segunda-feira, 18 de junho de 2018

Sertão Lamparina



O ELEMENTO FICCIONAL NO LIVRO 
“NO TEMPO DA LAMPARINA”, 
DE ARIEVALDO VIANNA

                 Maércio Siqueira

Quando nós, simpatizantes da análise textual e da crítica literária, nos pomos a ler um livro, procuramos nele algo como originalidade, unidade, universalidade, estilo, e principalmente a criatividade, ou invenção, que devem estar presentes principalmente nas obras com clara finalidade literária. Não é a  forma mais espontânea de se ler, é bem verdade, mas trata-se de uma leitura que expõe os valores estéticos de uma produção ou a ausência de tais valores, quando deveriam existir. Ao primeiro lance de vista, não poderíamos abordar por esse prisma o livro de Arievaldo Vianna, “No tempo da Lamparina”, recentemente lançado, uma vez que, embora sejam crônicas, estas visam à narração de eventos reais, acontecidos. Porém um olhar mais atento dessa obra vai trazendo à luz o elemento ficcional, senão exatamente como invenção de eventos, pelo menos no estilo, bastante rico, vibrátil e inteligente.

Arievaldo não se limita à narração dos fatos. São crônicas e não reportagens. Seleciona cenas, episódios, estabelece uma ordem, por importância de afeto, no quadro vivo da reminiscência. Mesmo quando esteve mais preso a datas e sequências cronológicas, como no livro anterior “O Sertão em Desencanto”, essa mesma ternura da linguagem se fez presente. O fato é que o nosso autor sabe temperar as frases, torná-las saborosas, como no seguinte exemplo: “A missiva envelopada tinha caráter de coisa séria e eu entrei em pânico. A carta do cabra velho dizia mais ou menos o seguinte(...)” (página 47). Daqui se deduz o cuidado com a língua, a busca de expressividade, a não vulgarização do idioma. Também aí se apimenta o episódio, cria uma expectativa no leitor, e isso não diz respeito ao fato em si narrado, mas já é uma característica do narrador, arrumando o caso, tornando-o mais interessante, “enfeitando”, como ele próprio diz, arte que aprendeu com parentes próximos.  No capítulo II, intitulado “Quando me entendi por gente”, essa preferência pela invenção, pelo “enfeite”, é confessada através de alguns episódios. Para ilustrar nossa abordagem, vale a seguinte passagem, referindo-se à descoberta, pelo mais velhos de sua família, de sua forma exagerada de contar as coisas, quando criança:

“Lá se ia eu remendar a história e contar como realmente acontecera: insossa, desenxabida, medíocre e sem graça. Por que não me deixaram exercitar as artes de ‘literato’, como faziam livremente o Raimundo Viana e o Gabriel? Até o João da Graça, empregado do meu avô, podia contar suas meias verdades impunemente, a céu aberto” (p. 58)

Temos razão em acreditar que essa consciência literária não era apenas uma mania ou traço de sua personalidade infantil. O adulto e escritor, podemos ver isso a todo instante em seus textos, está sempre procurando desviar-se da sensaboria da expressão comum. Os fatos, reais, ocorridos, são contados com arte, com delicadeza, revestidos dos comentários mais interessantes. Sua prosa está cheia de referências literárias e culturais, regionais, pessoais e universais. Como as coisas podem ser vistas de maneira crua, sem sabor, se o sujeito que olha tem um universo na cabeça, de lembranças, de leituras as mais variadas e eruditas? E, além disso, um bem educado senso de humor?

Não se trata, portanto de um livro de puro registro. Não notamos no autor aquela ansiedade de falar de si mesmo. Deseja nos mostrar um mundo, do qual ele fez parte e do qual agora é um porta-voz. Mas esse mundo não existe mais; para que tenhamos ideia dele, precisa ser contado, ou recontado, não em um realismo fotográfico, mas pela afetividade da palavra. E assim como a lamparina emprestava o efeito alucinatório de suas chamas às cenas que realmente aconteciam, o nosso autor empresta essa chama tremulante e vívida, para darmos uma olhada naqueles tempos idos.

