terça-feira, 10 de setembro de 2013

É FEIO, MAS É BOM!

 
CAMPINAS DE SEU ZUQUINHA 

Por: Arievaldo Viana
 

Campinas de ‘seu’ Zuquinha
Homem branco de respeito
Cu-do-mundo da Lili
Repuxo do Barrão Preto... 

Zuca Idelfonso  ou 'Seu' Zuquinha das Campinas,  homem branco de respeito,  como ele próprio se autodenominava, foi um personagem inteligente, espirituoso, desbocado e pra lá de autêntico. Nasceu e se criou nos sertões adustos de Quixeramobim, em território posteriormente desmembrado com a emancipação do distrito de Madalena. Ultimamente tenho ido amiúde às comunidades de Macaóca, Sabonete, Cacimbinha e Vila Campos, locais onde o Zuca ainda hoje é lembrado pela sua irreverência. Seus filhos Chaguinha e Manoel, parentes indo e voltando (tanto pela parte do meu avô Manoel Barbosa Lima, quanto pela de minha avó Alzira de Sousa Viana) sempre me visitam e enriquecem o repertório anedótico com novas histórias.

Minha parenta Auri Araújo, que anda empenhada em montar a árvore genealógica das famílias Sousa, Viana, Araújo, Crisóstomo, dentre outras daquela região, tem obtido em suas andanças um precioso material inconográfico que vem postando regularmente numa página da internet, criada especialmente para este fim. Foi de lá que resgatamos estas duas preciosidades: uma foto do Zuca, já idoso e da casa onde morava, na localidade de Alegre. 

 

QUEM ERA MESMO
‘SEU’ ZUQUINHA?

 

José de Sousa Araújo, o Zuquinha, não tinha papa na língua, nem mandava recado. Dizia o que bem queria em qualquer hora e lugar. É o tipo da figura que extrapola qualquer comentário, que excede qualquer anedotário e que não cabe nas páginas de livro algum, tamanha é quantidade de "causos" que lhe são atribuídos, alguns dos quais impublicáveis.

Everardo Lima, comerciante na Fazenda Ouro Preto (hoje Madalena, antigamente Quixeramobim), teve o prazer de conviver com este singular personagem sem contudo captar a íntegra de seu "tirocínio". "O Zuca me contou mil histórias, mas eu perdi mais da metade" - admite.  A verdade é que, apesar de falecido, o Zuca continua sendo lembrado freqüentemente pelas pessoas que o conheceram, graças a inegável qualidade do anedotário que lhe é atribuído. Se é verdade ou mentira o que dele contam, isso é outra estória, as anedotas do Zuca já se tornaram de domínio público, como as de Quintino Cunha, Manezim do Bispo, 'Seu' Lunga e tantas outras figuras folclóricas do Ceará. Uma particularidade: adorava questão. Contam que ele dava um boi para entrar numa briga e depois da confusão formada não consta que corresse com a cangalha!

Falava  de uma maneira bastante singular, trocando o "s" pelo "x" - anos luz antes do surgimento da Xuxa  -  e a letra "v" pelo "g".  A propósito desse seu distúrbio de linguagem, é notório o caso do Presidente Dutra  (1945  a 1951), que também falava "imprialzim" ao Zuca, conforme constatou a historiadora cearense Isabel Lustosa em seu livro "Histórias de Presidentes  A República no Catête", obra fartamente ilustrada com desenhos de J. Carlos e outros chargistas da época. O capítulo dedicado ao Marechal Dutra intitula-se "Voxê qué xabê?". Por conta dessa particularidade, Dutra foi "massacrado" pelos chargistas seus contemporâneos.

O forte do Zuca era o seu poder mordaz de satirizar situações. Troçava com a ordem estabelecida, a moral e os bons costumes. Sertanejo astuto, feroz observador, não poupava nem a própria sombra. Em muitas de suas ações  como na vez em que amarrou um pedaço de xique-xique sob a cauda de uma rês que lhe invadira o roçado -  ele lembra o "Baixim", o Fradim sacana do cartunista Henfil.

