algo a esse respeito, de sua autoria:

Correu de mim a fortuna a luz dos olhos perdi;
Céus, estrelas, terra e mar
Fugiram, jamais os vi,
Flores jardins, campos e prados de vê-los jamais esqueci.
Deus quer que eu viva sem lua. Sem ver do mundo a beleza.
E permitiu que eu perdesse da vida a maior riqueza,
Já não tenha a quem recorra, nem a própria natureza!

Ou esse outro verso, final do seu soneto, dedicado à sua mãezinha, composto em Maceió em 12 de maio de 1949, Dia das Mães.

Este Dia das Mães, como outros dias,
Santos e puros cheios de afeição,
Abriga o bem de todas as Marias
Cantando rimas para um coração…
Mas minha mãe partiu…
Meus dezoito anos
Trouxeram-me a cegueira, foi-se a alma
Desde então eu a vejo entre meus planos
Mas somente com os olhos de minha alma!…

Grande poeta e cantador Aderaldo viveu mais de 70 anos a percorrer os sertões, em desafios e violas, a entoar versos e a recitar poemas imortais.

Aderaldo no Céu é o título de trabalho de Pantaleão Damasceno, jornalista cearense em homenagem ao poeta após a morte. Nele Damasceno afirma:

“Cego Aderaldo, por uma dessas coincidências da vida, nasceu no dia de São João e morreu no dia consagrado a São Pedro. Tratando-se do mês das tradicionais comemorações juninas, tudo indica que o saudoso violeiro, vai encontrar o Céu em festa e de portas abertas, podendo o Santo Chaveiro, eufórico, repetir as mesmas palavras que proferiu à chegada de Irene à porta do paraíso segundo o poeta Manuel Bandeira:

— Entre, Aderaldo, você não precisa pedir licença.

E o velho cego, agora leve como uma pluma, e agora enxergando tudo, observa com surpresa, aqui e ali, as belezas infinitas do firmamento. E numa espécie de desabafo, manda-nos dizer, em mensagem de fé e esperança, que ‘os mortos vivem não os choreis’”.

Depoimento de outro escritor, Otacílio Colares:

“O Cego Aderaldo era, a nosso ver, o último remanescente daquela grei imensa que nos deu valores como Inácio da Catingueira, Francisco Romano, Dantas Quezado e a negra Chica Barroso. Forte como um carvalho, franco e simples como um eterno menino grande, passou ele a existência a transmitir alegria, em versos que lhe saíam da alma como o arrojo dos rios em cheia, e soube morrer tranquilo e sereno como um justo, compenetrado de haver realizado a sua destinação, na terra que ele tanto amou e decantou. Tipo acabado de trovador da velha cepa, com a sua morte, podemos estar certos, encerrou-se um ciclo dos grandes cantadores aqueles que tinham como característica primordial a singeleza no viver e no interpretar a sua arte”.

Extraordinário rapsodo dos sertões, Aderaldo eternizou-se pelo muito que produziu, e que está, infelizmente disperso em livros, jornais e revistas. Em 1962, foi lançado um livro com seus versos, com comentários de Raquel de Queiroz e Paulo Sarasate. Mas esse livro hoje raro, não contém um milésimo de sua fertilíssima produção poética, derramada em mais de 60 anos pelo Brasil inteiro. Sua vida cantou a dor, de ver a pobreza rondando-lhe a infância desventurada, o pai, surdo e paralítico, a mãe pobre e desassistida e a cegueira chegar-lhe aos 18 anos de idade. Mas a tudo resistiu, valendo-se da voz, inspiração, inteligência e lucidez, para com a viola, exaltar o sertão e construir o seu mundo.

Humorista fez da ironia a suprema virtude nos versos, e sentia-se que, com tato e olfato aguçado via melhor do que os que tem olhos. Ao ser apresentado à noiva de um cidadão, sentindo-a robusta e forte; versou:

Doutor, esta sua noiva
É uma linda cachopa,
a gente olhando seus seios
Assim por cima da roupa,
é ver dois cocos na praia
Dentro dum saco de estopa.


