sexta-feira, 15 de abril de 2011

ENTREVISTA - TV BRASIL

ENTREVISTA COM ARIEVALDO VIANA, NO PROGRAMA "SALTO PARA O FUTURO", DA TV BRASIL


Realizada em: 13/9/2010

Atuação: Poeta popular, radialista, ilustrador e publicitário. Criador do Projeto ACORDA CORDEL na Sala de Aula, que utiliza a poesia popular na alfabetização de jovens e adultos, adotado (em 2002) pela Secretaria de Educação, Cultura e Desporto de Canindé/CE e, posteriormente, por diversos municípios de vários estados brasileiros.
Obras: O Baú da Gaiatice, Leandro Gomes de Barros - Vida & Obra, João de Calais e sua amada Constança, Padre Cícero, o santo do povo, Dona Baratinha e seu casório atrapalhado, A raposa e o cancão, São Francisco de Canindé na Literatura de Cordel e Mala da Cobra - Almanaque Matuto.

Literatura de Cordel e Escola


Salto – Você foi alfabetizado pela sua avó com a ajuda da Literatura de cordel. Como aconteceu esse processo?

Arievaldo – Eu nasci numa fazenda no Ceará, lá pelas terras de Quixeramobim, que é a terra do beato Antônio Conselheiro, e lá não havia energia elétrica. Nós éramos de família numerosa, meu tio tinha 10 filhos e papai tinha 6, e nos reuníamos para brincar no final da tarde na casa dos nossos avós, que era uma casa grande; E como não havia eletricidade, e nós não queríamos ficar nos expondo no terreno, por medo de cobra, a minha avó inventava um sarau literário. Ela pegava uma mala de folhetos de literatura de cordel, acendia um lampião a gás, e a partir dali ela começava a contar as histórias fabulosas de João Grilo, Cancão de Fogo, Pedro Malasartes, Pavão Misterioso, Os 12 pares de França, e aquilo era um deslumbramento, um encantamento para nós. E sentíamos aquela vontade de aprender a ler, para ler tão bem quanto ela. Foi ela a responsável pela minha alfabetização. Os textos que vinham naquelas cartilhas tradicionais, convencionais, não me soavam muito agradáveis, porque eram textos sem uma cadência, um roteiro. Geralmente eram só uma junção de palavras. E isso não ocorria com o folheto de cordel, que é uma coisa extremamente dinâmica, agradável, de uma leitura muito bonita. Principalmente pela forma como ela lia. Nós nos encantávamos, nos identificávamos com aqueles personagens. E daí surgiu a vontade de aprender a ler. As escolas ficavam distantes, e havia uma escola nas imediações, a 2 km da casa dos meus avós, onde os meus primos mais velhos já estudavam, mas minha avó não me mandava para lá porque eu tinha um problema muito sério de garganta, não podia pegar poeira, que adoecia. Ela resolveu me alfabetizar em casa, justamente através dos folhetos de cordel. E isso foi a base, foi o lastro de toda a minha formação cultural. Tudo que eu aprendi posteriormente, nas escolas formais, através dos livros, dos filmes, dos discos, eu já tinha tido uma noção de tudo aquilo ali, através desse mundo encantado do Cordel.

 
Salto – Agora vamos falar no projeto "Acorda Cordel na sala de aula". Qual é a proposta desse trabalho?