Por isso, considero “No tempo da Lamparina”, bem como “O Sertão em Desencanto”, trabalho de arte literária, e que devem ser vistos como tais.

Deve ser lembrado que esse livro faz parte de um interessante projeto, sendo o segundo livro de uma desejada trilogia. O autor vem sendo bem-sucedido nas duas obras já realizadas. Quando estiver completa, então entenderemos a totalidade do que Arievaldo tem em mente. Veremos o que ele terá criado. Deus conceda a Arievaldo todas as condições para que escritor valoroso venha a concluir um plano tão importante no palco das letras cearenses.




Casa de taipa - xilogravura de Maércio Siqueira

Ao pé do rádio - Xilo de Maércio Siqueira



AGRADECIMENTO A MAÉRCIO SIQUEIRA
E uma ligeira divagação sobre a sua arte como xilógrafo e escritor

Mais uma vez fico deveras comovido com a sua generosidade, não apenas com relação a acolhida ao meu trabalho (de escritor provinciano e longe dos holofotes midiáticos) mas, sobretudo, pelo fato de comentá-lo com muita propriedade e acerto. Alguns episódios desse livro "No tempo da lamparina - II volume de memórias de um menino sertanejo" são esboços de um romance embrionário que venho engendrando há alguns anos, sem coragem (e tempo) de arregaçar as mangas para trazê-lo à lume... Algo nascido no tempo do velho candeeiro sertanejo talvez fique ofuscado diante dos modernos holofotes cosmopolitas. Entretanto, a frase de Tolstoi continua me encorajando, aquela que afirma que a melhor maneira de sermos universais é falarmos de nossa aldeia. A persistência de Luiz Gonzaga em cantar os ritmos e costumes do povo nordestino sofreu os piores preconceitos, as maiores afrontas e entraves nas suas primeiras tentativas. Mas o tempo, a quem se atribui o título de Senhor da Razão, se encarregou de provar que o menino de Exu - filho adotivo do Crato (o Cratinho de açúcar, coração do Cariri), como ele, carinhosamente, se referia, estava certo!

Quem se abeira das veredas de seu chão nativo, e se abebera das fontes sertanejas, pisa na folha seca e não chia. Bebe nas cacimbas sagradas da cultura popular e rejuvenesce a cada nesga de lembrança que consegue resgatar das entranhas do cérebro ou das conversas com pessoas que estão sintonizadas com esse universo. É exatamente isso que você consegue com a sua poesia, com a sua prosa e, sobretudo, com as suas xilogravuras, tão ricas de detalhes e simbologia, tão comprometidas com esse chão sagrado em que nascemos e onde temos a graça de habitar. Até mesmo quando você reproduz uma cena bíblica, como a fuga da Sagrada Família para o Egito, eu consigo vislumbrar claramente as expressões nordestinas de um José Sertanejo, cambiteiro dos antigos engenhos de cana do Cariri cearense; de uma Maria dona-de-casa, acostumada a lavar roupa na Pedra da Batateira e outras nascentes da região e de um Menino Jesus amamentado com leite de cabra e mingau de araruta, com seus cueiros cheirando a sabão de oiticica e alfazema.

É a perfeita simbiose de Gustave Doré com Mestre Noza! O estilo impecável dos grandes gravadores europeus misturando-se com o traço inconfundível de Stênio Diniz, Damásio Paulo, Antônio Relojoeiro e Walderedo Gonçalves. Naturalmente que você tem o seu próprio estilo e não seria exagero afirmar que você já se projetou como um dos mestres da gravura do Cariri em matéria de estilo e rebuscamento, tornando-se um mestre no ofício que abraçou.

Do Maércio poeta e prosador eu não me aventuro a traçar um perfil, embora já tenha saboreado alguns de seus escritos. É que não tenho a pretensão de ser crítico literário, porém, como leitor, asseguro que gostei, aprovei e recomendo. É uma escrita que tem o mesmo sabor de uma rapadura batida ou de um arroz temperado com piqui.


Arievaldo Vianna