Se eu me casasse doutor
Minha mulher era feia,
Casar com mulher bonita
toma a freguesia alheia
Cego com mulher bonita
É plantar feijão de meia…

Trovador inesquecível dos sertões, Aderaldo Ferreira de Araújo, era este o seu nome, nasceu em Crato a 24 de junho de 1878 e faleceu em Fortaleza, praticamente indigente*, a 29 de junho de 1967, sendo filho do casal Joaquim Rufino de Araújo, alfaiate, e Maria Olimpia de Araújo. A sua rua de nascimento foi a antiga Pedra Lavrada, das mais antigas do Crato, que tem o Riacho Granjeiro às costas e é hoje chamada Pedro II. Encantou os auditórios mais seletos de todo o  Brasil e percorreu todos os sertões, vilas, sítios e fazendas, cantando, encantando com sua verve, seu humor e sua imensa produção poética. O que produziu garantiu-lhe a imortalidade e dele disse, em versos, na sua despedida, Ladislau Vieira:

Já não vibra a viola do
Nordeste nas praças e nas casas das fazendas
e que nas lojas redobrava as vendas
tangida pelas mãos do antigo mestre.
A araponga de cantar silvestre
Na sua voz de metal pelas contendas tornou-se muda,
De mudez agreste
Na sua voz de metal pelas contendas.
Não mais se animam velho e criaturas
Nas noites de sermões enluaradas
Nos fogos de São João pelas calçadas…
Pois finou-se o Aderaldo, ao fim das danças
Ninguém jamais na terra o encontrará
e a “Parca a paca cara pagará…

Aquino, J. Lindemberg de. “Cego Aderaldo, o mais lírico violeiro e cantador do Brasil”. Jornal do Commercio. Recife, 25 de junho de 1977


 

* A respeito dessa afirmativa, de que o cego teria morrido como indigente, vejamos o que diz o mestre Alberto Porfírio em seu livro ‘Poetas populares e cantadores do Ceará’:

“Em Fortaleza, quando adoeceu para morrer, foi colocado no apartamento Eduardo Salgado da Santa Casa de Misericórdia, quarto 6, onde, por conta do industrial Fernando Pinto, foi assistido pelos médicos especialistas Dr. Farah Otoch e Dr. Eudásio Barroso, muito ao contrário do que se fala por aí, dizendo que o velho poeta fora internado e morrera como indigente.”

VIVA RAULZITO

  
Se vivo fosse (ele era muito vivo), Raulzito estaria completando 68 anos neste mês de junho. O "canceriano sem lar" era um homem questionador, de espírito inquieto e mesmo sendo um seguidor do Rock, jamais negou suas raízes nordestinas, tendo, inclusive, influência do CORDEL, como se vê nesse artigo de Marco Haurélio, já publicado aqui no blog:
 
Peleja de Zé Limeira com Zé Ramalho da Paraíba
Arievaldo Vianna - Fortaleza
Tupynanquim Editora

Texto de apresentação do cordel, escrito
por ZÉ RAMALHO, em 2000


Esse cordel de Arievaldo é muito engraçado e interessante. Achei curioso quando recebi os originais, pela riqueza de imagens e habilidade nas modalidades de cantoria aqui apresentadas.

Sextilhas, martelo agalopado e uma das mais argutas e perigosas: "O Cantador de Vocês", que exige atenção redobrada dos cantadores quando a estão usando. Fico lisonjeado pelo modo como apareço nesse libreto numa peleja "virtual" com o lendário Zé Limeira, personagem que tanto me inspirou ao lado dos grandes catedrátidos (Drummond, Vinicius).

Parabéns ao Arievaldo por ser um cultor desse universo poético-popular, que precisa de gente como ele para se manter na cultura e formação do povo simples e bom do nordeste brasileiro.

 Zé Ramalho
Rio de Janeiro, março de 2000
 

 

 
Peleja de Zé Ramalho com Zé Limeira

Cordel - 04/2000
Arievaldo Viana

Glorioso Santo Afonso
Da Siqueira do Tetéu
Chica Bela, Neco Filho
Meu "padini" Cabra Miguel
Ajudai a minha lira
Pra rimar mais um Cordel...

Eu falo de uma peleja
Cantoria de primeira
Que houve no ano passado
Lá na Serra do Teixeira
Entre o cantor Zé Ramalho
E a alma de Zé Limeira.