Arievaldo – Pois bem, o cordel teve esse papel fundamental na alfabetização de milhares de crianças da Região Nordeste. Acredito que no Brasil inteiro, por quê? As famílias eram muito numerosas do interior do Nordeste, no início do século XX, segundo o IBGE, 80% da população nordestina era composta por analfabetos, ou por pessoas semialfabetizadas. Mas foi um período em que as pessoas leram com muita intensidade. As grandes editoras de Cordel – João de Athaíde, Leandro Gomes de Barros, Manoel Camilo dos Santos – faziam tiragens gigantescas, volumosas, dos clássicos do cordel. Por exemplo, "O Pavão Misterioso", João Martins de Athaíde fez uma tiragem de 100 mil exemplares, e esgotou em 6 meses. Quer dizer, é sinal que as pessoas liam muito. Mas liam como, se não sabiam ler? Numa família de 20, 30 pessoas, tinha sempre alguém que era alfabetizado, que sabia os rudimentos da leitura. Então, fazia-se uma leitura coletiva, em voz alta, daquele folheto. E aquele texto era assimilado por todas aquelas pessoas. Isso despertava nas crianças, principalmente, o desejo de também aprender a ler, de também saber decifrar um folheto daqueles. Motivadas por essa força propulsora do cordel, as pessoas adquiriram conhecimento. Muito tempo depois, meados da década de 90, eu comecei a relembrar esses fatores, e tem um folheteiro, um poeta popular do Ceará, muito conhecido, que é Lucas Evangelista, que ainda faz o papel de folheteiro itinerante, que vai de feira em feira, de cidade em cidade, com uma kombi cheia de folhetos e CDs de cantoria. Eu encontrei com Lucas Evangelista em 1995, na festa de São Francisco, no município de Canindé, e Lucas me disse que o cordel estava praticamente em extinção. Por dois fatores: primeiro pelo fechamento das editoras tradicionais de cordéis, e segundo pela ausência de bons poetas. A geração dos poetas antigos estava morrendo, e não estava havendo essa substituição, essa reposição, de poetas no mercado. Eu me lembrei de que já exercitava essa prática do cordel desde os 8 anos de idade. Lembrei-me também de outros bons poetas, que faziam por entretenimento, mas que não haviam publicado. Por aí começou a proposta. Começou com uma caixinha com 10 folhetos, que batizamos inicialmente Coleção Cancão de Fogo. Esses folhetos tiveram uma aceitação muito boa, foram, inclusive, destaque nos jornais. E a partir daí eu passei a receber convite das escolas para fazer apresentações para as crianças, principalmente na Semana do Folclore. A partir dessas apresentações, eu resolvi criar uma apostila, uma metodologia, explicando as origens do cordel, como surgiu, como se desenvolveu aqui no Brasil, quais as regras básicas da literatura de cordel, como se constrói um folheto. Tudo isso eu comecei a repassar para as crianças, e as crianças são muito curiosas. Eu gosto muito da interatividade com o público infantil. Eles fazem perguntas, questionam, facilitam o nosso trabalho. E a partir daí essa apostila foi 'engordando', até que chegou a 100 páginas, e eu vi que estava na hora de virar livro. Vi que aquilo ali tinha suporte. Na época, eu recebi apoio da Petrobras, e também de algumas prefeituras do interior do Ceará, e fizemos um Kit, que é composto de um livro, uma caixa com 12 folhetos, e 1 CD com 10 poemas, e alguns deles com a participação especial do Mestre Azulão, do poeta Geraldo Amâncio, do Zé Maria de Fortaleza, que tem sido um sucesso. Nas asas desse projeto eu já percorri metade do país, já fui convidado para cidades fora do eixo Norte-Nordeste, inclusive. Já estive em Uberlândia, em Palmas, em outras cidades, no interior de São Paulo, justamente levando essa proposta de cordel. Estive na Academia Brasileira de Literatura de Cordel, cuja sede fica aqui no Rio de Janeiro, do poeta Gonçalo Ferreira, e tenho recebido convites até de locais distantes, como o Acre, que fica nos confins da região amazônica, e até mesmo de países da Europa, que se interessam por esse tipo de literatura.


Salto – E em seu livro, "Acorda Cordel", o leitor encontra ilustrações e referências a personagens do imaginário popular. Como esses elementos contribuem na formação dos leitores?

Arievaldo – A base da Literatura de cordel é justamente a oralidade, o romanceiro popular. São as lendas, os mitos, principalmente as lendas brasileiras. O cordel, quando chegou aqui no Brasil, oriundo da Península Ibérica (Espanha, Portugal), e da região provençal da França, utilizava as lendas, aqueles mitos, europeus. Na bagagem do colonizador europeu veio "A donzela Teodora", "O João de Calais", "A imperatriz Porcina", veio "Carlos Magno e Os doze pares de França", veio "Roberto do Diabo", que são textos muito conhecidos em todo mundo, que Câmara Cascudo batizou de 5 livros do povo. Ele fez até uma análise de como esses livros chegaram aqui no Brasil. Só que quando essas histórias chegaram no Nordeste brasileiro, elas ganharam uma nova roupagem. Os poetas populares nordestinos, no caso Leandro Gomes de Barros, João Matias de Athaíde, José Camelo de Melo, começaram a emprestar elementos da cultura brasileira  a essas histórias, começaram a inserir. E paralelamente à história de um Carlos Magno, encontramos a história de Lampião, a história de Antônio Silvino. O poeta popular, no seu espírito gozador, diz assim: "Se contamos a história de um cangaceiro francês, que era o Carlos Magno, não vamos contar de um cangaceiro brasileiro, que era o Lampião?" E aí surgiram temas genuinamente nacionais, como "O Ciclo do Boi". Nós temos "O Boi Mandingueiro", "O Boi Vermelhinho", "O Boi Misterioso", que são poemas belíssimos, épicos. Para você ter uma ideia, em 1865, o José de Alencar já trazia à tona um desses poemas, que é "O rabicho da Geralda", contando a história de um boi, em versos, e está narrada na 1ª pessoa, como se o boi estivesse contando a sua própria história, que é de um boi que ninguém conseguia pegar, porque dizem que ele tinha a cauda muito lisa, daí o nome rabicho. E até que um dia ele conseguiu ser capturado, e tudo isso foi recolhido pelo José de Alencar, ainda criança, nas fazendas do interior do Ceará. Para você ver que essa coisa vem de muito longe, a oralidade. A "História do soldado jogador", na época de D. Pedro I, já existiam versões em quadra. Depois é que o Leandro pegou e adaptou para sextilha, que é uma modalidade mais elaborada da poesia popular. A quadra tem 4 versos, 4 linhas. A sextilha já trabalha com 6 linhas. Nós temos também a setilha, que já é a estrofe com 7 versos. E daí por diante. Hoje já existem mais de 70 modalidades na cantoria, e na literatura de cordel exploramos pelo menos umas 10 modalidades diferentes de poesia.

