domingo, 18 de junho de 2017

DO BAÚ DAS LEMBRANÇAS


RETALHOS DA INFÂNCIA

Pra ter animação na festa, 
São João só presta puxando fogo!
(Elino Julião)


Estou puxando pelo FOGO da memória. Lembranças que ardem sem se queimar, paixão que se consome sem arder, fogueira que jamais se apagará da minha coivara de lembranças, ventos que sempre soprarão favoráveis na queima de meu roçado e chuvas que sempre cairão benfazejas em cada coisa que eu plantar durante os dias de peregrinação nesse planeta.

O cordel foi minha leitura de primeira hora, literatura que vislumbrei da soleira das janelas de minha infância, linguagem corriqueira que utilizávamos no dia-a-dia com a vantagem de ser rimada e metrificada. Antes mesmo de aprender o beabá eu já me deliciava com a leitura de minha avó Alzira, corrida e desembaraçada, na toada mais adequada para os folhetos e romances de cordel. Desfilavam diante de mim reis, princesas encantadas, castelos de ouro e cristal, gigantes descomunais, dragões flamejantes, guerreiros medievais, amarelinhos sabidos, o diabo logrado, as fábulas repletas de bichos da fauna nordestina e a saga dos cangaceiros audaciosos. Universo mais lúdico é impossível.



DIFUSORA DRAGÃO DO MATO
(A voz de ouro das Capembas Rajadas)

Depois do Cordel, o rádio era a minha grande paixão. Cheguei mesmo a brincar de radialista, quando menino. A Difusora Dragão do Mato, ZYH 1967 operava num estúdio feito de varas de marmeleiro, coberto de sacos plásticos e galhos de mofumbo, numa capoeira que principiava logo após o monturo da casa de meus avós. O microfone era uma lata de sardinha ligado por fios de arame a uma velha bacia de alumínio, colocada na extremidade de uma longa vara que servia de antena. Eu destruía velhos cadernos escolares para retirar o arame dos espirais e construir os equipamentos da minha emissora de brinquedo. Além de atuar como disk-jóquei e sonoplasta, eu também era o único cantor da emissora, interpretando desde os clássicos de Luiz Gonzaga, o nosso imortal Rei do Baião, às cantigas safadas de Genival Lacerda, João Gonçaves e Messias Holanda:

— Ô lapa de minhoca, eita que minhocão / com uma minhoca dessas se pesca até tubarãããããoooo!

E ainda tinha aquele clássico do comecinho da carreira do grande forrozeiro cearense:

— Ouvi cantar o sabiá na bananeira, amor. Na bananeira ouvi um sabiá cantar... til, til, til, til, canta, canta, sabiá...


A construção do estúdio da Difusora Dragão do Mato principiou meio às escondidas. Vovô não gostava que a gente andasse pelos matos armados de foices e facões derribando moitas de marmeleiro e cavando buracos com alavancas para instalação dos pilares (forquilhas) que sustinham o teto da construção. Para tarefas dessa natureza eu contava sempre com a colaboração dos primos Totonho e Oswaldo, mais velhos do que eu, que ajudavam a pegar as ferramentas no quarto da casa velha, quando vovô tirava uma sesta após o almoço. Com um machado conseguimos cortar quatro forquilhas mais grossas e o restante foi feito com barbante, prego, arame e varas de marmeleiro. Tábuas de velhos caixotes e engradados vazios serviram para montar os móveis do estúdio, um verdadeiro luxo para os meus olhos de criança.
Por trás da emissora ficava o meu curral de gado. Gadinho de osso, feito com as articulações do mocotó das reses e o osso do chambari (foto postada por Carlos Flaubert Patrício de Almeida). Eu brincava também com vagens de Pereiro, que se assemelhavam com uma sela de montaria. O cavalinho podia ser um fruto de mandacaru com quatro patas de cipó... Ali funcionava também a minha olaria, onde eu fabricava tijolos um pouco maiores que uma caixa-de-fósforo, com a ajuda de uma pequena grade que eu mesmo havia construído. Chegamos mesmo a fazer caieiras e botar fogo nesses pequenos tijolos, com o risco de incendiar toda a capoeira. Um dia o Totonho chegou com um plano mirabolante:

— Vamos fazer um açude? Nunca vi fazenda sem açude.
— Um açude? Aonde?
— Nessa grota que passa aqui por trás da rádio. Dá um açude que é uma beleza!
Começamos no mesmo dia. Fizemos um barreiro que dava para nadar, quando muito, meia dúzia de patos. Vovô às vezes se incomodava com aquela movimentação, o sumiço de ferramentas que esquecíamos no lugar da “obra” e aquela brincadeira incessante que lhe parecia uma coisa inútil e ociosa. Naquele tempo, menino sertanejo tinha suas obrigações. Os meus primos, por exemplo, botavam água e lenha, cuidavam de animais e trabalhavam no roçado. Só me ajudavam nessas brincadeiras quando não tinham o que fazer. Eu me dedicava mais ao estudo e à leitura e às vezes ajudava na bodega ou dava água a algum animal. Raríssimas vezes fui recrutado para o roçado. Minha avó, principalmente, achava que meu futuro estava nos estudos e não no cabo de uma enxada. Por isso ria embevecida quando escutava meus programas radiofônicos na Difusora Dragão do Mato, ZYH 1967, a Voz de Ouro das Capembas Rajadas.

* * *


Desde menino eu sonhava em me tornar radialista. O velho rádio de casa era ligado direto, das cinco da manhã até a hora de dormir, sintonizado nas rádios mais populares da época: Difusora Cristal de Quixeramobim, Tupinambá de Sobral, Uirapuru, Assunção e Dragão do Mar, de Fortaleza. Eram todas AM, com repertório eclético e comunicadores que ficaram na história da radiofonia cearense. Aurélio Brasil, Wilson Machado, Guajará Cialdini, Cid Carvalho, Narcélio Limaverde, José Lisboa e Jurandi Mitoso estavam entre os mais populares.
Eu me inspirava, principalmente, no Guajará Cialdini, forrozeiro da melhor cepa, que gostava de intercalar a programação com anedotas, chistes e poemas matutos como A estátua do Jorge, de Alberto Porfírio, Confissão de Caboclo, de Zé da Luz e Mulher super-teimosa, de Jota Amaro. Além desses, eu sabia de cor A chegada de Lampião no Inferno, As proezas de João Grilo e outros cordéis que eu lera desde que me alfabetizara. Os deuses que regem o destino da humanidade prestam muita atenção no que faz uma criança, tanto é que me tornei radialista profissional (redator, produtor, comunicador e radioator) algum tempo depois. Tornei-me também publicitário, ilustrador, escritor, poeta popular e declamador, do jeitinho que havia sonhado quando criança. Mas até hoje, nenhum microfone me deu tanto prazer quanto a velha lata de sardinha da Difusora Dragão Mato de Ouro Preto.

Para concluir, apresento um cordel feito recentemente para o Instituto C&A, que me encomendou um texto sobre brincadeiras e folguedos de um menino sertanejo a fim de inserir numa de suas publicações. Lembrei-me, é claro, da minha infância lúdica e feliz na fazendola de meus avós:



MEUS BRINQUEDOS DE CRIANÇA
 Arievaldo Vianna Lima

— Vou falar das brincadeiras
Do meu tempo de criança
Porque não posso olvidar
Tanta bem-aventurança
Um tempo lúdico, encantado,
Que não me sai da lembrança.

Eu nasci e me criei
Nos sertões do Ceará
Lá em Quixeramobim
Pertinho de Quixadá
E meu primeiro brinquedo
Foi um tosco maracá.

Ouvi canções de ninar
Que a minha mãe cantava
Numa rede de varandas
A noite ela me botava
E solfejando cantigas
Com prazer me embalava.

Três monólitos gigantes
No final da cordilheira
Dominavam a paisagem
Nessa terra hospitaleira
Onde vivi com prazer
A minha infância primeira.

Nesse lugar encantado
Onde só reina alegria
No meio dos meus parentes
Como num sonho eu vivia
Lá, a própria natureza
Só respira poesia.

As aves cantam nos galhos
Trina a cigarra na mata
Os cristais resplandecentes
Parecem de ouro e prata
E o olho d'água da fonte
Jorra em suave cascata.

No sopé da cordilheira
Que se ergue abruptamente
O sabiá laranjeira
Canta sublime e plangente
O sol dardeja os seus raios
Tocando a alma da gente.

Preás se escondem nas locas
Com medo dos predadores
Inhambus arrulham nas matas
Atraindo os caçadores
Abelhas zumbem na relva
Sugando o néctar das flores.

No sopé dos três serrotes
Tudo é encanto e beleza
Seus habitantes convivem
Em paz com a natureza
E os monólitos ostentam
O seu porte de nobreza.

No ano sessenta e sete
Do outro século passado
Nasci naquele recanto
E fui por Deus inspirado
A beber daquela fonte
Perto do reino encantado.

