quinta-feira, 5 de setembro de 2019

HOMENAGEM


Arte: Arievaldo Vianna

7 de setembro de 2019:
SESQUICENTENÁRIO DE JOÃO MELCHIADES FERREIRA DA SILVA, O CANTOR DA BORBOREMA



HÁ EXATOS 150 ANOS, no dia 7 de setembro de 1869, nascia mais um patriota no município de Bananeiras-PB: o menino João Melchíades Ferreira da Silva, que se auto-intitularia, no futuro, O Cantor da Borborema. No folheto "Os homens da cordilheira" (há um exemplar catalogado nos Fundos Villa Lobos, organizado por Mário de Andrade), João Melchíades diz que seu avô materno, o beato Antônio Simão, construiu uma igreja na serra, a pedido do padre Ibiapina. Ele teria fundado também uma escola para educar crianças, onde o próprio Melchíades aprendeu as primeiras letras. No terrível triênio de seca que foi de 1877 a 1879, já órfão de pai e criado sob a tutela desse avô, o menino João Melchíades foi raptado por um grupo de ciganos. Dizem que ele teria se encantado pela música e resolveu acompanhá-los. Sua mãe só foi resgatá-lo de volta cerca de dois anos depois.

De espírito inquieto e aventureiro, sua sina era correr o mundo. Aos 18 anos sentou praça no Exército, ainda na Monarquia. Em 1897 João Melchíades, integrante do 27º Batalhão de Infantaria das Forças Armadas, foi convocado para combater na Guerra de Canudos, onde quase perdeu a vida. Após a guerra, foi promovido a Sargento-Mor. Lembranças familiares, recolhidas num velho manuscrito por sua neta Lela Melchíades, a partir dos relatos de sua avó Senhorinha, informam que ele voltou traumatizado da Guerra e não gostava de tocar no assunto. Ficou muito chocado ao ver os cadáveres de mães carbonizados e abraçadas aos filhinhos, naquilo que Euclides da Cunha batizou de "a nossa Vendeia" ou "Troia sertaneja". Ele participou ativamente da tomada das trincheiras às margens do rio Cocorobó, uma das refregas mais sangrentas daquela luta fratricida.

Informa a pesquisadora Ruth Brito Lêmos Terra que a atividade poética de Melchíades é anterior a 1898. Ela baseia-se no poema "Melchíades escreve a Cícero de Brito Galvão, no Rio de Janeiro, sobre a açudagem do Seridó", onde o poeta faz referência a um açude de propriedade do cangaceiro Silvino Ayres, mentor de Antônio Silvino. O ano de 1898 foi o mesmo em que Silvino Ayres foi preso e, por conta disso, sucedido por seu êmulo no comando do cangaço.


Folheto raro de Melchíades 
(in Fundos Villa-Lobos, Coleção Mário de Andrade)


Folheto raro de Melchíades (in Fonds Raymond Cantel)


Em 1903, João Melchíades foi designado para combater na fronteira do Acre com a Bolívia, onde contraiu a febre béri-béri, que quase o vitimou. Nesse período, o poeta andava na companhia do cantador Joaquim Jaqueira e chegou a fazer apresentações em Manaus e em Belém do Pará, ao som da viola. No ano seguinte, segundo apurou o pesquisador baiano José Calasans, Melchíades resolveu publicar, em cordel, suas memórias sobre Canudos. É possível que tenha sido escrito ainda no século XIX, após o término da guerra. Sua visão é alinhada com a propaganda difamatória que se fazia contra o beato Antônio Conselheiro, por meio de libelos divulgados na imprensa, sob a orientação do Ministério da Guerra. Mas nem por isso ele deixa de reconhecer a bravura dos conselheiristas em estrofes antológicas como esta:

"Escapa, escapa, soldado
Quem tiver perna que corra
Quem quiser ficar que fique
Quem quiser morrer que morra
Há de nascer duas vezes
Quem sair desta gangorra".


Na opinião de Calasans, Melchíades era poeta de reconhecida capacidade, como podemos comprovar nesses versos que consignam um instante dramático da fuga dos soldados da terceira expedição. Na década de 1970, a pesquisadora Ruth Terra entrevistou uma filha do poeta, Santina, e teve acesso a uma carta de 1914, dirigida à sua esposa, Senhorinha (mãe de seus quatro filhos), falando sobre o folheto do Matador de Onças ("História do Capitão Cazuza Sátyro"). Nessa correspondência, o poeta fala também de outras obras e de seus filhos. O pesquisador Mário de Andrade considerou esse poema excelente ("Cazuza Sátyro, o Matador de Onças") e anotou isso, de próprio punho, num exemplar que se encontra na coleção dos Fundos Villa-Lobos. Diz Mário de Andrade: "Estupendo! Não porque esteja feito com espírito, mas pelo interesse extraordinário de quanto conta pelo realismo, às vezes duma firmeza homérica, com que conta. É admirável e vale mais que qualquer espírito".