Salto – Num dos trechos do livro é possível ver dicas sobre algumas regras da Literatura de cordel. Essa também é uma forma de incentivar uma nova geração de cordelistas?

Arievaldo – De certo modo, sim. Eu acredito que a poesia é um dom. As pessoas já nascem com aquilo. Você não pode fazer uma oficina pensando em formar novos poetas. Você pode fazer uma oficina para 40, 50 crianças para revelar valores, talentos. No meio de 50, você vai encontrar 2, 3, 4 que são poetas, e se descobrem poetas a partir da oficina. E aí você me perguntaria: "E os demais, não tiraram nenhum proveito dessa oficina?" Eu diria que sim. Talvez até mais, porque vão se tornar bons leitores de literatura de cordel. Vão saber o que é, vão saber discernir o que é um cordel bem feito de um cordel malfeito, vão saber o que é um verso metrificado. Quer dizer, vão adquirir uma empatia, todo um conhecimento com essa literatura, e a partir daí vão se encantar por essas histórias, e vão se tornar bons leitores de cordel.
Salto – Como tem sido a recepção das escolas e dos alunos a esse projeto? E que retorno você tem tido?Arievaldo – Eu procuro deixar as escolas e os professores muito à vontade. Eu até diria que não espero que esse projeto seja adotado, reconhecido, oficialmente como uma disciplina nas escolas. Eu gosto que o arte-educador,  o professor, fiquem à vontade, que passem a trabalhar com aquilo ali porque gostam, vejam que realmente tem valor, tem qualidade, que é uma coisa que pode ajudá-los na sua tarefa pedagógica. Então, quando o professor trabalha com esse sentimento, trabalha com esse tipo de ferramenta porque gosta, porque tem uma empatia, porque tem uma ligação com o cordel, a coisa flui muito melhor. Ao contrário de quando você passa a trabalhar com pessoas que têm uma certa rejeição, que têm um preconceito com o cordel, a coisa não flui, não sai legal. É melhor deixar à vontade. Eu acredito muito no poder do apaixonamento, de fazer as coisas com amor. Tudo isso faz com que as coisas fluam com mais força.

Salto – Agora, vamos pensar nos jovens, adultos e idosos que ainda estão sendo alfabetizados. De que forma a literatura de cordel pode ajudar no processo de formação desses alunos?

Arievaldo – Em 2002, o secretário de Educação do município de Canindé formou uma turma de 300 adultos e idosos para alfabetizar. Ao término desse curso, era um curso se não me engano de 6 meses, aqueles recém-alfabetizados iriam receber uma coleção de 10 livros para começar a formar uma biblioteca em casa e adquirirem o hábito da leitura. E houve municípios, que  deram a coleção completa de autores brasileiros consagrados para os recém-alfabetizados. Eram livros dos nossos autores clássicos, que tinham aquela linguagem extremamente rebuscada. Então, sugeri para o secretário de Canindé que oferecesse livros que fossem adequados para aquelas pessoas, que tivessem uma empatia, uma identificação com o seu modo de falar e com as coisas da nossa terra. Foi daí que surgiu essa ideia de fazer a primeira caixinha do projeto "Acorda Cordel", com textos que incluíam, inclusive, uma gramática em cordel, que agora está na 15ª edição, já de acordo com as novas regras ortográficas.

Salto – Muitas vezes o cordel é trabalhado somente nas aulas de Português e de Literatura. Como deve ser o papel do cordel nas escolas brasileiras?