Eu estava um dia na feira
Traçando um velho baralho
Soprou uma ventania
Mais quente do que borralho
Chegou ali de helicóptero
O Cantador Zé Ramalho.

Desceu e foi se sentando
Bem na ponta da calçada
O cabelo "arrupiado"
E a viola bem afinada
Disse: Marquei um encontro
Com uma alma penada!
 
(...)

 

sexta-feira, 28 de junho de 2013

O CEGO ADERALDO

Aderaldo Ferreira de Araújo
(* 24 de junho de 1878 + 29 de junho de 1967)
Ilustração: Jô Oliveira
 
ADERALDO, O MAIOR CANTADOR DE TODOS OS TEMPOS

 
Por Alberto Porfírio

 

No dia 30 de junho de 1967, o dia amanheceu nas ruas de Fortaleza com os jornais trazendo a seguinte manchete:

“MORREU O CEGO ADERALDO, O MAIOR CANTADOR DE TODOS OS TEMPOS”

Essa homenagem que tanto enaltece aquele poeta, causou celeuma nas reuniões de cantadores de todo o Nordeste brasileiro.

Eram poucos os profissionais da viola que não se mostraram contrários ao que, naquele dia, publicaram os jornais do Ceará em relação ao famoso cego cantador desaparecido. Eles achavam que isso não estava certo. Que o Cego Aderaldo não era merecedor daquela homenagem, quando existiam um Severino Pinto e outros, como os irmãos Batista Patriota e muitos que, como o Aderaldo, já haviam desaparecido e eram, também, estrelas de primeira grandeza.

Eu, por minha parte, não sei se com isso o povo do Ceará fez ou não justiça para com o célebre menestrel cearense.

Também quando foi morto em Sergipe, em 1938, o famigerado bandoleiro Virgulino Ferreira, semelhante manchete inundou toda a imprensa brasileira. O título de maior cangaceiro de todos os tempos, não queria dizer que o Lampião fosse invulnerável. E que nunca se tenha amofinado e corrido para se defender dos ataques e tiroteios de policiais de vários estados que o perseguiam.

O Cego Aderaldo eu conheci. E muito de perto. Tenho a honra de dizer que o acompanhei nos anos de seu apogeu como cantador e poeta.

(...)

Em 1933, quando vinha da romaria que fazia anualmente a Canindé, em Itapiúna, na Pensão da Quixabeira, encontrou-se com Ignácio Leite, cantador potiguar que o esperava. O próprio Aderaldo depois nos relatou:

“Encontrei um peso!... Vi-me em dificuldades ante aquele adversário que me esperava prevenido. Mas - dizia ele – falo sem exagero. Contei com oitenta por cento das palmas (aplausos) e saí como vencedor, quando eu não era melhor cantador do que ele!... Por que isso?”

E continuava:

“Geralmente o bom repentista é somente isso. E, sem que tenha boa voz e saiba fazer a entonação no instrumento que toca, o cantador nunca poderá agradar convenientemente ao seu público ouvinte.”

O cego tinha razão em seu argumento. Conhecemos grandes repentistas que não sabem tocar. E que usam o instrumento apenas para lhe estimular a verve poética. E dá-se que, em meio a calorosos debates, humilham-se diante do seu opositor pedindo-lhe para que a afine a viola.

O Cego Aderaldo quando moço, tinha uma voz forte e agradável e ainda tocava, regularmente, todos os instrumentos mais comuns em sua época. Aliás, a mais de duas dúzias de filhos adotivos ele ensinou a tocar desde o violino, instrumento em que se iniciara, passando por todos os instrumentos de cordas, até o clarinete, instrumento de sopro.

O gramofone com o seu disco, assim como o cinema, embora mudo, ele apresentava aos matutos. Sem falar da Literatura de Cordel, que era também vendida por ele aos sertanejos cooperando no aprendizado da leitura. Assim era o Aderaldo, uma espécie de missionário, pelo que lhe são merecidas todas as homenagens.

(...)
 

