sexta-feira, 3 de junho de 2011

QUANDO OS BICHOS FALAVAM...

A FÁBULA E O GRACEJO

NA LITERATURA DE CORDEL

Humor e moralismo no sertão nordestino

 


Por: ARIEVALDO VIANA

 

A literatura popular em versos, também chamada “de cordel” possui uma variedade de temas e estilos que expressa, através da ótica popular, diversas escolas da Literatura Erudita, inclusive a Fábula, cujos expoentes maiores são Esopo e La Fontaine. Atribuir qualidades e defeitos do ser humano a animais que falam, inserindo nisso um cunho moral, é uma prática que os poetas populares desenvolvem desde os tempos de Leandro Gomes de Barros (1864 – 1918), pioneiro na publicação de folhetos rimados no Nordeste. São de Leandro, por exemplo, folhetos como “Casamento e divórcio da Lagartixa”,  onde uma família de lacertílios (calangos, tejos, teús e lagartos afins) representam os dissabores de um casamento mal-sucedido. A lagartixa, personagem central do drama, troca o calango seu marido por um papa-vento e os dois terminam-se batendo num duelo, de sangrento desfecho, enquanto a adúltera sorri da desgraça de ambos. O cunho moral da história fica por conta do trágico final destinado a leviana lagartixa, que é devorada por um gato, enquanto deleitava-se com as desgraças ocorridas durante o duelo. “Isto resulta à pessoa/ que sorri do mal alheio”, garante Leandro ao final da narrativa.

José Pacheco da Rocha, poeta pernambucano de Correntes*, nascido na última década do século XIX, foi o mais fiel seguidor de Leandro no que diz respeito à irreverência e jocosidade na elaboração de folhetos de “bichos que falam”. Outro grande expoente dessa escola foi o piauiense Firmino Teixeira do Amaral, autor de “As aventuras do Porco Embriagado” , um folheto que fala de alcoolismo, violência e exclusão social no Reino da Bicharada. De José Pacheco, existem duas obras primas nessa área – “A festa dos cachorros” e “A intriga do Cachorro com o Gato”. No primeiro folheto, os melhores momentos são o namoro do Cachorro com a sua prima Cadela e a carta por ele enviada logo após o primeiro encontro. Eis algumas estrofes cuidadosamente pinçadas para ilustração deste artigo;

“Havia um cachorro velho
Chefe da localidade
Os outros lhe veneravam
Com respeitabilidade
Tanto porque era o chefe
Como pela sua idade

Tinha uma filha bonita
Trabalhava em seu socorro
Dessas que se diz assim:
Por aquela eu mato e morro
Capaz de embelezar
O coração de um cachorro

Certo dia um primo dela
Vindo de uma batucada
Passando pelo terreiro
Ela estava acocorada
Catando pulga e matando
No batente da calçada”


A empatia entre os dois é imediata. A flecha de Cupido acaba provocando um “namoro pesado”, no dizer de José Pacheco. O melhor de tudo é a carta que o Cachorro escreve, assim que chega em sua casa...

O forró dos bichos (xilogravura de J. Borges)


“E palestraram bastante
Cada qual mais satisfeito
Foi um namoro pesado
Porém com muito respeito
Mas para se apartarem
Quase que não tinha jeito.

Chegou em casa escreveu:
‘Prima do meu coração,
eu não posso deslembrar-me
de tua linda feição,
portanto venho pedir-te
tua delicada mão.

Recomendações à todos,
Um abraço em minha tia
Sem mas assunto desculpe
A ruim caligrafia
Deste teu primo Cachorro,
Etcetera & companhia.’

Depois fez no envelope
Um ramalhete de flor
Ele mesmo foi levar
Pra dar mais prova de amor
E mesmo é muito custoso
Cachorro ter portador.”


Na História da Rã Ganhadeira, de Severino Barbosa Torres, poeta cearense radicado em São Luís do Maranhão, observa-se diversos trocadilhos com uma palavra considerada imoral pelos sertanejos de antigamente. O termo “arreganhar”:

“...Um camarada contou-me
que morava na Bahia,
num lugar muito esquisito
que só ele residia,
e o vizinho que tinha
era a camarada Jia.

A Jia era casada
Com o Cururu Tei-Tei.
A Jia era a rainha
E o Cururu era o rei,
O rapaz contou-me isto,
Eu também não duvidei.

Então, da Jia nasceu,
Às seis horas da manhã,
Uma filha com as faces
Coradas como a romã
Como era muito linda
Lhe deram o nome de Rã.

Esse nome,  Cururu Tei-Tei, ainda hoje é utilizado como apelido para pessoas balofas e mal amanhadas. Ele e a esposa dona Jia combinaram levar a filha para capital, a fim de aprender “três artes especiais: ler, escrever e coser.”

Porém botam a Rã
Numa escola atrasada,
A Rã passou cinco anos
Nunca pôde aprender nada,
Foi quando a rainha Jia
Com isto ficou danada.

Porém a Rã aprendeu
Lá com outra camarada
Todo sistema de jogo
Comprou logo uma cartada
Disse: - Agora vou jogar,
E não me faltará nada!

Montou uma casa de jogo
De frente assim com a feira
Começou a ganhar todo
Dinheiro da cabroeira
Por isso lhe apelidaram
Por Dona   Ganhadeira.

O propósito do poeta é claro: trata-se de um trocadilho infame que lembra a palavra “arreganhadeira”, ou seja, mulher sem pudor, que gosta de sentar-se escarrapachada, mostrando as partes íntimas. Segundo o dicionário, é o ato de escancarar a boca e mostrar os dentes, mas aqui no Nordeste, sempre teve outro sentido. Na época que o folheto foi escrito, mais ou menos meados do século XX, isso era um escândalo para as populações simples do interior nordestino. Em muitas casas, o ‘verso’ da Rã entrou no Índex maldito.

O folheto prossegue no mesmo tom. Daí por diante, faz diversos trocadilhos com a palavra:

“Parece que dona Rã
um catimbó inventava,
gente pra jogar com ela
de toda parte chegava
porém só voltava liso,
o dinheiro, a Rã ganhava.

Dona Rã chamava o povo
Para com ela jogar
E os outros, como perus
Entravam para espiar,
Se encostavam na parede
Só pra ver a Rã ganhar...”


* Segundo alguns pesquisadores, José Pacheco era natural de Porto Calvo-AL
(Arievaldo Viana - in "A MALA DA COBRA", livro escrito em 2003)




3 comentários:

  1. são duas historias aí ou só uma msm ?

    ResponderExcluir
  2. São duas histórias distintas: A FESTA DOS CACHORROS, de José Pacheco e O PORCO EMBRIAGADO, de Firmino Teixeira do Amaral.

    ResponderExcluir