O ELEMENTO
FICCIONAL NO LIVRO
“NO TEMPO DA LAMPARINA”,
DE ARIEVALDO VIANNA
“NO TEMPO DA LAMPARINA”,
DE ARIEVALDO VIANNA
Maércio Siqueira
Quando nós,
simpatizantes da análise textual e da crítica literária, nos pomos a ler um
livro, procuramos nele algo como originalidade, unidade, universalidade,
estilo, e principalmente a criatividade, ou invenção, que devem estar presentes
principalmente nas obras com clara finalidade literária. Não é a forma mais espontânea de se ler, é bem
verdade, mas trata-se de uma leitura que expõe os valores estéticos de uma
produção ou a ausência de tais valores, quando deveriam existir. Ao primeiro
lance de vista, não poderíamos abordar por esse prisma o livro de Arievaldo
Vianna, “No tempo da Lamparina”, recentemente lançado, uma vez que, embora
sejam crônicas, estas visam à narração de eventos reais, acontecidos. Porém um
olhar mais atento dessa obra vai trazendo à luz o elemento ficcional, senão
exatamente como invenção de eventos, pelo menos no estilo, bastante rico,
vibrátil e inteligente.
Arievaldo não se
limita à narração dos fatos. São crônicas e não reportagens. Seleciona cenas,
episódios, estabelece uma ordem, por importância de afeto, no quadro vivo da
reminiscência. Mesmo quando esteve mais preso a datas e sequências
cronológicas, como no livro anterior “O Sertão em Desencanto”, essa mesma
ternura da linguagem se fez presente. O fato é que o nosso autor sabe temperar
as frases, torná-las saborosas, como no seguinte exemplo: “A missiva envelopada
tinha caráter de coisa séria e eu entrei em pânico. A carta do cabra velho
dizia mais ou menos o seguinte(...)” (página 47). Daqui se deduz o cuidado com
a língua, a busca de expressividade, a não vulgarização do idioma. Também aí se
apimenta o episódio, cria uma expectativa no leitor, e isso não diz respeito ao
fato em si narrado, mas já é uma característica do narrador, arrumando o caso,
tornando-o mais interessante, “enfeitando”, como ele próprio diz, arte que
aprendeu com parentes próximos. No
capítulo II, intitulado “Quando me entendi por gente”, essa preferência pela
invenção, pelo “enfeite”, é confessada através de alguns episódios. Para
ilustrar nossa abordagem, vale a seguinte passagem, referindo-se à descoberta,
pelo mais velhos de sua família, de sua forma exagerada de contar as coisas,
quando criança:
“Lá se ia eu remendar
a história e contar como realmente acontecera: insossa, desenxabida, medíocre e
sem graça. Por que não me deixaram exercitar as artes de ‘literato’, como
faziam livremente o Raimundo Viana e o Gabriel? Até o João da Graça, empregado
do meu avô, podia contar suas meias verdades impunemente, a céu aberto” (p. 58)
Temos razão em acreditar
que essa consciência literária não era apenas uma mania ou traço de sua
personalidade infantil. O adulto e escritor, podemos ver isso a todo instante
em seus textos, está sempre procurando desviar-se da sensaboria da expressão
comum. Os fatos, reais, ocorridos, são contados com arte, com delicadeza,
revestidos dos comentários mais interessantes. Sua prosa está cheia de
referências literárias e culturais, regionais, pessoais e universais. Como as
coisas podem ser vistas de maneira crua, sem sabor, se o sujeito que olha tem
um universo na cabeça, de lembranças, de leituras as mais variadas e eruditas?
E, além disso, um bem educado senso de humor?

Por isso, considero
“No tempo da Lamparina”, bem como “O Sertão em Desencanto”, trabalho de arte
literária, e que devem ser vistos como tais.
Deve ser lembrado que
esse livro faz parte de um interessante projeto, sendo o segundo livro de uma
desejada trilogia. O autor vem sendo bem-sucedido nas duas obras já realizadas.