É, por exemplo, do cantador João Firmino, também cego, o seguinte martelo que conseguimos colher em Brasília, junto a amigos e conterrâneos que assistiram ao enterro do Cego Aderaldo no Cemitério São João Batista (no dia 30 de junho de 1967):
 

“Foi a forte aroeira que ruiu
A contato do gume do machado.
Foi o ferro melhor já fabricado
Que o mercado do mundo jamais viu;
Foi  o trem, sem destino, que partiu,
E ao longo da estrada deu o prego;
Como Homero, também, ele era cego
A quem todo o seu povo admirava...
Para ser o próprio Homero só faltava
Ao invés de cearense ser um grego!”
 

O Cego Aderaldo foi um ‘assum preto’. O destino lhe furara os olhos para ouvi-lo cantar melhor e deleitar, por alguns tempos, os moradores desse Nordeste moído que se alimenta de cantos, sonhos e esperanças!

(...)

 

In Alberto Porfírio -  “Poetas Populares e Cantadores do Ceará”, editora Horizonte, Brasília, 1978.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

NO TEMPO DA LAMPARINA

Foto: Antonio Carlos Alves
 
Hoje, 27 de junho, participei em Caucaia de um treinamento pedagógico dos monitores do projeto MOVA BRASIL, coordenado pelo Sindipetro-CE/Instituto Paulo Freire. Fiz um recital de poesia matuta, estrofes engraçadas recolhidas da cantoria e, claro, muita literatura de cordel. Uma das professoras presentes, Marineide (acho que é esse o seu nome) pediu-me para postar aqui no blog o poema "da Cunceição minha véia", cujo título ela não lembrava. Disse-lhe que o poema em questão é "NO TEMPO DA LAMPARINA", uma das melhores obras da lavra do mestre Alberto Porfírio. Eis o poema:

NO TEMPO DA LAMPARINA
Autor: Alberto Porfírio
 
A Cunceição minha véia
A fia do véio Joaquim
Ela nunca foi bonita,
Era a feiúra sem fim
Mas acho que só a mamãe
Era tão boa pra mim.
 
A Cunceição era dessas
Da boca cuma gamela
Cangote cuma de touro
E os quadri junto as custela.
 
Mas se eu vinha d’uma viagem
E pisava no terreiro
Na porta da nossa casa
Era o que via primêra
Ela vindo me abraçá
Cum seu amô verdadeiro
Inté lavava os meus pés
E dispois butava chêro.
 
Passemo assim muntos anos
Nós vivia munto bem.
Ela era munto feia!
Mas eu era feio tombem!
Fumo assim inté o capeta
Vim de lá cum suas paiêta
Pra mexê nosso xerém.
 
Um dia eu fui a uma festa
Na casa do Zé Romeu
Lá eu vi uma cabôca
Qui nunca mais me esqueceu...
Eu oiei pros  zóio dela
Ela oiou pros zóio meu
Minhas mão ficaro gelada
Meu corpo todo tremeu...
Quem nunca teve paixão
Diga que nunca sofreu!
 
Nhô moço, preste atenção,
Numa coisa qui eu dei fé
Pode um home ser valente
Cuma foi o Josué,
Num tem medo dôto hoje
Mas tem medo da muié!
Só dá dessas dezoiada
Adonde ela num tive.
 
Entonce num é preciso
Dizer o qui se deu mais,
Num sei qual o fuxiqueiro
Levado do Satanás
Que vai contá as muié
Tudo que os home faz.
Só sei que cheguei em casa
Meu rancho num tava em paz.
 
A muié, cuma uma doida,
Falando em meus procedê
Chorava, se lastimava,
Falava inté em morrê
Eu tombem, arripindido,
Sem tê nada qui fazê
Só pruquê num tinha jeito
Pra mode mim defendê.
 
Ela dizia: - Seu cabra!
Eu lhe trato munto bem
E ocê, lá pelas festas,
Faz da sua muié ninguém!...
 
Vou lhe dizer uma coisa:
Se ocê num prometê
Qui num faz mais u’a desta
Num vivo mais cum ocê
Vou pra casa dos meus pais
Nunca mais você me vê!
 
Eu iscuitava essas coisa
E ficava arrependido
Mas num podia disfazê
O que já tinha fazido!
 
Inté que eu dixe pra ela:
- Meu bem, vou lhe prometê
Haja festa adonde houve
Só vou se levá você
E se eu assim num cumpri
Pode aí tudo fazê
Pode inté me açoitá
Qui eu num tenho o que dizê.
 
