quinta-feira, 20 de setembro de 2018

RIO DE JANEIRO



Literatura de cordel vira patrimônio cultural e vive momento de efervescência

Reconhecimento do Iphan chega no momento em que a internet promove desafios entre cordelistas do Brasil e do exterior, difundindo mais ainda a cultura.


Ministro Sérgio Sá

RIO - Trazida pelos portugueses na segunda metade do século 19, a literatura de cordel narrativa poética popular com métricas e rimas perfeitas ou quase perfeitas , receberá quarta-feira o registro de Patrimônio Cultural do Brasil. O título, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), atende a pedido de 85 poetas, feito em 2010, através da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), no Rio.
"É um momento histórico. É a coroação de 30 anos da academia, que incentiva, divulga, produz e revela novos talentos", diz, emocionado, o presidente da ABLC, Gonçalo Ferreira da Silva, de 80 anos, autor de 300 cordéis e 30 livros.O reconhecimento vem numa hora de 'efervescência cordelista' graças à internet, que agora propaga desafios virtuais (pelejas). A poetisa Dalinda Catunda é pioneira. "Comecei brincando com a escritora Rosário Pinto. Hoje, as pelejas ocupam um espaço importante nas redes sociais", orgulha-se.


Poetas Rosário Pinto, Marcus Lucenna e Arievaldo Vianna


No Rio, estima-se que vivam cerca de 50 cordelistas cariocas, nordestinos, paulistas e mineiros. Na Fundação Casa de Rui Barbosa, o acervo digital de mais de 2,3 mil folhetos (há outros 9 mil na fila) é mais acessado que as obras do próprio patrono 120 mil em dois anos.Já o Escritório da Biblioteca do Congresso e a Divisão Hispânica da Biblioteca do Congresso em Washington estão formando, por meio da American Folklife Center (AFC), a maior coleção de cordéis do mundo, com mais de 12 mil peças, a partir de 1930.Outro termômetro do sucesso: só a Copiadora Father, no Centro, imprime ao menos mil livretos de escritores populares por mês. "Nos tornamos especialistas", diz o gráfico Fábio Albino.


Gonçalo Ferreira, Marco Haurélio, Marcus Lucenna, Klévisson Viana e Gustavo Dourado


Na Feira Nordestina de São Cristóvão, cordelistas de outras cidades têm destaque, como Isael de Carvalho, de Petrópolis, e o mineiro Manoel Santa Maria. "Versos em oito páginas custam R$ 3", propagandeia Isael. Por R$ 300, são feitos cordéis personalizados para aniversários, casamentos e homenagens.Para Rosilene Alves de Melo, pesquisadora que coordenou os trabalhos do processo, o momento se traduz em dois significados: "Primeiro, o reconhecimento, ainda que tardio, pelo Estado brasileiro, da importância de uma prática cultural que por muito tempo foi considerada poesia menor, à margem das elites. O poeta Raimundo Santa Helena, para lembrar, foi rechaçado por duas vezes em 1980, por acadêmicos, ao tentar ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL), mesmo tendo escrito 500 folhetos.
Na Praça XV e no Campo de São Cristóvão, folhetos eram apreendidos e os poetas presos (no século passado). O segundo aspecto é a dimensão política. O acesso a literatura de cordel passa a ser um direito de todos. Os poetas e toda a cadeia produtiva poderá reivindicar políticas públicas para a sua salvaguarda e difusão", ressalta.Maria Elisabeth Costa, chefe do setor de pesquisa do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, que supervisionou os estudos pelo Iphan, exalta a internet como ponte para outras expressões artísticas. "É a ligação com o cinema, com as novelas, com as revistas em quadrinhos... Surpreendem a força e a vitalidade do cordel que, ao contrário de diversos prognósticos quanto ao seu desaparecimento no século 20, chegou ao século 21 fortalecido e adaptado a novos formatos e linguagens", atesta.