Quando estiver completa, então entenderemos a totalidade do que Arievaldo tem
em mente. Veremos o que ele terá criado. Deus conceda a Arievaldo todas as
condições para que escritor valoroso venha a concluir um plano tão importante
no palco das letras cearenses.
Casa de taipa - xilogravura de Maércio Siqueira
Ao pé do rádio - Xilo de Maércio Siqueira
AGRADECIMENTO
A MAÉRCIO SIQUEIRA
E uma
ligeira divagação sobre a sua arte como xilógrafo e escritor
Mais uma vez fico
deveras comovido com a sua generosidade, não apenas com relação a acolhida ao
meu trabalho (de escritor provinciano e longe dos holofotes midiáticos) mas,
sobretudo, pelo fato de comentá-lo com muita propriedade e acerto. Alguns
episódios desse livro "No tempo da lamparina - II volume de memórias de um
menino sertanejo" são esboços de um romance embrionário que venho
engendrando há alguns anos, sem coragem (e tempo) de arregaçar as mangas para
trazê-lo à lume... Algo nascido no tempo do velho candeeiro sertanejo talvez
fique ofuscado diante dos modernos holofotes cosmopolitas. Entretanto, a frase
de Tolstoi continua me encorajando, aquela que afirma que a melhor maneira de
sermos universais é falarmos de nossa aldeia. A persistência de Luiz Gonzaga em
cantar os ritmos e costumes do povo nordestino sofreu os piores preconceitos,
as maiores afrontas e entraves nas suas primeiras tentativas. Mas o tempo, a
quem se atribui o título de Senhor da Razão, se encarregou de provar que o
menino de Exu - filho adotivo do Crato (o Cratinho de açúcar, coração do
Cariri), como ele, carinhosamente, se referia, estava certo!
Quem se abeira das
veredas de seu chão nativo, e se abebera das fontes sertanejas, pisa na folha
seca e não chia. Bebe nas cacimbas sagradas da cultura popular e rejuvenesce a
cada nesga de lembrança que consegue resgatar das entranhas do cérebro ou das
conversas com pessoas que estão sintonizadas com esse universo. É exatamente
isso que você consegue com a sua poesia, com a sua prosa e, sobretudo, com as
suas xilogravuras, tão ricas de detalhes e simbologia, tão comprometidas com
esse chão sagrado em que nascemos e onde temos a graça de habitar. Até mesmo
quando você reproduz uma cena bíblica, como a fuga da Sagrada Família para o
Egito, eu consigo vislumbrar claramente as expressões nordestinas de um José
Sertanejo, cambiteiro dos antigos engenhos de cana do Cariri cearense; de uma
Maria dona-de-casa, acostumada a lavar roupa na Pedra da Batateira e outras
nascentes da região e de um Menino Jesus amamentado com leite de cabra e mingau
de araruta, com seus cueiros cheirando a sabão de oiticica e alfazema.
É a perfeita simbiose
de Gustave Doré com Mestre Noza! O estilo impecável dos grandes gravadores
europeus misturando-se com o traço inconfundível de Stênio Diniz, Damásio
Paulo, Antônio Relojoeiro e Walderedo Gonçalves. Naturalmente que você tem o
seu próprio estilo e não seria exagero afirmar que você já se projetou como um
dos mestres da gravura do Cariri em matéria de estilo e rebuscamento, tornando-se
um mestre no ofício que abraçou.
Do Maércio poeta e
prosador eu não me aventuro a traçar um perfil, embora já tenha saboreado
alguns de seus escritos. É que não tenho a pretensão de ser crítico literário,
porém, como leitor, asseguro que gostei, aprovei e recomendo. É uma escrita que
tem o mesmo sabor de uma rapadura batida ou de um arroz temperado com piqui.
Arievaldo
Vianna