sábado, 29 de junho de 2013

AINDA O CEGO ADERALDO

 
Cego Aderaldo, o mais lírico violeiro
e cantador do Brasil

J. Lindemberg de Aquino

Cem anos já são passados do nascimento do mais famoso dos poetas cantadores e violeiros do Nordeste (o centenário do Cego aconteceu em 1978 – este artigo é de 1977), o Cego Aderaldo. Cearense do Crato, teve por berço o cenário emoldurado de verdes e azuis da Serra do Araripe o cascatear de fontes e regatos cristalinos e a terra histórica, de mártires e de heróis.

Poeta e repentista, o verso saia-lhe natural, rude, rústico e espontâneo, seja a entoar louvores ou a ferrotear os adversários dos incansáveis desafios sertanejos, seja em epigramas vorazes contra os que lhe testavam a argúcia e a inteligência, seja na exaltação das belezas da terra, dos sentimentos diversos ou nos repentes gozados, humorísticos, galhofeiros e ferinos que faziam a delícia dos auditórios.

Na poesia de Aderaldo cintilam faiscações primorosas de uma inteligência inconfundível. Tinham os seus versos configurações geniais, mostrando a lucidez de um espírito observador e analítico, como esses:

O filho do alfaiate — seu brinquedo é com retalho,
O filho do jogador gosta muito é do baralho,
E o filho do preguiçoso só dorme bem no borralho,
O filho do homem praiano, seu vício é comer areia,
O filho da costureira sua roupa é muito feia,
Porque é feita de taco
Que sobrou da roupa alheia
O filho do carteiro — brinca com caixão e saca,
O filho do feiticeiro só fala em urucubaca,
O filho do vaqueiro junta ossinhos, chama vaca…
O filho do ferreiro, seu brinquedo é uma safra,
O filho do pescador aprende a fazer tarrafa,
E o filho do cachaceiro nasce lambendo garrafa…

 

Falando sobre a terra natal de Aderaldo, o grande Jáder de Carvalho diz:

“Cego Aderaldo… de onde era filho? Ele mesmo, nas suas memórias aponta o Crato como o chão onde a parteira lhe apanhou o corpinho nutrido. Mas a terra mesmo da gente não é aquela onde nasce o corpo: é aquela onde nasce a alma. E a alma do cantador famoso veio à luz em Quixadá. Foi na cidade das pedras na cidade do chão duro e salgado, que veio ao mundo a alma do mais agressivo o mais lírico violeiro e cantador do Brasil.

A alma da gente, ó meu leitor — continua Jáder de Carvalho – não brota logo com o corpo, entre as dores do parto: brota na hora em que o menino principia a entender, a sentir o mundo, o céu, o canto dos pássaros, o mugido de uma vaca o relincho de um cavalo, o aboio de um vaqueiro — em qualquer dessas coisas pode estar a raiz da alma. Como pode estar também, no gemido de uma viola, num apito de fábrica, no silvo de um navio no dobrar de um sino, no barulho do mar.

A alma de Aderaldo nasceu — e disso tenho certeza, sob o sol de fogo de Quixadá, ao pé de uma mãe viúva, que, de tão pobre, teve de empregar a dois vinténs por dia o órfãozinho de cinco anos…”

Eduardo Campos, ao analisar o Cego Aderaldo afirma:

“Não se repetia, aí estava a grande vantagem sobre os outros.

Não era cantador das palavras difíceis, dos que se acodem nos dicionários ou nos livros sagrados. Os seus grandes livros de sabedoria estavam na natureza, no estranho mas belo mundo que ele, a rigor, aprendeu a ver através dos outros”.

O Aderaldo sempre cantou sua cegueira em diferentes ocasiões.

Eis algo a esse respeito, de sua autoria:

Correu de mim a fortuna a luz dos olhos perdi;
Céus, estrelas, terra e mar
Fugiram, jamais os vi,
Flores jardins, campos e prados de vê-los jamais esqueci.
Deus quer que eu viva sem lua. Sem ver do mundo a beleza.
E permitiu que eu perdesse da vida a maior riqueza,
Já não tenha a quem recorra, nem a própria natureza!

Ou esse outro verso, final do seu soneto, dedicado à sua mãezinha, composto em Maceió em 12 de maio de 1949, Dia das Mães.

Este Dia das Mães, como outros dias,
Santos e puros cheios de afeição,
Abriga o bem de todas as Marias
Cantando rimas para um coração…
Mas minha mãe partiu…
Meus dezoito anos
Trouxeram-me a cegueira, foi-se a alma
Desde então eu a vejo entre meus planos
Mas somente com os olhos de minha alma!…

Grande poeta e cantador Aderaldo viveu mais de 70 anos a percorrer os sertões, em desafios e violas, a entoar versos e a recitar poemas imortais.

