terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

UM CORDEL DO MEU BISAVÔ


O CICLO DO BOI NA LITERATURA DE CORDEL

Dizia o saudoso professor Laurismundo Marreiro, de Canindé, que a genética não faz curvas. Seguindo essa premissa, poderíamos dizer que a minha veia poética vem de longe. Remontando às raízes avoengas, descobri que meu bisavô Francisco de Assis — o Fitico do Castro —, fazia testamentos de Judas e segundo alguns teria escrito também A Onça da mão torta, A Vaca Tigre e O Boi Vermelhinho, cordéis que tiveram certa repercussão no limiar do século XX, mas que circularam somente de forma manuscrita em cadernos de família.
O texto a seguir foi publicado em 2002, na primeira caixa de folhetos do projeto ACORDA CORDEL NA SALA DE AULA.




Os primeiros folhetos da Literatura Popular em Versos só foram publicados na segunda metade do Século XIX. O   grande folclorista Luís da Câmara Cascudo faz referências a um folheto intitulado “Testamento de um Macaco”, de autor desconhecido, publicado por volta de 1864. Ele assinala, contudo, que os mais antigos versos de nossa poesia popular descrevem cenas e episódios da pecuária. São poemas de glorificação do boi que, se finalmente foi domado e trazido ao curral, só o foi após grande trabalho, depois de reduzir a fama e humilhar muitos vaqueiros.
O romancista cearense José de Alencar foi o primeiro a publicar um desses poemas, “O Rabicho da Geralda” que conta a história em quadras (estrofes de quatro versos) de um boi famanaz que existiu em Quixeramobim-CE.
O maior expoente da Literatura de Cordel,  Leandro Gomes de Barros, nasceu em Pombal-PB aos 19 de novembro de 1865. Ele começou a publicar sistematicamente centenas de histórias rimadas a partir de 1893. É considerado portanto o pioneiro da Literatura de Cordel nordestina. Dentre os romances de sua autoria, destaca-se “O Boi Misterioso”, um dos mais importantes poemas deste ciclo.

Luiz da Costa Pinheiro, poeta potiguar radicado em Fortaleza, escreveu e publicou em dois volumes de 32 páginas a história do “Boi Mandigueiro e o Cavalo Misterioso”, obra-prima desse gênero.

Gustavo Barroso, escritor aclamado com incursões por vários gêneros literários também deu enorme contribuição ao folclore brasileiro recolhendo e publicado diversos poemas da Gesta do Gado. Ele ressalta em sua obra “Ao som da viola” que todo o sertão nordestino, aliás todo o interior do Brasil, está cheio de canções que perpetuaram desta ou daquela forma os principais fatos da áspera vida dos criadores de gado, especialmente daqueles que exercem a profissão de pastorear manadas e rebanhos, os vaqueiros. O notável folclorista registra ainda poemas de onças e bodes famosos recolhidos nos sertões nordestinos, especialmente no Ceará.

Bráulio do Nascimento, em Literatura Popular em Verso - Estudos, publicado pela Casa de Rui Barbosa, aponta pelo menos 25 poemas do chamado Ciclo do Boi, dos quais se destacam Boi Surubim, Rabicho da Geralda, Boi Pintadinho, Boi do Quixelô, Boi Barroso etc.
Para nós, foi uma grata surpresa encontrarmos uma cópia manuscrita da História do Boi Vermelhinho, versos compostos nas primeiras décadas do século passado por autor inicialmente desconhecido. Depois de publicado viemos a saber que o provável autor era ninguém menos que o nosso bisavô Francisco de Assis de Sousa, o velho Fitico, da Fazenda Castro. O fato não foi surpresa, pois Fitico versejava com facilidade e fazia os famosos “Testamentos de Judas”.  As personagens que figuram na história, entretanto, são bastante conhecidas, principalmente o Major Cosme das Chagas, proprietário da Fazenda Várzea Grande (hoje município de Madalena-CE), bisavô de minha mãe. Esta obra não figura em nenhuma antologia nem foi recolhida ou divulgada por folcloristas, apesar de ainda hoje ser bastante conhecida na região que compreende os municípios de Madalena, Itatira, Canindé e Quixeramobim.
O senhor Manoel Messias Barbosa, responsável pela cópia manuscrita que chegou às nossas mãos, informa que ouviu essa narrativa da boca dos antigos e resolveu transcrevê-la. Os Bastiões, família responsável por um animado grupo de reizado - ou caretas -, como se diz comumente em nossa região, cantavam versos do “Vermelhinho” em suas apresentações. Existe até um baião intitulado “Baião Vermelho” ou “Vermêi”, executado geralmente na sanfona, que remonta à essa tradição. Sanfoneiros como Pedro do Edmundo e Nélson Araújo conhecem e executam a sua melodia.
A publicação do “Boi Vermelhinho” é por demais oportuna e resgata uma bela história oral dos nossos sertões.


