UM POUCO DA HISTÓRIA DO POETA-EDITOR JOAQUIM BATISTA DE SENA
Por: Arievaldo Vianna
No
dia 8 de junho de 1982, ocorreu um grande acidente aéreo na Serra da Aratanha,
próximo ao município de Pacatuba (na Região Metropolitana de Fortaleza-CE). Um
Boeing 727-200 (voo VASP 168) chocou-se contra a montanha, causando a morte de
todos os 136 ocupantes, numa das maiores tragédias da aviação comercial
brasileira.
Segundo
o noticiário da época, o comandante pediu para deixar o nível de cruzeiro a
aproximadamente 253 km de Fortaleza, quando pelas cartas de navegação
utilizadas para a aproximação ao Aeroporto Pinto Martins deveria fazê-lo a 159
km. Tanto o controle de tráfego quanto o seu auxiliar não questionaram o motivo
de descer tão longe. Ao estabilizar na altitude autorizada pelo tráfego, já
dava para ver as luzes da capital cearense. Foi quando o copiloto disse:
"Não tem uns morrotes aí na frente?". Nesse momento, o Boeing da Vasp
sobrevoava a região de Pacatuba. Seis alarmes soaram na cabine, mas o piloto os
ignorou, e, às 02h53, o Boeing se chocou contra a Serra de Aratanha sem deixar
sobreviventes.
Tragédias
como essa jamais passam despercebidas pelos poetas do Cordel, notadamente os
adeptos do folheto reportagem. Assim, em julho daquele ano, cerca de um mês
após o grande acidente, eu me encontrava na Praça José de Alencar (ou seria na
Praça da Estação?), em Fortaleza, dentro de um ônibus que me levaria até
Maranguape, quando subiu um senhor alto, meio avermelhado, pele tostada pelo
sol de verão da nossa capital, conduzindo um maço de folhetos na mão. Pediu-nos
um minuto de nossa atenção e começou a contar a tragédia nos versos que se
seguem:
Com ordem e consentimento
Do Grande Deus Verdadeiro
Vou narrar uma tragédia
Que abalou o estrangeiro
Enlutando o Ceará
E quase o Brasil inteiro.
Quando um avião da VASP
Por coincidência estranha
Com toda força arrojou-se
No Pico da Aratanha
Se transformando em pedaços
No choque com a montanha.
Já chegando em Fortaleza
Num instante temeroso
Cento e trinta e seis pessoas
De um modo tenebroso
Morreram sem esperar
No desastre pavoroso.
(...)
Sobrevoando o espaço
Na Serra da Aratanha
O comandante do Boeing
Por motivo que estranha
Invés de passar por cima
Chocou-se contra a montanha.
Ouviu-se um grande estrondo
Pela alta madrugada
Avisaram à [sic] Fortaleza
Seguiu gente em disparada
Para socorrer as vítimas
Da tragédia inesperada.
Um bebê de cinco meses
Que no Boeing viajava
Naquele exato momento
Na porta do céu entrava
E atrás dele um cortejo
De almas lhe acompanhava.
(...)
(A tragédia do avião que se espatifou no Pico
da Aratanha e matou 136 pessoas – Joaquim Batista de Sena / Vidal Santos,
1982).
O curioso personagem em questão era ninguém menos que
o poeta, editor e folheteiro Joaquim Batista de Sena, um dos grandes expoentes
da nossa Literatura de Cordel que dava continuidade a um ofício por ele
iniciado há quase 50 anos. Pelo que pude apurar posteriormente, o folheto
escrito em parceria com o poeta Vidal Santos (Beneditinos-PI) teve
posteriormente uma enorme tiragem patrocinada pelo Café Guimarães, sendo
distribuída gratuitamente pelos revendedores dos produtos dessa empresa. Além
dessa obra, de cunho jornalístico, o velho poeta trazia também outros títulos
de sua autoria, que foram comercializados no interior do coletivo. Eu já
conhecia o poeta de nome, uma vez que lera alguns títulos de sua lavra, como História de Braz e Anália e Os amores de Chiquinha e as bravuras de
Apolinário, ambos editados na Casa dos Horóscopos, editora de Manoel
Caboclo e Silva, sediada em Juazeiro do Norte.