Gostava de implicar com todo mundo, inclusive os parentes. Os Vianas eram seu alvo predileto: "Giana é igual a pelo de hortênsia, desgraxa uma bebida!". Também teria afirmado, em outra ocasião: "Giana é um bicho muito parexido com gente... pé de Giana é como picarete, do tanto que tem pra frente, tem pra trás!"

Fazia pouco caso da polícia e do clero. Quando foi buscar uma parteira para assistir o primeiro parto de sua mulher, Zuca fez o seguinte comentário:

- Padre, Parteira e Xoldado... ô três classe de gente xem futuro!!!

É ilustrativo o seu comentário sobre a candidatura do ex-deputado Barros dos Santos. Almoçando na residência do Sr. Neles Secundino, de quem era parente e amigo fiel, Zuca foi admoestado pelo anfitrião a aderir à candidatura do Sr. Barros dos Santos à Assembléia Legislativa.  Seu Neles caprichou na boca de urna:

- Compadre Zuca, este aqui é o grande advogado Barros dos Santos, pessoa da nossa estima, da nossa amizade e consideração. Ele disputa uma cadeira de deputado, por isso esperamos contar com o seu valioso apoio... 

Dr. Barros era um mulato e Zuca, como a maioria das pessoas de sua geração, era meio racista. Depois de analisar detidamente o candidato, Zuca  que não tinha papa na língua nem falava pelas costas  mostrou-se muito decepcionado e detonou a candidatura:

- Cumpade Neles, voxê num tem gergonha de me xeduzir pra votar no diabo d'um nêgo???

- Ma- mas Zuca, o Dr. Barros...

- E ainda por xima Dotô??? É por ixo que num chove!!!  arrematou o Zuca.

 

HÁ VIDA APÓS A MORTE?

 

O velho Chico de Sousa -  o Fitico do Castro -, foi um dos homens mais religiosos de que se teve notícia em Quixeramobim. Ele e seu genro Mané Aderaldo eram praticamente uns beatos, de tanto que rezavam, além do respeito imensurável por tudo que se relacionava com as coisas da Igreja Católica. Tal sentimento jamais foi partilhado pelo Zuca, sujeito irreverente e livre pensador, anarquista por pura intuição, uma vez que jamais deve ter lido livro algum que o doutrinasse neste sentido.
 
Francisco de Assis de Souza, o Fitico do Castro

O certo é que Zuca costumava zombar deste apego desmedido às coisas do outro mundo, a ponto de imaginar um Inferno repleto de maravilhas terrenas, sanfoneiros, dançadeiras seminuas e bebida da melhor qualidade, enquanto o Céu seria um lugar monótono, sem qualquer atrativo, onde as almas bocejavam de tédio sobre brancas nuvens de algodão azul.

Acerca dessa questão, um sobrinho do Zuca, o Albani, afirma que o viu comentar certa vez:

" - Já penxou quando nós tiver tudim no 'inxerno', danxando com as nêga e bebendo xerveja... ô que beleza! Já o pobre do Mané Aderaldo, coitado,  tão triste, lá em xima, trepado naquelas nuvens xem graça, doidim prá cair na gandaia e num pode...!"

De certo modo, seu jeito irreverente lembra as peripécias de Cancão de Fogo, o célebre "amarelinho" criado por Leandro Gomes de  Barros  - de quem voltaremos a falar  no terceiro capítulo deste livro - que  também zombava da morte:

 
"Quando ele viu que morria
Chamou a mulher pra junto
E disse: - Minha mulher
Não precisa chorar muito
Não há tempo mais perdido
Do que chorar por defunto.

 
A pessoa que tomar
Remédio pra não morrer
É como quem salga carne
Depois dela apodrecer,
É rezar para São Bento
Depois da cobra morder.
 