Ao completar oito anos
Meu pai, um agricultor,
(Também um iniciado
Na arte de trovador),
Levou-me pra ver de perto
Aquele grande esplendor.

Todo esse imaginário
Ficou na minha lembrança
Jamais vivi nada igual
Ao longo de minha andança
Como as lindas brincadeiras
Dos meus tempos de criança.

A criança hiperativa
Era chamada “malina”...
Construindo meus brinquedos
Eu gastava adrenalina
Porque sou um sertanejo
Do tempo da lamparina.

Fui crescendo curioso
E muito observador
Lá eu vi bumba-meu-boi,
Sanfoneiro e tocador
De viola em desafio
Na gesta do trovador.

Raramente eu ganhava
Brinquedo industrializado
Meu pai era agricultor
E tinha um belo roçado
Juntei cabelos de milho
De pelo fino, alourado.

E mesmo sem conhecer
Lobato, o grande escritor
Com a palha e os sabugos
Eu também fui inventor
Construindo o meu 'Visconde'
Mas não era falador...

Quando era tempo de inverno
Eu saia com certeza
Procurando borboletas
E via tanta beleza
Que deitava sobre a relva
Em paz com a natureza.

Posso dizer que vivi
Felicidade notória...
Agora, o momento mágico,
Que não me sai da memória
Era quando a minha avó
Nos contava alguma estória.

Quando eu era pequenino
Nos alpendres do sertão
Que ouvia: “ Era uma vez...”
Ficava de prontidão:
Já sabia que as estórias
Jorravam em profusão.

Os meninos do sertão
Bebiam a nossa cultura;
Os mais velhos transmitiam,
Em prosa franca e segura
As estórias de Trancoso
Em oralidade pura.

Belos romances rimados
(Os folhetinhos de feira)
Eram lidos em voz alta
No alpendre e na bagaceira
Dos engenhos de açúcar
Para toda cabroeira.

O Fiscal e a Fateira
Os Cabras de Lampião
A Vida de Pedro Cem
Testamento de Cancão
O Crente e o Cachaceiro
Numa grande discussão.

Martírios de Genoveva
E a Donzela Teodora
São romances que o povo
Guarda, conserva e adora
E a criança inteligente
Lê, admira e decora...

Cancão de Fogo e João Grilo
Aderaldo e Zé Pretinho
Juvenal e o Dragão
Eu li tudo com carinho,
No alpendre, em voz alta,
Rodeado de vizinho.

Mas hoje em dia o sertão
Está se modificando,
De uns trinta anos pra cá
A cultura está mudando
Nosso povo regredindo
Pensa que está avançando.

As crianças de hoje em dia,
Depois da televisão,
Só gostam de vídeo-game,
Internet e “Malhação”,
São os sintomas maléficos
Da tal globalização.

No meu tempo de menino
O tempo corria lento,
A gente matava o tempo
Sorvendo cada momento...
A tudo que acontecia
Eu sempre ficava atento.

Brinquei de gado-de-osso,
De carrapeta e pião,
Em cavalinhos de pau
Corria pelo sertão...
Com prego, lata e madeira
Fazia o meu caminhão.

Um parque de diversão
Só raramente chegava
Nas festas do padroeiro
E pouco tempo ficava
Porém depois que partia
Muita saudade deixava.

Quando cheguei na cidade
Ainda estou bem lembrado
Na pracinha principal
Chegou um circo afamado
Eu passei o dia inteiro
Vendo o circo ser montado.

Acompanhar o palhaço
E cantar o seu refrão
Nos garantia um ingresso
Para a grande diversão...
São coisas que eu não vejo
Hoje em dia, no sertão.

Mas, de toda diversão,
Do meu tempo de criança
O contador de estórias
Jamais me sai da lembrança
Essa figura encantada
Renova a minha esperança.

Eu tenho muita saudade
Dos saberes e cantares
Vovô sabia narrar
Muitas lendas populares
Tinha o urubu e o sapo
Numa festa, pelos ares.

Tinha o macaco e a onça
A raposa e o “cancão”
Dois gênios da esperteza
Como reza a tradição;
No fim da fábula, a moral,
Trazendo alguma lição.

Por tudo quanto vivi
Me tornei um menestrel
Penso rimas, traço trovas
Em pedaços de papel
Eis o que me transformou
Num poeta de cordel.

Nessa teia do passado
Foi bom desatar os nós,
Reviver em poesia
Usando a pena e a voz,
Sem retirar da lembrança
A casa dos meus avós.

FIM 


As vagens do PEREIRO eram selas de montaria, na nossa imaginação infantil.
(Foto Carlos Flaubert Patrício de Almeida)

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