CALDEIRÃO DE MITOS E SUA RELAÇÃO
COM O MUNDO DO CORDEL
Sempre gostei dessa
composição, desde que a ouvi pela primeira vez. Por sinal o primeiro disco de
Elba Ramalho que eu comprei não foi o AVE DE PRATA (de 1979), mas o segundo que
ela gravou “CAPIM DO VALE” (CBS, 1980), uma verdadeira tijolada de música
nordestina da melhor cepa, mesclada com outros ritmos universais. Eis aqui um
texto do autor da canção, Bráulio Tavares, publicado no seu blog MUNDO FANTASMO
(http://mundofantasmo.blogspot.com/)
que merece ser reproduzido aqui no ACORDA CORDEL. Sabem por quê? Além de conter
elementos da cantoria de viola, a música faz referências aos três amarelinhos
mais famosos da LITERATURA DE CORDEL, no caso: Pedro Malazartes, João Grilo e
Cancão de Fogo...
Vi um magrelo amarelado
Passando a perna no patrão
Não foi ninguém da Inglaterra
Nem de Paris, nem do Japão
Era Pedro Malazarte
Era João Grilo e era Cancão.
A.V.
TEXTO DE
BRÁULIO TAVARES
Minhas
canções: Caldeirão dos Mitos
Tenho visto alguns
livros muito interessantes em que compositores explicam como foram criadas
algumas de suas canções mais conhecidas, o processo de composição, as
circunstâncias, como foi gravada a música...
Tenho alguns volumes
da série de Ruy Godinho Então, foi assim? e o livro de Paulo César Pinheiro
Histórias das Minhas Canções (LeYa).
Pensei comigo: está aí
um bom assunto para escrever de vez em quando, porque mesmo quando as músicas
não sejam grande coisa (tem as que são, e as que não são), às vezes a história
lança alguma luz sobre processos criativos em si, sobre o meio musical, sobre
um momento da História, e tudo isso interessa.
Minha primeira música
gravada foi “Caldeirão dos Mitos”, que Elba Ramalho incluiu no seu segundo
disco, Capim do Vale (1980). Foi composta, como a maioria das músicas que faço
sozinho, em duas fases: primeiro a melodia, depois a letra.
A melodia era muito
antiga, era dos anos 1970, quando voltei de Belo Horizonte para Campina Grande
e passava o dia inteiro pegado com o violão, redescobrindo o forró e a cantoria
de viola. Se bem que essa melodia, especificamente, era anotada em meus caderninhos
com o título provisório de “I wanna sing this all together”, verso que
misteriosamente se transformou, anos depois, em “Eu vi o céu à meia-noite”.
Esse título não era
pra valer, aliás era meio chupado de uma canção dos Rolling Stones, acho que em
Their Satanic Majesties Request, mas na época em que fiz essa música eu ouvia
muito umas bandas menores, que tocavam no rádio. Uma delas era o Mungo Jerry,
com uma canção brincalhona e simpática chamada “In the Summertime”:
Uma pessoa com o mais
rudimentar conhecimento musical vai dizer que as duas músicas não têm nada a
ver uma com a outra, e este é um dos mistérios da criação artística. Ela se dá
por uma cadeia de associações de idéias com saltos tão grandes que na quarta ou
quinta parada já não se tem a menor noção de como aquilo começou.
A única coisa clara
para mim era que não haveria a tal “segunda parte”, que é uma coisa da MPB e da
música fonográfica em geral. Eu queria o modelo da canção folk: estrofe musical
única, com sucessivas letras nas mesmas notas. É o modelo “Asa Branca”, é o
modelo que o folk-rock norte-americano, Bob Dylan à frente, empregava, bebendo
nas canções irlandesas e escocesas trazidas pelos colonizadores.
No São João de 1978 eu
morava em Salvador, e não tinha grana para ir passar a festa junina em Campina
Grande. Me veio a idéia de fazer uma música falando em São João, mas a primeira
frase que me veio à mente foi “o Apocalipse de São João”. (Olha aí como
funcionam as associações de idéias!).