Chegou um frade e lhe disse:
- Venho ajudá-lo a morrer...
Respondeu Cancão de Fogo:
- Tenho que lhe agradecer,
Deite-se aí para um canto
Cuide logo em se torcer.
 

- Torcer como? Disse o frade,
Disse o Cancão: - Meu amigo,
O senhor não vem morrer
Para ir junto comigo?
O frade responde: - Vôtes!
Um burro é quem vai contigo!
 

Disse o Cancão de Fogo:
- Se eu não estivesse prostrado
Você tinha que sair
Cortês e civilizado
E só entraria em casa
Depois que fosse chamado. 
 

- Meu irmão, lhe disse o frade
Eu vim aqui exortá-lo,
O inferno está aberto
O diabo a esperá-lo
As chamas do purgatório
Estão prontas pra queimá-lo.
 

- Se entrei na tua casa
Foi para te confessar,
Pois levas grandes pecados
Para o leito tumular
Vim salvar-te do diabo,
Pra ele não te levar.
 

Disse-lhe o Cancão de Fogo:
- Frade, quero que me dê
explicação do Inferno,
Lhe peço como mercê,
No Inferno inda haverá,
Um diabo como você?
 

O frade saiu dali
Se benzendo amedrontado
Dizendo: - Aquilo é o Cão
Em um ente transformado
Me valha rosário bento
E o madeiro sagrado."
 

A FESTA DO ZUCA
 

Certa feita o Zuca resolveu fazer uma festa em sua casa. Já diz um velho adágio popular que festa é muito bom... na casa dos outros. Festa no sertão termina sempre em briga, em candeeiro apagado, em fole furado e outras desavenças do gênero. Prevendo tais contratempos e temeroso de que os brigões puxassem estacas de sua cerca, Zuca mandou cortar 50 cacetes de jucá e os empilhou no terreiro. Todo convidado que chegava ele dava o aviso:

- Olhe xeu xela da puta, se quigé brigá ali tem caxête de xobra! Num é prexijo arrancá as vara da minha cerca!

A festa  que por sinal não tinha alvará de licença  foi das mais bagunçadas. Briga por cima de briga, araca por cima de araca... um verdadeiro pandemônio.

No dia seguinte, como já era de se esperar, o Zuca foi intimado a comparecer perante o delegado de Quixeramobim, onde registrou-se o seguinte diálogo:

- Senhor José de Sousa Araújo...

- Xou eu!!!

- Soube que o senhor fez uma festa sem licença e  que a mesma resultou em muita briga...

- Menos a verdade! Em primeiro lugá eu num prexijo de lixença pra fazer festa na minha casa, porque lá quem manda xou eu. Em segundo lugá, xó houve uma briga... comexou a boca da noite e terminou de manhã!

 

ZUCA NAMORADOR

 

Tudo que se disser do Zuca é possível. Toda vez que passava pela Vila Campos, seu amigo Neles Secundino gostava de "dar corda" para ver o Zuca se soltar... De uma feita, estava hospedado na casa do amigo quando chegou um conhecido fazendeiro, filho de família rica e respeitada, que era o supra-sumo da elite rural do interior de Canindé, naqueles tempos idos. Seu Neles apressou-se em apresentar-lhe o rapaz, certo de que o Zuca soltaria uma das suas. Só não imaginava é que a brincadeira fosse tão pesada:

- Zuca, este aqui é o fulano, filho de fulano de tal...

- Ah! É 'xilho' de fulano? Namorei muito com a xinhora  xua mãe!

- Quando ela era solteira...?

- Depois de 'cajada" também!

 

(In ‘O Baú da Gaiatice’, Editora Assaré, 3ª. Edição, 2012)

 

A HERANÇA DO PARAÍBA (É feio, mas é bom...)
 