Ela cum essas promessa
Se tornou mais consolada
Mas num falou mais cum eu
Sempre entusiarmada
Butava o almoço na mesa
E ia cumê separada
E de noite, foi drumi
Lá noutro quarto, apartada!
 
Agora, ói, meu senhô,
Cuma foi meu sofrimento,
Passava as noite acordado
Sem madorná um momento
Sintindo no coração
A dor do arrependimento.
 
Qui muié alpiniosa!
Me butou nas agonia
Se eu chegasse na cozinha
Ela pra sala saía
Se eu voltava pra sala
Ela ficá num queria
Eu, já quage sem juízo
Ia drumi, num podia,
Cuma qui dois intrigado
Passemo assim oito dia!
 
Agora, nhô moço, agora
Mim dê licença qui eu diga
O qui foi qui eu inventei
O que foi qui eu pratiquei
Mode acabar cum a intriga.

 Ilustração: Arievaldo/Klévisson Viana
 
Toda muié neste mundo
Tem medo de assombração
Sabe o quê qui eu me lembrei?
Foi de inventá uma visão.
 
Garrei logo a lamparina
E fui botá lá na cunzinha
Mermo no pé da parede
E amarrei cum u’a linha.
 
Eu cá de fora puxando
Ela vinha se arrastando
E cum a zuada qui fazia
A muié de lá ouvindo
Mermo estando drumindo
Ficá só num arresistia.
 
Foi mermo cuma eu pensei,
A lamparina rolava
Ela chamava por mim
Eu de cá me levantava
Agarrava a lamparina
E no mermo canto botava.
 
Assim, nas duas ou três vez
Ela cum medo, a tremê,
Já perguntava: - Neguim!
Eu vou drumi mais ocê?...
 
- Num sinhora! ...Num sinhora!
Eu de cá arrespondia,
Era dizendo num venha
Mas só eu mermo sabia...
Ela chorava cum medo
A lamparina tinia,
Eu dava tanto suspiro
Que inté sem querê gemia...
 
Quando o medo apertou mermo
Ela a intriga esqueceu
Vei pelo pé da parede
Sentou na beira da rede
E passou a noite mais eu!!!

 

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Texto de LEONARDO MOTA

 
São donos cantadores da palavra
"Se vocês querem poesia de verdade, entrem no povo, passem uma noite por aí, por esses rincões, à beira do fogo, entre violeiros, ouvindo trovas de desafios. Chamem um cantador sertanejo, um desses caboclos distorcidos, de alpercatas e chapéu de couro, e peçam-lhe uma cantiga. Então, sim!" (palavras de Sílvio Romero no discurso de recepção de Osório Duque Estrada na Academia Brasileira de Letras).
 
Os "cantadores" são uma característica do Nordeste. Poetas populares, perambulam pelos sertões cantando seus próprios versos (ou de terceiros), acompanhando-se à viola ou à rabeca. Curioso é que encontram sempre auditório numeroso e interessado — desejoso de assistir aos famosos "desafios" em que cada um procura, pela sua inteligência, vivacidade e senso de improvisação, sobrepujar o adversário.
 
Sem dúvida é o "desafio" que consolida a reputação do cantador. Utilizando a sextilha, o poeta popular quase sempre é de ironia contundente. Como o improviso pode durar horas intermináveis, nesses casos o remédio para evitar a monotonia dos torneios é o cantador entoar seus versos em ritmo especial. Em verdade eles constituem autênticos comentaristas da nossa vida primitiva.
 
Em suas andanças pelo Nordeste, recolhendo material folclórico dos mais variados poetas populares, Leonardo Mota (1891-1948) conseguiu juntar um farto material que transformou em livros, numa admirada homenagem à sabedoria humilde e à filosofia toda pessoal dos cantadores. Sua dedicação era tanta que, certa feita, um repentista paraibano lhe disse depois de um acirrado torneio em que sobrepujara todos os adversários e do qual Leonardo Mota tomara apontamentos taquigráficos: "Bem se diz nesse mundo, sinhô doutô, que tem gente prá tudo e inda sobra. Ora, vossenhoria — um doutô! — pra quê avera de dá! Prá juntar as besteiras que a gente canta e andá fazendo discursos com elas".
 
