domingo, 25 de março de 2018

NO TEMPO DA LAMPARINA


Capa de Maércio Siqueira / Caricatura: Jô Oliveira

PREFÁCIO
O sertão das nossas memórias

Como nas antigas estórias de Trancoso, em que fabulosos tesouros são desenterrados, Arievaldo Viana abre, nesta obra, os baús da própria memória, e tira de lá um mundo de vivências que retratam não apenas suas experiências individuais, mas todo o quadro de um sertão desconhecido das novas gerações.
Já para os que, como ele, nasceram naquela parte do mundo nos anos 1960 – e que, portanto, viveram no mesmo cenário e em circunstâncias semelhantes – este livro tem o condão de os transportar instantaneamente para aquela realidade de cores fortes e sons marcantes...
Foi assim que ao ler avidamente cada página pisei novamente na areia fria do riacho à sombra dos pés de oiticica, ouvi os bandos de capotes no terreiro, senti o cheiro do ferro a brasa, da folha verde de marmeleiro e da cinza de fogão a lenha que se misturava aos objetos do precioso monturo... ouvi o tilintar dos chocalhos pesados das vacas, e dos mais delicados, das ovelhas, sendo tangidas nas capoeiras, pelo familiar aboio dos vaqueiros...
Percorri o corredor da casa de fazenda, abri o caixão da farinha e vi, na despensa, a prateleira dos queijos e os baús de redes lavadas e cheirando a sol, prontas para receber hospitaleiramente qualquer viajante que chegasse, a qualquer hora do dia ou da noite.
O valor de obras como esta ultrapassa em muito o papel de reavivar memórias familiares. Este livro é o retrato histórico de uma época, o que enriquece o conhecimento que se tem a respeito da humanidade, cuja jornada é a somatória de cada vivência, cada saber particular e de grupos ou comunidades.
Assim, nas memórias bem-humoradas de um menino atento ao mundo à sua volta, vêm à tona tradições e práticas que se perderam completamente ou estão em vias de desaparecer, como o trabalho artesanal do curtidor de couro.
São muitas histórias, boas de contar, de ler e de ouvir, pelos que as viveram e pelos que nunca imaginaram que tal mundo possa ter existido.

Ana Rita Araújo
(jornalista)




NO TEMPO DA LAMPARINA
Memórias de um menino sertanejo

A sombra que me move
Também me ilumina
Me leve nos cabelos
Me lave na piscina
(...)
O pêlo do cavalo
O vento pela crina
O hábito no olho
Veneno lamparina.
(Galope Razante – Zé Ramalho)

Na infância eu considerava as histórias de encantamento dos folhetos de cordel como verdadeiras ou, pelo menos, plausíveis. Por estarem impressas no papel me pareciam mais dignas de crédito que as histórias de Trancoso contadas oralmente pela velha Bastiana e sua neta Rita Maria. A própria Bíblia, tida como o mais sagrado e verdadeiro dos livros, não encerrava a história da jumenta de Balaão, que adquirira voz humana e falara fluentemente? Moisés não abrira o Mar Vermelho para que os israelitas o atravessassem a pé enxuto, com a mesma facilidade com que se corta uma talhada de melancia? O profeta Elias não fizera cair fogo do céu? Não havia dividido as águas do Rio Jordão com o simples toque de sua capa? O profeta Eliseu, seu sucessor, não multiplicara milagrosamente o azeite da viúva em cuja casa se hospedara? O combate do pequeno Davi contra o gigante Filisteu não poderia ser a própria Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, de que nos fala o livro de Carlos Magno e dos Doze Pares de França? Se São Jorge, um santo reconhecido pela Igreja Católica, combatera um dragão, por quê Juvenal, personagem do folheto do poeta Leandro Gomes de Barros, não poderia ter realizado um feito similar?
Para completar esse universo místico e encantado, eu ouvia constantemente, no alpendre da casa de meus avós, histórias de botijas, de alma penada, de lobisomens e até de discos voadores como coisa absolutamente real, palpável e natural. Nascidos e criados no “tempo da lamparina”, os meninos de minha geração não dispunham de outras diversões que não fossem as cantigas de roda, a audição de velhos contos de fadas adaptados à linguagem sertaneja, os folhetos de cordel e o rádio de pilha. Some-se a isso, cantorias, vaquejadas, forrobodós, leilões, reisados e novenas.