Aderaldo no Céu é o título de trabalho de Pantaleão Damasceno, jornalista cearense em homenagem ao poeta após a morte. Nele Damasceno afirma:

“Cego Aderaldo, por uma dessas coincidências da vida, nasceu no dia de São João e morreu no dia consagrado a São Pedro. Tratando-se do mês das tradicionais comemorações juninas, tudo indica que o saudoso violeiro, vai encontrar o Céu em festa e de portas abertas, podendo o Santo Chaveiro, eufórico, repetir as mesmas palavras que proferiu à chegada de Irene à porta do paraíso segundo o poeta Manuel Bandeira:

— Entre, Aderaldo, você não precisa pedir licença.

E o velho cego, agora leve como uma pluma, e agora enxergando tudo, observa com surpresa, aqui e ali, as belezas infinitas do firmamento. E numa espécie de desabafo, manda-nos dizer, em mensagem de fé e esperança, que ‘os mortos vivem não os choreis’”.

Depoimento de outro escritor, Otacílio Colares:

“O Cego Aderaldo era, a nosso ver, o último remanescente daquela grei imensa que nos deu valores como Inácio da Catingueira, Francisco Romano, Dantas Quezado e a negra Chica Barroso. Forte como um carvalho, franco e simples como um eterno menino grande, passou ele a existência a transmitir alegria, em versos que lhe saíam da alma como o arrojo dos rios em cheia, e soube morrer tranquilo e sereno como um justo, compenetrado de haver realizado a sua destinação, na terra que ele tanto amou e decantou. Tipo acabado de trovador da velha cepa, com a sua morte, podemos estar certos, encerrou-se um ciclo dos grandes cantadores aqueles que tinham como característica primordial a singeleza no viver e no interpretar a sua arte”.

Extraordinário rapsodo dos sertões, Aderaldo eternizou-se pelo muito que produziu, e que está, infelizmente disperso em livros, jornais e revistas. Em 1962, foi lançado um livro com seus versos, com comentários de Raquel de Queiroz e Paulo Sarasate. Mas esse livro hoje raro, não contém um milésimo de sua fertilíssima produção poética, derramada em mais de 60 anos pelo Brasil inteiro. Sua vida cantou a dor, de ver a pobreza rondando-lhe a infância desventurada, o pai, surdo e paralítico, a mãe pobre e desassistida e a cegueira chegar-lhe aos 18 anos de idade. Mas a tudo resistiu, valendo-se da voz, inspiração, inteligência e lucidez, para com a viola, exaltar o sertão e construir o seu mundo.

Humorista fez da ironia a suprema virtude nos versos, e sentia-se que, com tato e olfato aguçado via melhor do que os que tem olhos. Ao ser apresentado à noiva de um cidadão, sentindo-a robusta e forte; versou:

Doutor, esta sua noiva
É uma linda cachopa,
a gente olhando seus seios
Assim por cima da roupa,
é ver dois cocos na praia
Dentro dum saco de estopa.


Se eu me casasse doutor
Minha mulher era feia,
Casar com mulher bonita
toma a freguesia alheia
Cego com mulher bonita
É plantar feijão de meia…

Trovador inesquecível dos sertões, Aderaldo Ferreira de Araújo, era este o seu nome, nasceu em Crato a 24 de junho de 1878 e faleceu em Fortaleza, praticamente indigente*, a 29 de junho de 1967, sendo filho do casal Joaquim Rufino de Araújo, alfaiate, e Maria Olimpia de Araújo. A sua rua de nascimento foi a antiga Pedra Lavrada, das mais antigas do Crato, que tem o Riacho Granjeiro às costas e é hoje chamada Pedro II. Encantou os auditórios mais seletos de todo o  Brasil e percorreu todos os sertões, vilas, sítios e fazendas, cantando, encantando com sua verve, seu humor e sua imensa produção poética. O que produziu garantiu-lhe a imortalidade e dele disse, em versos, na sua despedida, Ladislau Vieira:

Já não vibra a viola do
Nordeste nas praças e nas casas das fazendas
e que nas lojas redobrava as vendas
tangida pelas mãos do antigo mestre.
A araponga de cantar silvestre
Na sua voz de metal pelas contendas tornou-se muda,
De mudez agreste
Na sua voz de metal pelas contendas.
Não mais se animam velho e criaturas
Nas noites de sermões enluaradas
Nos fogos de São João pelas calçadas…
Pois finou-se o Aderaldo, ao fim das danças
Ninguém jamais na terra o encontrará
e a “Parca a paca cara pagará…

Aquino, J. Lindemberg de. “Cego Aderaldo, o mais lírico violeiro e cantador do Brasil”. Jornal do Commercio. Recife, 25 de junho de 1977


 

* A respeito dessa afirmativa, de que o cego teria morrido como indigente, vejamos o que diz o mestre Alberto Porfírio em seu livro ‘Poetas populares e cantadores do Ceará’:

“Em Fortaleza, quando adoeceu para morrer, foi colocado no apartamento Eduardo Salgado da Santa Casa de Misericórdia, quarto 6, onde, por conta do industrial Fernando Pinto, foi assistido pelos médicos especialistas Dr. Farah Otoch e Dr. Eudásio Barroso, muito ao contrário do que se fala por aí, dizendo que o velho poeta fora internado e morrera como indigente.”

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