Leonardo Mota, que foi um apaixonado pesquisador dos cantadores que produzem prosa sertaneja, estudou-os  em sua intimidade, em seu próprio ambiente, convivendo com eles de igual para igual. Nessas ocasiões ele não representava o advogado, o jornalista, o secretário do governador do estado. Era, antes de tudo, um amigo que tratava de viver em contato com aquela gente humilde, esquecido dos títulos e de sua condição social.
 
Foi Leonardo Mota quem, com a sua autoridade, no livro intitulado Cantadores, apontou os por ele considerados como os mais expressivos, naturais e completos improvisadores da poesia do sertão: Anselmo, Passarinho, Sinfrônio e Aderaldo. Os dois últimos eram cegos e tocadores de rabeca. Manejavam o instrumento como os menestréis medievais, ou seja, colocavam-no à altura do peito e não sob o queixo. Os dois primeiros eram violeiros, mas todos tinham muitas características em comum, inclusive uma memória extraodinária.
 
Anselmo, por exemplo, foi o mais famoso vate matuto da região do norte do Ceará e alegava jamais haver vivido do "ufiço", com o que queria dizer que não levava a vida nômade dos cantadores de profissão. Analfabeto, sempre fez versos influenciados pelos desafios e cantigas que ouvira em sua meninice, quando os poetas sertanejos de então passavam pelo lugar onde ele morava. Alguns dos seus versos característicos:

Tem duas coisa no mundo
Que eu nunca pude entendê;
É pade i pro inferno,
Outra é doutô morrê.

Avoa, meu caboré,
Penera, meu gavião,
Palmatora quebra dedo,
Palmatora faz vergão,
Quebra os ossos e quebra a carne
Mas não quebra opinião!...
..............

Preu cantá na sua casa,
Meu patrão, me dê licença!
Se a cantiga não fô boa,
Desculpe, vossa incelença
Que, às vez, as coisa não sai
Do jeito que a gente pensa.

Não tem outro cantadô
Pra me ajudá um tiquim.
O cantá de dois é bom,
O ruim é cantá sozim;
A gente, andando de dois
Encurta mais os camim...

Passarinho é outro da lista dos "grandes". Seu nome de guerra: Jacó Passarinho. Cearense de Mutamba, localidade perto de Aracati, sua maior glória era saber ler e escrever. Ágil repentista, memória terrível, tinha uma deficiência: não ser exímio tocador de viola. Mas isso ficava esquecido quando cantava versos assim:

De amor a gente não muda.
De ano em ano, mês em mês!
Amor é que nem bexiga:
Só dá na gente uma vez...
.............

Cantador que dá-se a preço
Não se areia nem faz troça:
Sujeito de bom calibre
Depois de velho remoça;
 Quem beija a boca de um filho
A boca de um pai adoça.

Nossa Senhora é mãe nossa,
Jesus Cristo é nosso pai
Na minha boca repente
É tanto que sobra e cai...
Quem beija a boca de um filho
Adoça a boca de um pai

Mostro a quem vem e a quem vai,
Mostro a todos da jornada:
Mais vale quem Deus ajuda
Do que quem faz madrugada.
Quem beija a boca de um filho
Deixa a de um pai adoçada.

Este mundo é uma charada...
Ai de mim, se Deus não fosse!
Repente em minha cabeça
Ainda não acabou-se:
Quem beija a boca de um filho
Deixa a boca de um pai doce.

Foi o inverno quem trouxe
Ao Ceará a fartura.
Eu, em casa de homem rico,
Gosto de fazer figura...
Quem beija a boca de um filho
Deixa a de um pai com doçura.

O cego Sinfrônio, natural de Jabuti, perto de Messejana, pode ser considerado como um dos cantadores mais espontâneos do Nordeste.
Cegou quando tinha apenas um ano de idade e, apesar disso, devido a sua extraordinária memória, tornou-se um verdadeiro cabedal de romances, cantigas e desafios. Sua mulher lia pacientemente os manuscritos e folhetos até que ele os conseguisse decorar. Sua maior qualidade: ser maravilhoso improvisador. Nômade por natureza, admirável profissional do canto. Sinfrônio foi o tipo do cantador reconhecidamente respeitado por todos os demais. Uma filosofia pessoal marcava toda a inspiração do cego Sinfrônio:

Anda já em quarenta ano
Que eu vivo somente disso...
Achando quem me proteja.
Eu sou bom nesse serviço:
Eu faço a vez de machado
Em tronco de pau mucisso...