Professora Rosilene Melo, com uma turma de poetas e pesquisadores de Cordel


Entrevista com Rosilene Alves de Melo, historiadora, professora da Universidade Federal de Campina Grande e pós-doutoranda pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP), que coordenou a pesquisa para o processo de registro do cordel no Iphan.
O DIA - Desde 1990 pesquisando cordéis pelo Brasil, o que a surpreendeu nesse período?
Rosilene: O que surpreende é a força e a vitalidade da literatura de cordel que, ao contrário de diversos prognósticos quanto ao seu desaparecimento no século XX, chegou ao século XXI bastante fortalecida e se adaptando a novos formatos e linguagens.
Além do Nordeste, outros estados, como Rio e São Paulo, por exemplo, têm se destacado na produção de cordéis?
Rosilene: Podemos afirmar que a literatura de cordel está presente em todas as regiões do país, mesmo reconhecendo que em algumas localidades ela de difundiu mais profundamente. No Sudeste a literatura de cordel se consolidou sobretudo a partir do final da década de 1940, quando as comunidades de migrantes nordestinos se formaram no Rio de Janeiro e em São Paulo. Mas temos também cordelistas atuando em Minas Gerais. Cabe destacar, também, a difusão do cordel no Distrito Federal quando os trabalhadores da construção civil levaram a cantoria e o cordel para os locais de trabalho e para a praça pública. É importante recordar, também, a difusão do cordel na região Norte em razão das comunidades de migrantes durante o chamado "ciclo da borracha" e que se fortaleceu com a criação da Editora Guajarina na cidade de Belém que funcionou entre 1914 e 1949.
A internet vem sendo realmente uma importante difusora e universalização desta modalidade de expressão e comunicação....
Rosilene: Certamente. O cordel por ser um gênero literário que possui relações com a oralidade, com o texto escrito e com a imagem (através das capas dos folhetos) transitou com bastante facilidade através do jornal impresso, do rádio, da televisão, do teatro, do cinema e, mais recentemente, através da internet. Neste sentido vale recordar as primeiras "pelejas virtuais" a partir da década de 1990 quando os poetas passaram a compor folhetos em parceria através de mensagens de texto e de e-mails e o cordel ingressou no ciberespaço, a exemplo do folheto intitulado "O marco cibernético construído em Timbaúba", de autoria do poeta José Honório da Silva e publicado em 1995. Atualmente os cordelistas produzem em parcerias através dos aplicativos de celular e mantém uma importante rede de trocas e sociabilidades através das redes sociais. Vale acrescentar que alguns poetas mantém sites e bloggs, a exemplo do blogg Acorda Cordel, mantido pelo poeta Arievaldo Viana desde 2011. É preciso enfatizar, também, que a internet vem possibilitando para a realização de pesquisas, através da digitalização de acervos localizados no Brasil e no exterior que disponibilizam informações e o acesso a originais raros impressos no início do século XX bem como a produção contemporânea.
Qual a importância do registro da Literatura de Cordel como Patrimônio Cultural do Brasil?
Rosilene: é possível afirmar que registro da literatura de cordel tem pelo menos dois significados: o primeiro é o reconhecimento simbólico, ainda que tardio, do Estado brasileiro da importância de uma prática cultural que por muito tempo foi considerada uma poesia menor, colocada à margem por setores das elites. O poeta Raimundo Santa Helena, por exemplo, tentou por duas vezes ingressar na Academia Brasileira de Letras e em que pese já ter escrito mais de 500 folhetos, foi duas vezes rechaçado pelos acadêmicos da ABL na década de 1980. No Rio de Janeiro, na Praça XV e no Campo de São Cristóvão, folhetos eram apreendidos e os poetas presos. na Bahia em 1938 os folhetos eram queimados em praça pública. Os poetas Rodolfo Coelho Cavalcante (1919-1986) e o poeta José Bernardo da Silva (1902-1972) foram presos por venderem literatura em praça pública, o que podemos afirmar que é uma vergonha, num país em que a população ainda tem pouco acesso a literatura. O segundo aspecto é a dimensão política do registro: o acesso a literatura de cordel passa a ser um direito de todos os cidadãos, já que se tornou um bem cultural. Portanto, a partir do registro os poetas e toda a cadeia produtiva do cordel poderá reivindicar maior acesso às políticas públicas para a sua salvaguarda e difusão para as próximas gerações.
Dá para imaginar o número aproximado de cordeliastas, repentistas, além de xilógrafos, pesquisadores e todas as pessoas envolvidas na sua pesquisa?
Rosilene: o número de pessoas envolvidas direta ou indiretamente na produção e difusão da literatura de cordel no Brasil é muito grande e não temos uma estimativa em números concretos. Somente através de um recenseamento teríamos condições de expressar quantitativamente a presença do cordel no país. O dossiê do registro produzido pelo IPHAN realizou 140 entrevistas. No entanto, não havia possibilidade de entrevistar todas as pessoas envolvidas. O que posso dizer é que este número não representa a totalidade desta comunidade, mas é importante informar que além das entrevistas realizamos diversas reuniões com os poetas, pesquisadores, proprietários de editoras especializadas, xilógrafos, declamadores e representantes de instituições de pesquisa em diversas cidades do país, para discussão acerca do significado deste registro e para a construção de recomendações de salvaguarda.
Como define os cordelistas brasileiros?
Rosilene: creio que este momento é muito importante para a literatura de cordel e para a nossa geração que teve a oportunidade de concretizar este registro. Costumo dizer que estamos prestando, também, uma homenagem e reconhecimento a todas as pessoas que no passado se dedicaram à difusão da literatura brasileira nas praças, feiras, mercados populares e não foram reconhecidas como escritores. A sociedade brasileira reproduz, no plano cultural, a exclusão social e econômica de grande parte da população que não tem acesso ao livro e a leitura como um direito de todos. Os poetas de cordel são pessoas obstinadas em levar a poesia aos lugares mais distantes e traduzem para a linguagem do verso rimado e metrificado a opinião pública, os valores sociais e até mesmo os preconceitos que precisamos combater. Sou muito grata pela oportunidade de ter feito parte de uma excelente equipe de trabalho, sob a coordenação do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional que reuniu muitas pessoas que se empenharam com extremo zelo para fazer o melhor. Me sinto muito honrada, como servidora pública, de ter dedicado muitos anos a este trabalho para deixar este legado às futuras gerações.




