domingo, 12 de janeiro de 2020

ENTREVISTA


OS CORDÉIS QUE SUASSUNA UTILIZOU 

NO AUTO DA COMPADECIDA



No último dia 7 de janeiro o caderno VERSO, do Diário do Nordeste, publicou ampla matéria sobre a reprise da série O AUTO DA COMPADECIDA, direção de Guel Arraes, inspirado na obra do mestre Ariano Suassuna. Na ocasião, o repórter Diego Barbosa me entrevistou a respeito dos folhetos de Leandro Gomes de Barros e outros poetas que tiveram influência direta sobre a obra de Suassuna. Confiram a íntegra da entrevista:


1- De que forma uma das principais obras de Ariano Suassuna, “O Auto da Compadecida”, influenciou seu trabalho no posto de cordelista? Houve essa influência?
R – Posso dizer que foi o contrário. Conheci a obra de Leandro Gomes de Barros, a principal referência na obra de Suassuna, uns vinte anos antes de conhecer “O Auto da Compadecida”. Não achei a menor graça naquela adaptação dos “Trapalhões”, porém a do Guel Arraes, para a Rede Globo, foi formidável. Ele valorizou todos os aspectos da cultura popular nordestina, sobretudo da Literatura de Cordel. Eu que já conhecia os textos dos cordéis, enfeixados no livro “Violeiros do Norte”, de Leonardo Mota, publicado em 1926, fiquei encantado com o modo como Suassuna costurou o seu enredo, valendo-se das passagens mais engraçadas e marcantes dos folhetos para criar as ações e os diálogos de seus personagens. Essas estrofes de “O Dinheiro” (Leandro Gomes de Barros, 1909) são emblemáticas e alguns versos foram utilizados na fala do Padre João, personagem vivido pelo grande Rogério Cardoso:

Um inglês tinha um cachorro
De uma grande estimação
Morreu o dito cachorro
E o inglês disse então:
― Mim enterra esse cachorro
Inda que gaste um milhão

Foi ao vigário, lhe disse:
― Morreu cachorra de mim
E urubu do Brasil
Não poderá dar-lhe fim
― Cachorro deixou dinheiro?
Pergunta o Vigário assim...

― Mim quer enterrar cachorra!
Disse o vigário: ― Oh! Inglês!
Você pensa que isto aqui
É o país de vocês?
Disse o inglês: ― Oh! Cachorra
Gasta tudo desta vez

Ele antes de morrer
Um testamento aprontou
Só quatro contos de réis
Para o vigário deixou
Antes de o inglês findar
O vigário suspirou

― Coitado! ― Disse o vigário,
De que morreu esse pobre?
Que animal inteligente!
Que sentimento tão nobre!
Antes de partir do mundo
Fez-me presente do cobre!



Leandro Gomes de Barros, por Jô Oliveira


2- Você escreveu a biografia do Leandro Gomes de Barros, que foi quem escreveu alguns cordéis que inspiram os episódios do Auto da Compadecida. Me explique melhor como aconteceu essa influência de Leandro sobre a escrita do clássico de Suassuna. De fato, houve essa conexão da escrita entre os dois? Que cordéis específicos foram esses?
R – Ariano tinha na figura do seu pai, João Suassuna, ex-governador da Paraíba assassinado após a Revolta de 1930, a sua maior referência. O livro “Violeiros do Norte”, de Leota, é de 1926 e traz uma dedicatória ao pai do dramaturgo paraibano. Pode-se dizer que este livro foi uma das leituras prediletas de Ariano desde a infância, pois fazia parte da biblioteca de seu pai. Na opinião de Bráulio Tavares, autor de ABC de Ariano Suassuna (José Olympio Editora, 2ª edição, p. 25) “a Literatura de Cordel, que Ariano conheceu ainda menino, em Taperoá-PB, viria a ser uma das fontes inspiradoras não apenas de sua obra literária, mas do próprio Movimento Armorial, sua intervenção mais consistente e deliberada na cultura brasileira.” Apesar da tragédia familiar causada pela morte de seu pai e as constantes mudanças que a viúva e os filhos foram forçados, a biblioteca de João Suassuna foi preservada por seu cunhado Manuel Dantas Vilar, tio materno de Ariano e aqueles livros, certamente, constituíam um tesouro na infância e adolescência do futuro escritor. Os folhetos divulgados por Leota e inclusos na trama d’O Auto da Compadecida são: “O Dinheiro” e “O cavalo que defecava dinheiro”, de Leandro Gomes de Barros e “O Castigo da Soberba”, de Silvino Pirauá de Lima. Além destes, podemos incluir também “As proezas de João Grilo”, do poeta pernambucano João Ferreira de Lima.