Arievaldo Viana Lima

Francisco de Assis e Sousa, o FITICO

História do Boi Vermelhinho da Fazenda Lages dos Lessas
Texto atribuído a Francisco de Assis e Sousa (Fitico)

TRECHOS...

Caros amigos leitores
Todos me prestem atenção
Que agora eu vou contar
A história de um barbatão
Que aconteceu algum tempo
Aqui no nosso sertão

"Nasci nas Lages dos Lessas
Debaixo de um juazeiro
Minha mãe me disse um dia
Que eu ia ser cangaceiro
E eu prometi a ela
De nunca entrar em chiqueiro

No dia em que eu nasci
A vinte e sete do mês,
Num dia de sexta-feira
Foi esta a primeira vez,
Que houve um eclipse total
Em novecentos e seis.

Minha mãe me batizou
Com o nome de Vermelhinho
E o velho José Félix
Tomei ele por padrinho
Enquanto o velho for vivo
Eu sempre corro sozinho.

No pé do Serrote Branco
Fizemos nossa morada
Por ser lugar esquisito
E que não tinha zoada
Se aparecesse vaqueiro
A carreira era danada.

Em novecentos e nove
Comecei a passear
Minha mãe me encomendava
Para eu deixar de andar
Ela achava que eu andando
Podia me prejudicar

Eu dali saí andando
Fui sempre dar um passeio,
Ia com muito cuidado
Com medo e muito receio,
Por muita falta de sorte
Vi o seu Gino, encontrei-o.

Esse caso aconteceu
É triste, mas vou contar,
Eu ia sempre andando
Sem nada desconfiar
Quando encontrei com seu Gino
Ali no Maracajá...

(...)

O FITICO

Francisco de Assis e Sousa, o Fitico, era um danado… Possuía uma pequena, porém ótima biblioteca com livros editados no Brasil, Portugal e até Alemanha, quase todos de temática sacra e gostava muito de escrever, em bom português e ótima caligrafia. Era assinante de alguns jornais e revistas e ficava muito feliz quando recebia algum impresso ou correspondência de amigos e parentes. Olympio de Sousa Viana (o Pai Viana da Cacimbinha), um de meus bisavós maternos, também tinha o hábito de ler e anotar tudo quanto acontecia de importante ao seu redor. Fitico deixou centenas de sextilhas rabiscadas a pena ou a lápis e gostava de recitá-las de memória, para as pessoas que o visitavam. Numa casa de poucos móveis, a escrivaninha e o oratório ocupavam lugar de destaque, na sala principal.

Naqueles tempos remotos, em que a educação não era muito cultuada pela gente das fazendas e que às mulheres era privado o direito ao saber, Francisco de Assis contratava professores e montava escolinhas em sua própria casa para ensinar filhos e filhas, netos e netas em idade escolar. Quando algum se destacava e mostrava inteligência acima da média ele fazia questão de matricular na cidade. Foi assim com minha avó Alzira, que estudou em Quixeramobim e também com o Zezinho, falecido precocemente, que foi destaque no internato do professor Mundinho Martins, em Canindé.