OPINIÃO DO POETA MARCO HAURÉLIO:

O CORDEL É PATRIMÔNIO CULTURAL DESTE PAÍS

O cordel sempre foi um patrimônio histórico, cultural, imaterial, material, afetivo, linguístico do povo brasileiro. Ontem, no Rio de Janeiro, veio o reconhecimento institucional 'quae sera tamen'.
São muitas vozes que, desde sempre, se empenharam para que tal chancela viesse. Participei de muitas reuniões, acompanhei o trabalho competente da professora Rosilene Melo e sua equipe, o pedido feito pela ABLC, com o aval dos poetas presentes a um encontro em Brasília em 2010, as discussões ora ásperas, ora amenas acerca de questões conceituais e outras menos importantes.
Falo de Rosilene e dos membros de sua equipe que viajaram o Brasil, colhendo depoimentos, registrando histórias, pesquisando acervos e dando voz aos protagonistas do gênero poético que é, a um só tempo, letra e voz.
E agora? O que virá? Sinceramente, não sei, mas espero que não cruzemos os braços, aceitando, passivamente, a tutela do estado, ou o afago de uma mão paternal. Lutemos por políticas públicas, transparências nos editais e a inclusão do cordel na educação, sem a caricatura e o falso pitoresco nos quais alguns desavisados o embalam para consumo.
Que ele seja sempre a "literatura do coração" preconizada pelo saudoso vate Manuel Caboclo, a poesia que, há várias gerações, embala os serões das noites sertanejas e ameniza a saudade dos que partem para o reino do Vai-Não-Torna, acalentando o sonho de muitos brasileiros.
Sigamos esperançosos, mas, também, vigilantes.