3- De forma geral, qual a relação do “Auto da Compadecida” com o cordel, de uma forma geral?
R – Sem exageros eu posso afirmar que sem o Cordel essa peça não existiria e, se existisse, não teria tido metade da aceitação que teve por parte do público. Os lances mais engraçados da obra, como o testamento e enterro da cachorra, o animal que defecava moedas de ouro, a gaita mágica que ressuscita defuntos e até mesmo a burla da bexiga cheia de sangue de galinha estão nos folhetos de Leandro, que certamente baseou-se em contos populares, transmitidos oralmente geração após geração. Daí a empatia imediata que o público teve pela obra, ao reconhecer de imediato as velhas matrizes de histórias que faziam parte de sua tradição oral. Convém lembrar que outras obras realizadas a partir do romanceiro popular nordestino também obtiveram grande sucesso. Nessa lista eu incluiria os filmes “O homem que virou suco” (filme brasileiro de 1981 dirigido por João Batista de Andrade e estrelado pelo ator José Dumont)  e “O homem que desafiou o diabo” (filme de 2007, dirigido por Moacyr Góes, baseado na obra As Pelejas de Ojuara do escritor potiguar Nei Leandro de Castro). Citaria também as novelas “Saramandaia”, de 1976, que tinha em sua trilha a canção Pavão Mysteriozo, do cearense Ednardo e outra mais recente, intitulada “Cordel do Fogo Encantado”. O cordel também tem feito muito sucesso nas adaptações para teatro. Em 2006 o “Grupontapé de Teatro”, de Uberlândia-MG, dirigido por Fernando Limoeiro, ganhou um prêmio da Funarte com a adaptação de um dos meus folhetos, “O batizado do gato”, que escrevi e publiquei em 2000 e hoje se encontra na oitava edição.

4- Por que, em sua visão, a série “O Auto da Compadecida” marcou tanto e como você acha que o público a receberá hoje?
R – O Auto da Compadecida é uma das obras-primas da dramaturgia brasileira e a adaptação que Guel Arraes fez para a televisão e o cinema conseguiu reunir um dos melhores elencos da dramaturgia brasileira. Não é todo filme que consegue reunir, numa só tacada, atores como Fernanda Montenegro, Lima Duarte, Rogério Cardoso, Diogo Vilela, Marco Nanini, Matheus Nashtergaele e Selton Melo num mesmo time, numa produção tão bem cuidada, com cenários tão ricos e trilha sonora tão adequada. Tudo ali é perfeito, ao contrário da adaptação de “A Pedra do Reino”, por Luís Fernando Carvalho, que acabou se tornando, a meu ver, um grande equívoco. Apesar do esforço do diretor e da superprodução, o resultado soou meio hermético, incompreensível para o grande público. Eu, particularmente, gostei bastante, sobretudo pelo lado burlesco e grandiloquente, mas o público comum não está habituado a esse tipo de produção. Na minha opinião, essa versão de O Auto da Compadecida é como as comédias de Charlie Chaplin. É atemporal.


5- Qual legado o programa deixa para a cultura brasileira tendo em vista o reconhecimento dado à regionalidade nordestina?
R – Acho que o cinema brasileiro teria dado largas passadas se tivesse seguido essa fórmula tão bem engendrada pela produção de “O Auto da Compadecida”. Na esteira de seu sucesso, tivemos, pelo menos, dois filmes interessantes: “Lisbela e o Prisioneiro” e o já mencionado “O homem que desafiou o diabo”. Conversando outro dia com o cineasta Rosemberg Cariry ele me confidenciou que seu maior sonho é fazer uma adaptação do Romance do Pavão Misterioso com todos os efeitos especiais que a tecnologia permite hoje em dia. Outro texto formidável, na mesma linha do João Grilo, é A vida de Cancão de Fogo e seu Testamento, de Leandro Gomes de Barros. Outra obra do poeta paraibano que tem todos os elementos adequados para um bom filme é O Cachorro dos Mortos, uma história de suspense, na linha de Edgar Allan Poe, onde três irmãos são mortos barbaramente tendo por única testemunha um cachorro, que consegue escapar a fúria do assassino e acaba sendo a principal testemunha do crime. O grande problema, a meu ver, é que sempre que o cinema e a TV querem utilizar o cordel como fonte de inspiração, não interagem com o devido respeito, não fazem da mesma maneira de quando se trata de uma obra “erudita”. Para eles, todo cordel é coisa de “DOMÍNIO PÚBLICO”, algo sem um criador definido. É preciso ter mais respeito pela chamada CULTURA POPULAR. Se você reparar bem, nem no livro de Suassuna, nem nas adaptações feitas para o cinema e a televisão, aparece o nome de LEANDRO GOMES DE BARROS, o verdadeiro criador dos folhetos e maior responsável pela popularização dessas histórias.

Entrevista concedida à DIEGO BARBOSA - Repórter do Sistema Verdes Mares | Caderno Verso - Diário do Nordeste