Fiquei admirando a desenvoltura do velho trovador, que falava
desembaraçadamente, com voz impostada e boa dicção. Qualquer verso tornava-se
bonito na sua voz, desde que fosse metrificado, condição da qual o poeta jamais
abria mão. Segundo Guaipuan Vieira, Paulo de Tarso e outros poetas que
conviveram com ele nesse período, o velho mestre tremia de indignação quando
via um verso mal feito, de métrica ruim e rimas claudicantes:
— Isto
é uma vergonha!
E se o autor estava por perto, abrandava o tom de
voz e dava úteis conselhos para aprimoramento de seu estro. Em meu livro Acorda Cordel na Sala de Aula, segunda
edição impressa em 2010, fiz questão de apresentar uma galeria de grandes
poetas, dando especial destaque ao nome de Joaquim Batista de Sena, um
poeta-editor que atuou por anos e anos em terras cearenses. Eis o texto,
devidamente acrescido de algumas informações:
Joaquim Batista de
Sena,
um continuador da tradição
Joaquim Batista de Sena foi o maior editor de cordel em Fortaleza entre os anos 1950 e 1970
JOAQUIM BATISTA DE SENA nasceu no dia 21 de maio
de 1912, no sítio Lagoa de Pedras, próximo à Fazenda Velha, na época integrada
ao município paraibano de Bananeiras, hoje pertencente à Solânea-PB. O poeta era filho de Manoel
Batista de Sena e Francisca Ana das Dores (Francisca Batista de Sena, após o
casamento), lavradores e pequenos proprietários rurais. Faleceu no dia 13 de
outubro de 1993 em Fortaleza-CE e foi sepultado no cemitério Parque da Paz,
nesta capital, conforme Certidão de Óbito adquirida pelo pesquisador José Paulo
Ribeiro, de Guarabira-PB, por intermédio
da filha do poeta Ivete Sena. Fazemos questão de ressaltar essa contribuição de José Paulo porque muitos pesquisadores ou ignoravam ou davam uma data completamente errada para a morte do poeta.
No folheto Sertão, cardos e cantadores (Tipografia
Graças Fátima, s.d.), Joaquim Batista de Sena apresenta alguns textos
autobiográficos, alternando a prosa e a poesia, como é o caso do poema “A minha
Lagoa de Pedras”, que trata do local de seu nascimento:
Minha Lagoa de Pedras
Minha campina saudosa
Planalto onde eu nasci
Numa manhã radiosa
E onde o sol à tardinha
Se punha da cor de rosa.
Minha floresta sortida
De amorosa e pereiro
De gachumba e umburanas
Catingueira e marmeleiro
Macambira e xique-xique
Icó, cardeiro e facheiro.
Parece-me ouvir o pranto
Das cigarras do inverno
Naquelas matas frondosas
Cada um canto doce e terno
Como as trombetas dos anjos
Nas diversões do Eterno.
Na transformação do homem
Não digo que Deus é mau
Embora eu morra cantando
Triste como o urutau,
Os tempos da minha infância
Dos meus cavalos de pau.
Autodidata, adquiriu vasto conhecimento sobre
cultura popular e era um defensor intransigente da poesia popular nordestina.
Começou como cantador de viola, permanecendo três anos nesse ofício, no final
da década de 30, conforme depoimento gravado pelo Museu da Imagem e do Som do
Ceará (MIS). Ainda nessa preciosa
declaração, Batista de Sena diz que aprendeu a ler com imensa dificuldade numa
Carta de ABC de Landelino Rocha, auxiliado por um feitor de estradas que
passava rapidamente pela manhã e lhe ensinava uma lição, retornando somente no
final da tarde para retomá-la. Nas páginas finais dessa pequena cartilha, que
tem o mesmo formato dos folhetos de cordel, lê-se a seguinte máxima: “A
perseverança vence todas as dificuldades”. Realmente, o grande poeta paraibano
teve que superar inúmeros obstáculos, os quais conseguiu vencer graças a sua
inteligência e, sobretudo, à perseverança.
No início da década de 40, vendeu um sítio de sua
propriedade e adquiriu sua primeira tipografia, que funcionou algum tempo na
cidade de Guarabira-PB, transferindo-se depois para Fortaleza, onde atuou
durante muitos anos. Dizia-se discípulo de Leandro Gomes de Barros e era
admirador incondicional de José Camelo de Melo. Na capital cearense, sua casa
editora chamou-se inicialmente “Folhetaria São Joaquim” ou “Editora O
Crepúsculo” e funcionou inicialmente no bairro Floresta (Rua Estrela do Norte,
26, hoje Álvaro Wayne). Depois a tipografia adotou o nome de “Folhetaria Graças
Fátima” e passou a funcionar na Rua Liberato Barroso, 725, no centro de
Fortaleza.