Outro folheto muito elogiado, que tornou-se um dos maiores clássicos da chamada Literatura de Cordel é a "História do Valente Sertanejo Zé Garcia", assim avaliado por mestre Câmara Cascudo, em seu "Vaqueiros e Cantadores": "Retrata deliciosamente o sertão de outrora, com as pegas de barbatão, escolhas de cavalos para montar, rapto de moças, assaltos de cangaceiros, chefes onipotentes e vaqueiros afoitos, cantadores famosos e passagens românticas. Pertence bem ao ciclo social que terminou no século XX e que durara até o século XIX".


Versão infanto-juvenil, releitura de Arievaldo Vianna e Jô Oliveira


O PAVÃO MISTERIOSO

Entre 1925 e 1929, circula a primeira edição impressa do folheto "O Pavão Misterioso", assinada por João Melchíades Ferreira da Silva. Alguns pesquisadores asseguram que já havia uma versão do poema, escrita anteriormente pelo paraibano José Camelo de Melo Rezende (1885 - 1964) mas que ainda não fora publicada, mas cantada ao vivo. José Camelo era um autor imaginoso e brilhante, de grandes recursos poéticos. Ao que parece, a polêmica em torno da autoria só ganhou repercussão após a morte de Melchíades, em 1933. Depois que o folheto se consolidou como um estrondoso sucesso, tornou-se objeto de cobiça de vários editores, que incitavam a polêmica para facilitar a sua publicação sem pagar direitos autorais a nenhum dos dois poetas.

Segundo Átila de Almeida e José Alves Sobrinho, autores do Dicionário Bio-Bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada, nesse período, José Camelo vinha sofrendo perseguições e havia se afastado da Paraíba e se refugiado no Rio Grande do Norte. Essa situação nunca foi devidamente esclarecida. Aroldo Camelo de Melo, sobrinho do poeta, assegura que ele estava preso, em João Pessoa, por causa de dinheiro falso que recebera de um editor no Recife (PE). O pesquisador José Paulo Ribeiro, de Guarabira-PB, encontrou cópia de um folheto escrito e publicado por José Camelo narrando esse episódio do dinheiro falso, dos seus percalços perante à Justiça e de como conseguiu se livrar da acusação. Vale ressaltar que o mais importante editor de cordel da época, atuando no Recife-PE, era ninguém menos que João Martins de Athayde, com quem José Camelo mantinha negócios. Entretanto, no folheto intitulado "A prisão e soltura de José Camelo" o poeta afirma que recebeu as cédulas falsas de um rapaz que lhe comprou quatrocentos folhetos para revenda. O mesmo rapaz apareceu à noite na cantoria que realizava em companhia de um colega. Parecendo cortês e generoso, colocou uma cédula graúda na bandeja e pegou outras menores, verdadeiras, como troco. O caso do dinheiro falso veio a ser descoberto por um policial, a quem um amigo do poeta comprara um carneiro gordo com uma das cédulas recebidas na dita cantoria. Daí em diante começa o seu calvário, a fim de provar a sua inocência. É um caso que precisa ser melhor apurado, já que chegou aos tribunais da Justiça paraibana.


Em seus livros, a pesquisadora Ruth Terra apresenta uma lista completa (ou quase) de todos os poetas populares que haviam publicado folhetos entre 1898 e 1930. Na Casa de Rui Barbosa e outras coleções pesquisadas pela autora, aparecem diversos folhetos de João Melchíades, mas nenhum de José Camelo, até o ano de 1930.

Segundo o testemunho do poeta Antônio Ferreira da Cruz, que escreveu um folheto intitulado "A morte de João Melchíades - O Cantor da Borborema", publicado pela tipografia da Popular Editora, de João Pessoa, Melchíades era uma espécie de "professor de cantoria" e tinha muitos discípulos. Um de seus parceiros era justamente o cantador José Camelo de Melo, com quem viajava fazendo apresentações. Aroldo Camelo informa que, durante uma dessas apresentações, a questão da autoria do "Pavão Misterioso" veio à baila, mas em clima amistoso. Camelo terminou uma estrofe dizendo: "O pavão tem duas asas / pode voar com nós dois". Melchíades respondeu com outra estrofe, no mesmo tom. Eis o que diz Antônio Ferreira da Cruz, na página 4 do folheto já mencionado, falando inicialmente de uma polêmica (poética) que Melchíades (católico fervoroso) mantinha com os evangélicos:

"Era um cantor educado
Na regra de divertir
Não bebia, não jogava,
Nem gostava de mentir;
Com qualquer pastor da crença
Gostava de discutir.

Em toda zona brejeira
Mostrava bem seu emblema
Era muito conhecido
Por Cantor da Borborema
Desde o Pico do Jabre
Ao Boqueirão da Jurema.

