SECA
Rachel de
Queiróz
Era
hora do almoço dos trabalhadores. Enquanto os homens comiam lá dentro, o
fazendeiro velho sentava-se na rede do alpendre, à frente de casa espiando o
sol no céu, que tinia como vidro; procurando desviar os olhos da água do açude,
lá além, que dentro de mais um mês estaria virada de lama. Os dois cabras se
aproximaram sem que ele pressentisse. Era um alto e um baixo; o baixo grosso e
escuro, vestido numa camisa de algodãozinho encardido. O alto era alourado e
não se podia dizer que estivesse vestido de coisa nenhuma, porque era farrapo
só. O grosso na mão trazia um couro de cabra, ainda pingando sangue, esfolado
que fora fazia pouco. E nem tirou o caco de chapéu da cabeça, nem salvou ao
menos. O velho até se assustou e bruscamente se pôs a cavalo na rede, a escutar
a voz grossa e áspera, tal e qual quem falava:
–
Cidadão, vim lhe vender este couro de bode.
Aquele
“cidadão”, assim desabrido, já dizia tudo. Ninguém chega de boa atenção em
terreno alheio sem dar bom-dia. E tratando o dono da casa de cidadão. Assim, o
fazendeiro achou melhor fingir que não ouvira e foi-se pondo de pé.
– O
quê? Que é que você quer?
O
homem escuro botou o couro em cima do parapeito e o sangue escorreu num fio
pelo cal da parede:
–
Estou arranchado com minha família debaixo daquele juazeiro grande, ali. Essa
cabra passou perto – não sei de quem era. Matei, e a mulher está cozinhando a
carne para comer. Agora, o couro – o senhor ou me dá dinheiro por ele, ou me dá
farinha.
– E
de quem é essa cabra? É minha? Quem lhe deu ordem para matar?
O
velho estava tão furioso que o dedo dele, espetado no ar, tremia. E o loureba
esfarrapado chegou perto e deu a sua risadinha:
–
Ninguém perguntou a ela o nome do dono…
Mas
o outro, sempre sério, olhou o velho na cara:
–
Matei com ordem da fome. O senhor quer ordem melhor?
Nesse
meio, os homens que almoçavam lá dentro escutaram as vozes alteradas e vieram
ver o que havia. Eram uns doze – foram aparecendo pelo oitão da casa, de um em
um, e se abriram em redor dos estranhos no terreiro. Aí o velho se vendo
garantido, começou a gritar:
– Na
minha terra só eu dou ordem! Vocês são muito é atrevidos – me matarem o bicho e
ainda me trazerem o couro pra vender, por desaforo! Chico Luís, veja aí de quem
é o sinal dessa criação.
O
feitor largou a foice no chão, puxou as orelhas do couro, e virou-se achando
graça para um dos companheiros:
–
Era a sua cabrinha, não era mesmo, compadre Augusto? Está aqui o sinal…
O
Augusto veio olhar também e ficou danado:
–
Seus perversos, a cabra era da minha menina beber leite, estava de cabrito
novo!
Mas
o olho do homem escuro era feio, se ele se assustara vendo-se cercado pelos
cabras da fazenda, não deu parecença. O loureba é que virava a cara de um lado
para outro, procurando saída; ainda levou a mão ao quadril, tateou o cabo da
faca – mas cada um dos homens tinha uma foice, um terçado, um ferro na mão .
Nesse pé o fazendeiro, para acabar com a história, resolveu mostrar bom
coração; e gritou para o corredor:
–
Menina! Manda aí uma cuia com um bocado de farinha!
Depois,
retornando ao homem:
– Eu
podia mandar prender vocês, para aprenderem a não matar bicho alheio! Mas têm
crianças, não é? Tenho pena das crianças. Leve essa farinha, comam e tratem de
ir embora. Daqui a uma hora quero o pé de juazeiro limpo e vocês na estrada.
Podem ir!
O
homem recebeu a cuia, não disse nada, saiu sem olhar para trás. O outro
acompanhou, meio temeroso, tirou ainda o chapéu em despedida, e pegou no passo
do companheiro. O velho reclamava, em voz alta – cabra desgraçado, além de
fazer o malfeito, recebe o favor e nem sequer abana o rabo. Os trabalhadores,
calados, acompanhavam com os olhos os dois estranhos que marcavam um atrás do
outro, na direção do juazeiro, do qual só se avistava a copa alta ali no
terreiro.
Ninguém
sabe o que pensavam; o dono da cabra deu de mão no couro e foi com ele para
trás da casa. Aí a sineta bateu e os homens saíram para o serviço. Passando
pelo juazeiro, lá viram a família ao redor do fogo, os meninos procurando
pescar pedaços da carne que fervia numa lata. Mas o homem escuro, encostado ao
tronco, via-os passar, de braços cruzados, sem baixar os olhos. Ainda foi o
dono da cabra que baixou os seus; explicou depois que não gostava de briga.
MORALIDADE:
Este caso aconteceu mesmo. Faz mais de trinta anos escrevi
uma história de cabra morta por retirante, mas era diferente. Então, o homem
sentia dor de consciência, e até se humilhou quando o dono do bicho morto o
chamou de ladrão. Agora não é mais assim. Agora eles sabem que a fome dá um
direito que passa por cima de qualquer direito dos outros. A moralidade da
história é mesmo esta: tudo mudou, mudou muito.
Fonte:
QUEIROZ, Rachel de.
Cenas brasileiras São Paulo: Ática, 1997.
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