O poeta explicava a razão desse título: durante a
passagem da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima pelo Nordeste, na
década de 50, ele conseguiu ganhar muito dinheiro vendendo folhetos sobre a
visita da santa, ampliando consideravelmente seus negócios. Por essa época, foi
vítima de um naufrágio da Baía de Quebra-Potes (Maranhão). Salvou-se nadando,
mas perdeu uma mala de folhetos, contendo diversos originais.
Em 1973, vendeu sua gráfica e sua propriedade
literária para Manoel Caboclo e Silva e tentou estabelecer-se no Rio de
Janeiro, também no ramo da literatura de cordel, mas não foi bem sucedido. De
volta ao Ceará, ainda editou alguns folhetos de sucesso, como o que escreveu em
parceria com Vidal Santos, sobre o desastre aéreo da Serra da Aratanha
(Pacatuba-CE), onde faleceu, dentre outros, o industrial Edson Queiroz.
Na década de 1980, o poeta viveu por alguns anos
no Rio de Janeiro, para onde se mudou com parte da família. Ali tentou montar
uma editora de cordel, porém não foi adiante, pois os filhos preferiam
direcionar as atividades da gráfica para o ramo comercial. Nesse período,
conviveu com Gonçalo Ferreira, Raimundo Santa Helena, Mestre Azulão, Apolônio
Alves dos Santos e outros poetas em atividade na Feira de São Cristóvão,
tornando-se um dos fundadores da Academia Brasileira de Literatura de Cordel –
ABLC, surgida em 1987.
Sena era um grande poeta, de verve apurada e rico
vocabulário. Conhecia bem os costumes, a fauna, a flora e a geografia
nordestina, motivo pelo qual seus romances eram ricos em descrições dessa
natureza. Pode-se dizer que com a sua morte, fechou-se um ciclo na poesia
popular nordestina e o gênero “romance” perdeu um de seus maiores poetas. Só
agora, no início deste novo século, surgem novos romancistas que pretendem dar
continuidade à trilha deixada pelo mestre.
Com relação ao seu posicionamento político, explicitada
principalmente em folhetos-reportagem das décadas de 1960 e 70, convém notar
que o poeta era direitista e extremamente influenciado pela ala conservadora da
igreja católica, diferentemente de Leandro e José Camelo, poetas que admirava,
e que tinham um senso crítico aguçado e espírito libertário. O mesmo se pode
dizer, por exemplo, de Rodolfo Coelho Cavalcante, outro poeta de sua geração.
Essa sua postura conservadora não passou despercebida a estudiosos que se
ocuparam de sua obra, como Eduardo Campos (em Cantador, Musa e Viola) e Ivan Cavalcanti Proença (A Ideologia do Cordel).
Ideologia a parte, o que se
sobressai na obra de Joaquim Batista de Sena é o seu profundo conhecimento dos
hábitos e costumes sertanejos e perfeito domínio das técnicas de narrativa. Ademais,
sua boa sintonia com o público nos deixou um legado de, pelo menos, uns vinte
clássicos da Literatura de Cordel.
Entre as suas obras de maior recepção popular,
destacamos: A filha noiva do pai ou Amor
culpa e perdão; A morte comanda o cangaço; As sete espadas de dores de Maria
Santíssima; Estória de Manoel Seguro e Manoel Xexeiro; História de João Mimoso
e o castelo maldito; História de Braz e Anália; Os amores de Chiquinha e as
bravuras de Apolinário; História do assassinato de Manoel Machado e a vingança
do seu filho Samuel; História dos três irmãos lavradores e os três cavalos
encantados; Luta e vitória de São Cipriano contra Adrião Mágico; História do
Príncipe João Corajoso e a princesa do Reino Não-vai-ninguém; História da
novela de Antônio Maria em versos de cordel; O defensor da honra e o Barba Azul
do Sertão; História da vida, morte e enterro de Fernando da Gata; O amor de uma
órfã ou Conrado e Lúcia e Estória do
Rei teimoso.
Principal fonte de
consulta: VIANA, Arievaldo. Acorda Cordel
na Sala de Aula, 2010, p. 89
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