Ensinou muitos cantores,
Era um escritor de fé
Andou com José Camelo
Ensinou Antônio Thomé
Ensinou José Thomás
Lecionou Josué

Em toda escala de versos
Ele sabia cantar
Ensinou a cantador
Que não sabia falar
Ainda que alguém lhe desse
A paga de o difamar".

No romance "A pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta", de Ariano Suassuna, João Melchíades Ferreira aparece como padrinho de crisma e mestre de cantoria de Quaderna e de seu parceiro Lino Pedra Verde. Pelo visto, mestre Ariano tinha ciência dessa atividade de Melchíades. Nas "Infâncias de Quaderna" o personagem criado por Ariano também é raptado por ciganos, como de fato ocorreu com João Melchíades, quando criança.
A saga do Cantor da Borborema virou livro, uma biografia escrita por Arievaldo Vianna, incluindo um estudo crítico da obra, com colaboração do professor Stélio Torquato Lima e prefácio de Bráulio Tavares. Importante ressaltar também a colaboração do pesquisador José Paulo Ribeiro, de Guarabira, que levantou fotos, documentos e folhetos raros em Campina Grande, João Pessoa e na região do Brejo Paraibano, área de maior atuação do poeta.
Depois de realizarmos uma cuidadosa pesquisa, entrevistando familiares, colhendo documentos em cartórios e livros paroquiais, elaboramos um texto enxuto porém fartamente documentado, a fim de contar a sua história sem acirrar, ainda mais, essa polêmica infrutífera que ainda hoje norteia os voos do Pavão Misterioso.

ARIEVALDO VIANNA


5ª Edição de Historia do Valente Sertanejo Zé Garcia,
de 1926, edição feita ainda em vida do autor, por F. C. Batista & Irmão.
(Coleção Mário de Andrade)





quarta-feira, 4 de setembro de 2019

A VISITA DA MORTE




O HOMEM QUE QUERIA ENGANAR A MORTE
Um cordel de ARIEVALDO VIANNA

Diz um antigo provérbio
Que a morte ninguém desvia
Até mesmo Salomão
Com sua sabedoria
Quis mudar o seu destino
Mas o desígnio divino
Tal coisa não consentia.

Tentar mudar o destino
Que nos traça o Soberano
Mostrou-se, através dos tempos,
O mais lamentável engano
Todo homem, quando nasce
A Morte grava-lhe a face
Com a marca do desengano.

Ceifar da face da terra
Todo e qualquer ser vivente
É esta a sua missão
Imutável, permanente,
Tentar enganar a Morte
É pelejar contra a sorte
Numa luta inconseqüente.

Manter gelo no sol quente
Sem ter refrigerador
É querer guardar dinheiro
Depois que perde o valor;
Renegar o Evangelho,
Viajar num carro velho
Depois que bate o motor.

Num pequeno vilarejo
Encravado no agreste
Residia um potentado
O mais rico do Nordeste
Fazendeiro respeitado
Dono de ouro e de gado
Sovina que só a peste.

Construiu bela mansão
Bem na rua principal
Mandou cercá-la de grades
Botou um guarda leal;
Entretanto, bem pertinho
Residia um pobrezinho
Numa miséria total.

Era um casebre de taipa
De palha e zinco coberto
Em um terreno baldio
Que antes era deserto
E o coitado ali vivia
Porque o dono consentia
Ou não sabia, decerto...

(...)



Lá na mansão do ricaço
Uma bela placa havia
Dizendo o nome da rua
“Desembargador Garcia”
O número vinha depois:
Seiscentos e vinte e dois
Na mesma placa se lia.

Era uma placa dourada
Toda em metal niquelado
Os números de outra cor
Feitos de bronze cromado;
Agora vamos saber
Que placa podia haver
No casebre do outro lado.

Num pequeno compensado
Ou talvez num papelão
O pobre havia botado
Um texto feito a carvão
“Seiscentos e vinte três”
Agora vejam vocês
O deus Destino em ação...

Certo dia o rico andava
Nas ruas da capital
Quando uma velha cigana
Revela seu mapa astral:
- Nos corredores da sorte
Eu vejo a face da morte
Numa sentença fatal.

Dizia a velha: — Estou vendo
(Pois já se aproxima o dia)
A morte andando na rua
“Desembargador Garcia”
E numa bela morada
Que tem a placa dourada
Vejo prantos de agonia.

O rico impressionado
Com os pés cravados no chão
Viu na bola de cristal
Reflexos de uma mansão
Idêntica à que residia
E a dita placa onde lia
O número com perfeição.

Viu uma mulher chegar
Montando um negro corcel
Consultando um velho livro
Cessou então o tropel
Do seu cavalo e parou
A dita placa mirou
E anotou num papel.

O rico saiu dali
Bastante impressionado
As palavras da cigana
O deixaram perturbado,
Dia e noite lamentava
Porque já se aproximava
A triste data marcada.

(...)