Esta minha rabequinha
É meus pés e minhas mão,
Minha foice e meu machado,
É meu mio e meu feijão,
É minha planta de fumo,
Minha safra de algodão...
................
Eu andei de déu em déu
E desci de gaio em gaio...
Jota a Já, queira ou não queira,
Eu não gosto é de trabaio...
Por três coisa eu sou perdido
Muié, cavalo e baraio!

Aderaldo foi, sem dúvida, o cantador de melhor voz, entre os quatro mais famosos, e além disso possuía uma apreciável veia poética. Natural do Crato, no Ceará, cegou aos 18 anos, quando maquinista num desastre ferroviário que sofreu sua composição na Estrada de Ferro Baturité. Ao contrário de Sinfrônio, que não gosta de versos de amor, Aderaldo é um lírico. Em todos os seus "desafios" não deixa de lado o seu sentimentalismo:

Meu benzinho, diga, diga,
Por caridade confesse
Se você já encontrou
Quem tanto bem lhe quisesse.

Meu bem, que mudança é esta
Neste teu rosto adorado?
Acabou-se aquele agrado
Com que me fazia festa?

Eu juro que nunca quis
Ofender teu peito nobre!
Fala, meu anjo, descobre.
Diga, meu bem, que te fiz?

Todo passarinho canta
Quando vem rompendo a aurora;
Só a pobre mãe da lua
Quando canta — logo chora...
Assim eu faço também,
Quando meu bem vai se embora!
("São donos cantadores da palavra". Revista Esso. Rio de Janeiro, fevereiro de 1963)
Fonte: http://www.jangadabrasil.com.br/revista/julho68/cn68007a.asp

domingo, 23 de junho de 2013

Cordel de Cacá Lopes


Gonzagão - ilustração de Jô Oliveira

SÃO JOÃO DOS MEUS SONHOS

Autor: CACÁ LOPES
Fonte: http://www.araripina.com.br/sao-joao-dos-meus-sonhos


O São João dos meus sonhos
Tem que ter a tradição,
Das cantigas de Luiz
Gonzaga, Rei do Baião,
O do Trio Nordestino
Que era pura animação.

Músicas de Alceu Valença
E de Jackson do Pandeiro,
Elba, Jorge de Altinho
E de Alcymar Monteiro,
Flávios:Leandro e José
Dominguinhos, forrozeiro.

Não pode faltar a cultura
Dos Trios de Pé de Serra,
Uma fogueira em cada casa
Tradições da nossa Terra,
Muita fartura da roça
Saudade no peito emperra.

Milho verde e pamonha,
Canjica, batata assada,
Bolo e pé de muleque,
Nas noites “enluarada”
Bombinha, traque, chuvinha
E muita gente animada.

Pra amenizar um pouco a saudade,
Trechos de algumas músicas tradicionais
Dos Folguedos Juninos.

AI QUE SAUDADES QUE EU TENHO
DAS NOITES DE SÃO JOÃO
DAS NOITES TÃO BRASILEIRAS
DAS FOGUEIRAS / SOB O LUAR DO SERTÃO…
TEM TANTA FOGUEIRA
TEM TANTO BALÃO
TANTA BRINCADEIRA
TODO MUNDO NO TERREIRO
FAZENDO ADVINHAÇÃO…
É NOITE DE SÃO JOÃO
VAI AMANHECER O DIA
É MADRUGADA
E NÃO VEIO QUEM TANTO EU QUERIA…
FAGULHAS, PONTAS DE AGULHAS
BRILHAM ESTRELAS DE SÃO JOÃO
BABADOS, XOTES E XAXADOS
SEGURA AS PONTAS, MEU CORAÇÃO…
CORAÇÃO BOBO, CORAÇÃO BOLA
CORAÇÃO BALÃO, CORAÇÃO SÃO JOÃO
A GENTE SE ILUDE
DIZENDO JÁ NÃO HÁ MAIS/ CORAÇÃO.
SÃO JOÃO DOS MEUS SONHOS

(...)