Arievaldo – Eu tenho defendido muito a criação de cordeltecas nas escolas. Assim como há as bibliotecas, é preciso ter também um espaço destinado à literatura de cordel. Seria um atrativo a mais, uma nova ferramenta para ajudar na alfabetização, e principalmente na formação de novos leitores. Pegamos, por exemplo, folhetos que têm noções de Matemática, noções de História do Brasil, de Geografia, de Ciências, de Português também, é claro. Mas veja, qualquer historiador sério, que quiser hoje contar as histórias do Padre Cícero, do Antônio Conselheiro, de qualquer uma dessas figuras, vai ter que recorrer à história paralela. A história paralela está justamente nos folhetos de cordel. Enquanto existe aquela história oficial, às vezes até engessada, a literatura popular tem uma visão mais profunda, mais intrínseca, ela vai mais no cerne da questão. É uma visão do povo olhando para dentro de si mesmo. É um Brasil que às vezes não aparece nos livros oficiais, mas que existe, e não pode ser encoberto. Você pega um folheto como o do João Mendes de Oliveira, escrito há quase 100 anos, que diz assim: "Padre Cícero é uma pessoa da Santíssima Trindade". Veja que absurdo. Mas era isso que os romeiros pensavam, os devotos, os fiéis, que iam a Juazeiro do Norte, que aquilo era a nova Jerusalém e que Padre Cícero era a reencarnação do próprio Cristo. Quer dizer, o pesquisador, o historiador, que quiser fazer um trabalho realmente sério a esse respeito, para entender porque aquelas massas se deslocavam quilômetros e quilômetros, do interior da Bahia, do Sergipe, do Maranhão, de Alagoas, para ver aquele sacerdote. Aquilo é considerado fanatismo, é visto muitas vezes de forma pejorativa, às vezes até mesmo dentro da Igreja Católica, mas as pessoas tinham um sentimento que muitas vezes era alimentado pelo poeta popular. E Padre Cícero sabia muito da importância do poeta popular. Ele fez com que os poetas populares, os cordelistas, fossem seus marqueteiros. Padre Cícero, nessa biografia recente que foi escrita pelo Lira Neto, ele dividiu em dois capítulos que foi "Entre a cruz e a espada", ou seja, os primeiros 40 anos do Padre Cícero são dedicados exclusivamente à cruz e ao sacerdócio. E depois que ele se sente ameaçado, que tem as suas ordens de padre cassadas, e temendo que aconteça com Juazeiro o que havia ocorrido com Canudos, Padre Cícero começa a adquirir aliados dentro da política, e começa a estimular os poetas populares, os folheteiros, para que vendam a imagem positiva da sua pessoa. É por isso que existem mais de 1.000 folhetos sobre Padre Cícero. Um pesquisador do Rio Grande do Norte, Crispiniano Neto, acaba de escrever um livro "Lula na Literatura de Cordel", onde encontramos mais de 200 folhetos de cordel falando do presidente Lula. Da sua infância, a sua história, alguns criticando, outros elogiando. Mas, enfim, é um tema que está muito presente hoje. Por exemplo: Getúlio Vargas. Getúlio Vargas é um fenômeno que foi largamente explorado pela Literatura de cordel. Orígenes Lessa, inclusive, fez um livro falando da trajetória do Getúlio Vargas, sobre a ótica do poeta popular. O Cordel, a poesia de um modo geral, é a arte de encaixar palavras dentro de uma determinada métrica, e sempre utilizando a rima para valorizar, justamente essa coisa do ritmo, da beleza. E existem palavras que não se enquadram, que não possuem rima. Por exemplo, a palavra cinza. A palavra cinza só tem uma única rima perfeita para ela, que é ranzinza. Então, três cantadores estavam cantando um desafio onde cada poeta faz dois versos. O 1º cantador disse: "Se eu pegar cantador ruim, dou pisa que voa cinza"; o 2º disse: "Eu também farei o mesmo, pois não sou cantor ranzinza"; o 3º disse: "E lá na Praia Formosa tem uma velha fanhosa, que chama camisa, caminza". E foi como ele conseguiu fazer. O poeta tem essa genialidade também, de pegar essa coisa do repente, principalmente o cantador. Mas o cordelista também, que é bom gozador, consegue captar essas coisas e criar situações engraçadas, e tirar o possível de dentro do impossível.  

Salto – Muito obrigada pela entrevista.

Arievaldo – Eu que agradeço o espaço, e espero que a iniciativa seja imitada por outros canais de televisão, em benefício da cultura brasileira.


Um comentário:

  1. Olá, sou bisneta de João Mendes de Oliveira e concordo com a questão de que muitas vezes eles foram "usados" como marketeiros. Alias, jogos de interesses...de ambos os lados???

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