Essa imagem me trouxe
à mente o céu pegando fogo, a qual de imediato me lembrou uma espécie de
trocadilho que eu já tinha usado antes, em mais de um contexto: o fato de que
“corisco” quer dizer relâmpago, e “lampião” quer dizer candeeiro, ou seja, duas
coisas que produzem clarão dentro da noite. Estava pronta a primeira estrofe:
Eu vi o céu à
meia-noite
se avermelhando num
clarão
como o incêndio
anunciado
no Apocalipse de São
João
porém não era nada
disso
era um corisco, era um
lampião.
O que faz o compositor
preguiçoso? Exatamente o que eu fiz: pega a estrutura da primeira estrofe e a
repete, com outros elementos, sem introduzir nenhum conceito novo. O conceito
da canção (que eu poderia, se quisesse, ter expandido para 200 estrofes) era:
“Eu vi uma coisa assim-assim; não era tal-e-tal-coisa da Bíblia; era
tal-e-tal-coisa do Sertão”.
Claro que o conceito
não é seguido de forma totalmente rígida, me permiti introduzir aqui e ali uns
elementos destoantes (Inglaterra, Paris, Japão), mas é isso mesmo. O dono do
poema é o poeta. Ele não precisa obedecer a regra nenhuma, nem mesmo a que ele
acabou de criar. Georges Perec, um obsessivo criador de regras, pregava o
conceito de “clinâmen”, e dizia: “Crie uma regra super rigorosa, e a obedeça da
maneira mais fanática; depois, num ponto escolhido com cuidado, desobedeça essa
regra. Produza voluntariamente uma exceção, num ponto onde seria facílimo ter
continuado a fazer como antes.”
O primeiro título que
dei à música depois de pronta, pegando como deixa a estrutura “eu vi isso, eu
vi aquilo”, foi “Visão do Mundo”. Tá vendo como é bom continuar procurando uma
segunda idéia?
Toquei essa música em
público pela primeira vez em 1979, numa coletiva de compositores baianos no
Teatro Castro Alves repleto, na qual entrei por obra e graça de Zelito Miranda,
com quem eu estava compondo bastante na época. Eu não tinha coragem de subir no
palco, mas ele praticamente me arrastou até o microfone e disse: “Vai, Galo,
agora canta essa porra.”
Na primeira versão a
música não tinha o “riff” entre as estrofes, que depois ficou característico, o
“tãrãrã -- tãrãrã”. Este foi criado algum tempo depois, quando eu estava no
Recife ensaiando para um show que fiz com outro parceiro, Zé Rocha. Ele gostava
da música mas achava que era meio repetitiva (e é), era preciso dar uma
encorpada nela com alguma coisa instrumental e diferente, já que a gente ia
tocar com banda. E na hora mesmo do ensaio eu fiz o rasqueado veloz, 3+3 notas,
que foi logo incorporado.
Cantei muito essa
música em palco de bar e em mesa de bar. Em 1979, Elba Ramalho levou para a
Bahia seu show Ave de Prata, no lançamento desse seu álbum de estréia, e se
apresentou no Teatro Vila Velha, acompanhada pela Banda Rojão (Zé Américo, Guil
Guimarães, Joca, Marcos Amma, Élber Bedaque).
Falou que queria
gravar alguma coisa minha. Eu mostrei o “Caldeirão”, ela disse: “Me mande numa
fita! É genial, vou gravar com certeza”. (Eu levaria alguns anos para perceber
que ela diz isso com toda música minha, mas só grava de vez em quando.)
A música foi gravada
para o segundo disco dela pela CBS, Capim do Vale (1980), e acabou sendo a
música de abertura do Lado A, uma honra impensável para um compositor
desconhecido que estava tendo uma canção gravada pela primeira vez. Ainda mais
num disco que trazia Sivuca, Alceu Valença, Zé Ramalho, Pedro Osmar, Elomar...
Quando o disco saiu,
toda vez que chegava gente querendo ouvir “o disco novo de Elba”, eu tirava o
vinil de dentro da capa e checava toda vez o selo pra ver se meu nome
continuava lá.
A gravação de Elba
produziu um arranjo perfeito, com levada de arrasta-pé (que eu chamo de
“marcha-quadrilha”), e a ótima idéia de começar com a música “solta”, sem
ritmo, somente voz e sanfona se erguendo lentamente em meio às percussões, e só
depois a banda atacando completa no “tãrãrã -- tãrãrã”. E no meio da canção, quando fala “Era um fole
de 8 baixos a tocar numa noite de forró”, a intervenção agilíssima de Abdias.
Aqui, a gravação
original: