O cordel
conta a lua
(18 de Julho
de 2009) CADERNO 3
Os astronautas trajavam
Calça, culote e colete
Um guarda peito de aço
Desenhado um ramalhete
E cada um tinha uma estrela
De prata no capacete.
(José Soares – O homem
na lua)
A viagem do homem à lua, em julho de
1969, foi parar no folheto de feira porque o cordel é um conjunto de histórias
que fala de nossos sonhos, medos e anseios
Uma fala mítica que
ganhou o impresso como forma de aproveitar as tecnologias disponíveis e assim
poder permanecer.
Mesmo quando
denunciamos como superada a velha dicotomia entre sagrado e profano, não
podemos perder de vista a oposição entre o alto e o baixo, o céu e a terra, o
sublime (mágico e misterioso) e o banal do cotidiano que precisa ser suportado.
Velhas narrativas
sempre deram conta de festas no céu com a presença de animais. Foi assim que se
estilhaçou o casco do cágado, numa queda desastrada, provavelmente por conta do
excesso de bebidas. O ´trancoso´ reforçou estes relatos nas noites mágicas, ao
pé das fogueiras, nos terreiros das fazendas, onde estivesse um narrador com o
fôlego de Scheerazade para nos enlevar, nos meter medo ou nos deixar curiosos
pela estória que não poderia ser estancada.
São Jorge reina,
altaneiro, no mundo da Lua, montado em seu cavalo branco.
O guerreiro que ganhou
no sincretismo brasileiro o codinome de Ogun, onipresente nas lojas de produtos
religiosos e nas paredes das casas do povo, anima a torcida do Flamengo e come
vatapá de camarão seco, com amendoim e muito dendê.
São Jorge parece ser
nosso, de tão bem aclimatado, mas é cultuado na Geórgia, na Turquia, e, no
final dos anos 1960, foi cassado pela Igreja oficial que não comprovou sua
existência histórica, como se o mito não pudesse também ser canonizado.
O santo é o guardião
do satélite da Terra. A presença da Lua na literatura e na música popular
reforçou essa importância no imaginário coletivo.
A atualização do
cordel passou por essa permanente abertura para a incorporação de novos temas.
Os relatos míticos que nos situavam diante do amor e da morte, foram dando
lugar a narrativas mais bem focadas e de acordo com a expectativa da média dos
leitores.
Pode-se pensar numa
adequação entre a mitopoética e a indústria cultural que se reforça com a
publicação dos folhetos, no caso brasileiro, nos instantes de folga dos parques
gráficos dos jornais.
Foi assim, que
conseguimos juntar a musicalidade do nosso cantar improvisado, com as rimas, a
observância da métrica, e essas histórias ganharam o suporte do papel.
Leandro Gomes de
Barros cantou, em 1910, a passagem do Cometa Halley pelos céus da Paraíba. Um
´alumbramento´, como disse o pernambucano Manuel Bandeira, que se apaixonou
pelos cantadores e os colocou como os grandes poetas do Brasil.
O cordel passou a
funcionar como um jornal popular: feito de acordo com o que se pensava ser mais
consumido e obedecendo a outra lógica, descolada dos manuais de redação dos
jornais que passavam a ser empresas jornalísticas, superada a fase de defesa de
postulados e de ligação mais evidente com os partidos políticos.
Passamos a ter muitos
episódios importantes como tema dos folhetos, como o reforço da figura de Padre
Cícero; as andanças e peripécias de Lampião e seu bando de ´rebeldes
primitivos´; relatos de secas; denúncias de carestia e outras crônicas. Os
folhetos de cordel, aparentemente frágeis e perecíveis, tinham impacto na
formação da visão de mundo da gente do sertão.
Este aspecto de jornal
se reforçou com guerras, mazelas, denúncias de injustiças e atinge seu ápice
com o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. Nunca o cordel tinha sido tão
importante como possibilidade de uma leitura que fugia ao padrão da mídia
oficial, comprometida com a desestabilização do Presidente nacionalista, versão
revista e atualizada do outro Vargas (1937/ 1945).
Tecnologia
Chegamos aos anos 1960
com a crise anunciada do cordel. Não exatamente por conta da ditadura militar,
mas pela crise do papel no mercado internacional que elevou os custos da
produção dos folhetos.
A modernização do País
levava a outros valores e a industrialização era uma meta.
Nesse mesmo tempo, a
televisão trouxe novas formas de lazer e de sociabilidade. O mundo descobriu,
estarrecido, o poder hipnótico do tubo azul que emitia uma mistura de rádio,
cinema, teatro, história em quadrinhos e, principalmente, de circo.
O projeto militar
passava pela construção de uma hegemonia que recorria às mídias e pela
construção de uma rede de comunicação que envolvia o País através de satélites,
torres, antenas e micro-ondas. Integrar era uma forma de controlar para
dominar.
Foi assim que se
constituiu a Embratel (Empresa Brasileira de Telecomunicações) e tivemos a
possibilidade das transmissões instantâneas e da constituição das redes de
televisão. A parafernália estava sendo experimentada antes do Jornal Nacional,
que foi ao ar, pela primeira vez em setembro de 1969.
A viagem dos
astronautas norte-americanos que chegaram à Lua em 20 de julho de 1969 testou o
alcance da receptividade não só da engrenagem, mas das possibilidades de
cobertura de um evento que tinha todo o toque de ficção científica.
Tudo isso vinha com a
Guerra Fria, desencadeada pela vitória das Forças Aliadas contra o
nazi-fascismo, em 1945, e trouxe a dicotomia entre Estados Unidos e Rússia.
O sonho da conquista
da Lua estava presente desde os tempos mais remotos. A possibilidade ganhava
forma com a disputa entre norte-americanos e russos pela supremacia espacial.
Foi assim que o satélite Sputinik batizou um bloco que desfilou no carnaval
cearense do final dos anos 1950 e a cadela Laika foi ao ar numa viagem sem
volta. A disputa pela tecnologia era, na verdade, a luta ideológica
transplantada para outro ´front´.
Versão no cordel
Depois de muita
espionagem, contra-informação e factóides, o homem chegaria à Lua e o poeta de
cordel estava atento ao acontecimento. Mais que uma forma de interferir no
real, era uma possibilidade de vender mais folhetos e dar conta da expectativa
do leitor em relação à versão legitimada de um líder da comunidade que dava seu
aval à efeméride.
Havia dúvidas em
relação à chegada do homem à lua, como deixou claro o baiano Rodolfo Coelho
Cavalcante: ´Muita gente por aí / anda bancando o palhaço/ dizendo que os
astronautas / não conquistaram o espaço´. Mesmo a presença da televisão,
mostrando o ´pequeno passo´ de Armstrong (e o grande passo da Humanidade), não
apaziguou a todos.
Eram tantas as
possibilidades de simulações, que a descida do módulo na Lua, a escavação para
trazer amostra de pedras, o ´enfincamento´ da bandeira norte-americana no solo
e as pisadas desajeitadas que inspirariam, anos depois, o ´moonwalker´ (ou
caminhada na Lua) do ´astronauta´ Michel Jackson (1958/2009), pareciam ficção.
A voz do poeta
O pesquisador Gilmar de Carvalho
A Terra parou para ver
o homem pisar o solo da Lua. Os céticos e renitentes ainda desconfiavam do que
estavam vendo. O poeta nem sempre reforçava esta desconfiança. Não era bom para
as vendas. Melhor trabalhar com o ufanismo da conquista, com o tom de vitória e
de superação da Humanidade que dava um salto para frente, pelo menos em termos
de tecnologia.
A produção de folhetos
foi importante como registro do fato. Muitos folhetos estão na Biblioteca
Amadeu Amaral, do Museu do Folclore, no Rio, dirigida pela bibliotecária
cearense Maria Rosário Pinto. Outros na Comissão Pernambucana de Folclore,
presidida pelo professor Roberto Benjamim. Vale recorrer à Casa de Rui Barbosa
e ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
Nomes importantes da
literatura de folhetos se envolveram na cobertura, como o ´poeta-repórter´
pernambucano José Soares, o baiano Rodolfo Coelho Cavalcante e João José dos
Santos, o Azulão, paraibano radicado no Rio de Janeiro, dentre outros.