Ouro Preto

Eu gostava mesmo era de escutar a prosa dos adultos, à sombra dos alpendres, em noites de lua cheia ou sob a luz do candeeiro. Tudo isso era projetado pelo caleidoscópio de uma imaginação fértil e prodigiosa, da qual sempre fui dotado. De modo que, quando me via sozinho no meio do mato, imaginava encontrar um desses entes fabulosos descritos pelos adultos e registrados nas páginas dos cordéis. Dentre todos, o que eu mais       ansiava encontrar era o gênio da lâmpada, das histórias de Alladim, a fim de realizar os três pedidos. O primeiro deles, sem dúvidas, seria um passeio no tapete voador, elevando-se do pátio da fazenda de meu avô com destino a serra dos Três Irmãos, Serra do Peitão, Serrinha do Teixeira e Serra da Cacimba Nova. Desde a mais tenra idade eu nutria verdadeiro encanto pelas serras, lugar de onde me parecia vir a chuva. E, como toda criança, eu queria voar. Nessa fase da vida quantas vezes não sonhei voando?
Complementando tudo isso, havia as histórias mirabolantes do Chico Pavio, filho da velha Bastiana, que também possuía uma imaginação prodigiosa. Às vezes ele fazia parte do adjunto de trabalhadores que auxiliavam meu pai na sua lavoura. No próprio eito ele desfiava alguns causos interessantes, que eram intercalados pela voz do Chico Cazuza, o Cazuzinha, fã de cantorias, que sabia de memória muitas glosas atribuídas aos famosos Bentevi Neto e Cego Aderaldo. Papai dava larga preferência ao segundo, eu gostava, também, das lorotas do primeiro. Eis um causo contado pelo Chico Pavio: segundo ele, os serrotes dos Três Irmãos eram três reinos encantados, erguidos em remotas eras, por uma raça nobre e desconhecida, exuberante e rica. Mas os três castelos foram encantados pelo poder de gênios do espaço e transformados em três gigantescos blocos de pedra. Quando eu ia buscar água na companhia de meu pai, na Fonte das Coronhas, que fica no sopé do primeiro serrote, ansiava encontrar alguma princesa encantada, avistar a lendária Mãe D’água e até mesmo o dragão que guardava a porta de entrada do Reino Encantado. Dei asas à imaginação e descrevi tudo isso em um poema chamado “O Marco Cibernético do Reino dos Três Monólitos”, que se encontra reproduzido integralmente neste livro.
Quando eu era menino havia um cruzeiro no topo do primeiro serrote, erguido pelo Sr. Lauro Calixto, com a ajuda do padre José Bezerra. As pessoas escalavam aquela subida íngreme, de aproximadamente 540 metros de altitude, para rezar terços, ladainhas e pedir um bom inverno. Um desses devotos era o nosso parente José Rodrigues de Sousa, o Zé Miguel, que chegava descrevendo as maravilhas da subida. Eu ansiava por fazer parte dessa comitiva, mas nunca me permitiram. Até que um dia, por obra de uma “Nova Seita”, o velho cruzeiro veio abaixo a golpes de foice e machado.
Somente no dia 4 de junho de 2017 é que pude realizar o meu intento de escalar o serrote e vislumbrar a belíssima paisagem que se descortina nas quatro direções. Ao Leste fica o açude do Saco da Serra e a comunidade de Esperança, bem como a ladeira do Pitanguá, que impressionou o arcebispo Dom Antônio de Almeida Lustosa em seu livro ‘Notas a lápis’, publicado na década de 1940. Ao Norte, as terras do Mofumbo, Pau D’arcal, Serrinha dos Paulinos e Cachoeira dos Barbosa. À Noroeste, fica a Várzea Grande e a Oeste, Cacimbinha, União e São José da Macaóca. À Sudoeste avistam-se contornos das serras que ficam próximas à cidade de Madalena e, ao Sul, a exuberante Serra da Cacimba Nova, inegavelmente a mais bela de todo o conjunto dessa muralha de pedra que parece ser uma continuação da mesma cordilheira que engloba os monólitos de Quixadá. Finalmente, ao Sudeste, a Serrinha do Teixeira que, segundo dizem, teria sido o cenário de um teste nuclear na década de 1950.
Há quase 300 anos os troncos familiares que deram origem à minha raça habitam este pedaço de chão. Todos os descendentes dos clãs Sousa-Vianna, Sousa-Araújo, Barbosa-Severo, Lobo, Chagas, Martins, Maciel, Paulino etc. têm raízes fincadas nesse pedaço de chão. A história desses clãs é minunciosamente descrita no primeiro livro desta série, cujo título é “Sertão em Desencanto – I Volume de Memórias”, obra de menor teor poético, porém fortemente embasada em documentos, daí o seu valor como relato histórico.
Por quê “Sertão em Desencanto”? Dentre muitos outros motivos e explicações eu diria que aquele encantamento pelo maravilhoso, pelo heroico e pelo fantástico que acalentei na infância foi quebrado pelo rude martelo da realidade. Foi minado pelos espinhos e dissabores que inevitavelmente nos agridem ao longo de nossa caminhada. Mas também pela descaracterização de nossa cultura, pelo desaparecimento de velhas tradições, pelo aniquilamento de nossos costumes mais simples e fraternos. O sertão de hoje em dia está muito modificado!
Por isso tomei a iniciativa de escrever estes livros de memórias, permeados de causos, de sonhos e encantamentos, para que as gerações futuras não percam o fio da meada e saibam que o nosso sertão nem sempre foi assim, displicente, desleixado, alienado e ignorante de suas matrizes culturais. Subam comigo, a bordo desse tapete voador, e retornemos ao sertão dos tempos da lamparina, fazendo de conta que o velho candeeiro é a lâmpada de Alladim.

Arievaldo Vianna