Chico Paraíba foi um caboclo velho do oco do mundo que apareceu certo tempo na Fazenda Cacimbinha puxando apenas uma corda... a cachorra havia morrido de fome no caminho. Trabalhador e extremamente usurário, um pirangueiro de peso e medida, não lhe foi difícil amealhar alguns cobres depois de alguns meses de extenuante trabalho. Chico aplicava suas economias comprando cabeças de gado e jumentos que criava nas capoeiras do patrão. Trabalhou noutras fazendas da região, tangeu comboios no rumo da serra do Baturité e, ao cabo de alguns anos, já era possuidor de 14 cabeças de gado, um lote de jumentos e um capital avaliado em mais de dois contos de réis.

Mas não há bem que sempre dure... Mal alimentado, já que não usufruía de seus haveres da maneira devida, acabou contraindo uma infecção intestinal, uma fraqueza crônica ou outra moléstia mais grave que lhe desfigurou o corpo e consumiu-lhe as forças. Tocado pela mão negra do destino, resolveu procurar abrigo na casa de seu antigo patrão, o velho Olímpio Viana, proprietário da Fazenda Cacimbinha.

 “Pai” Viana o tratou com benevolência e a caridade digna de um verdadeiro cristão, fornecendo-lhe um quartinho isolado da casa para abrigar-se e uma pessoa para tratar de sua doença, que julgava-se contagiosa. O velho possuía um verdadeiro “putufu” de dinheiro nos dois bolsos da calça, pois havia passado o seu rebanho bovino nos cobres, ficando apenas com alguns jumentos. Não se apartava de suas economias por nada. Dormia agarrado com os bolsos. Um dia, sentindo que ia morrer, chamou seu Viana e pediu-lhe que pagasse algumas contas que devia, mandasse celebrar algumas missas em intenção de sua alma e fizesse bom proveito do dinheiro que sobrasse. O velho morreu, as missas foram celebradas, as dívidas foram pagas e uma parte do dinheiro foi convertida em esmolas.  Viana não queria ficar com aquele dinheiro impregnado do suor do moribundo e ganho a duras penas. Resolveu levar o restante para o Juiz de Quixeramobim  dar-lhe o destino que melhor aprouvesse à Justiça. Nesta dita viagem, levou o seu genro Caboclo Viana, para casar no civil com a  Aurinha, e trouxe uns sacos de cal para caiar o oitão da casa.

Foi o bastante para o maledicente Zuca Idelfonso, falador por natureza, poeta ocasional, aproveitar o ensejo para fazer o “testamento” do falecido Chico  Paraíba, dizendo quem havia lucrado com os bens por ele deixados. Eis alguns trechos do irreverente poema:

 
REFRÃO:

É xeio, mas é bom
Deixe quem quigé falar...

 
- A morte do Paraíba
Causou grande rejultado
“Giana” pintou a casa
Caboclo xaiu cajado,

E até o Chico Lobo
Que era xeu axilhado (afilhado)
Entrou no xeu testamento
Ganhou um par de calxado:
Uma chinela de pneu
Com o calcanhar furado...

É xeio, mas é bom,
Deixe quem quigé falá! 

Os  chinelos deixados pelo finado Paraíba eram de pneu, com buracos em forma de meia lua no calcanhar e outros profundos sulcos no local dos dedos. Zé Viana assegura que na marca do dedão cabia um ovo de capota. 
 
 

Tempos depois recolhi aleatoriamente uma outra estrofe, que se encaixa dentro da mesma melodia (algo parecido com a música Calango da Lacraia, de Luiz Gonzaga), onde o Zuca vergasta o meu tio Dica Viana e outros vizinhos. Provavelmente não faz parte da versalhada sobre a herança do Paraíba: 

O Dica ta no Inxerno
E o Zé Gomes nas profundas
O Zé Chole também vai
Com um bode ‘alei’ nas cacundas... 

É xeio, mas é bom,
Deixe quem quigé falá! 

(In ‘A mala da cobra’, livro inédito)