Prevalecia o tom
oficial. Os poetas não se inibiam de dizer que tinham tido os jornais e a
televisão como fontes. José Soares, por exemplo, escreveu que ´Num jornal de
Pernambuco / eu li numa reportagem´ e logo depois retoma a necessidade da
legitimação pela mídia ao fazer uma variação do verso, desta vez com uma
´folha´ (com o ´f´ minúsculo) de São Paulo. Rodolfo cantou: ´A sombra de
Armstrong / via-se na televisão´. Azulão ia além na ´pegada´ ideológica, com
entusiasmo e ufanismo: ´E todos lances ao vivo/ com a EMBRATEL mostrando´.
As capas trazem, em
sua maioria, fotos da cobertura jornalística. A capa cega seria pouco atraente
e a xilogravura precisava de uma referência para ser escavada na madeira.
O tom eloqüente não
impedia o recurso ao humor. Outra vez o poeta-repórter do Recife aproveitava
para aproximar a Lua de seu Pernambuco: ´Lá não se canta Rojão / xaxado, xote
ou ciranda´. A crítica ia além ao comparar os buracos da Lua com os do Recife
deste tempo. Depois de levar um coice do cavalo de São Jorge, Armstrong ainda é
questionado pelo santo: ´A Lua falta uma banda / foi você quem carregou?´.
A cor local se
evidencia quando o poeta introduz um grande líder religioso na narrativa: ´Eu
mesmo estava lembrado / Que Padre Cícero dizia / A Ciência eleva o homem / Mas
não dá autonomia / Se faz o que Deus consente / O resto é hipocrisia´.
Outra vez as
ideologias vêm à tona quando Rodolfo fala mal da Rússia e toma partido ao
declarar num verso: ´Ó grande América do Norte / aliada do Brasil´.
Assim, quarenta anos
depois, por meio das páginas amarelecidas dos folhetos ou através da consulta
´on line´ dos acervos digitalizados, é possível evocar a euforia provocada pela
conquista da Lua. O cordel testemunhou este momento. Não é difícil rememorar o
range-range onomatopaico das velhas máquinas impressoras, o pregão das feiras e
a magia do vendedor analfabeto que aprendia o folheto de cor.
O mundo mudou, o
cordel mudou, talvez não tenha mudado a nossa necessidade da fabulação. E assim
o homem se prepara para Marte. Quem sabe, um dia, a poesia se torne profecia de
Azulão: ´Os sábios que descobriram / Satélite, estrela e luneta / Disseram que
o homem ainda / Inventaria cometa / Onde se transportaria / da Terra a outro
planeta´.
GILMAR DE CARVALHO
Especial para o
Caderno 3
Por Marcelo Soares
José Francisco Soares, ou como ele preferia ser chamado, Zé Soares, nasceu em Alagoa Grande, Paraíba, em 5 de janeiro de 1914, e faleceu em 9 de janeiro de 1981, em Timbaúba, Pernambuco.
Ainda menino, se encantara com os desafios entre violeiros-repentistas, emboladores de côco e com os folhetos de feira que os poetas declamavam. Em 1928, publicou seu primeiro folheto Descrição do Brasil por estados. Fez biscates como agricultor e almocreve e, em 1934, foi para o Rio de Janeiro trabalhar como pedreiro, sem jamais deixar de publicar suas obras.
Voltou ao Recife em 1940, quando montou uma banca de folhetos no oitão do Mercado de São José, onde vendia suas obras e as de outros poetas. Nas décadas de 1940 e 1950, publicou grande parte de seus folhetos na Gráfica Medeiros.
Nos anos 1960, tornou-se proprietário da Gráfica Tricolor. Ver texto completo: http://www.casaruibarbosa.gov.br/cordel/JoseSoares/joseSoares_biografia.html#