Em 2011, o livro de estréia do folclorista cearense LEONARDO MOTA, o clássico "Cantadores" completa 90 anos de existência. Obra fundamental para o estudo do cordel e da cantoria, este livro continua sendo referência para todos que desejam conhecer os primórdios e evolução da poética popular nordestina.
LEOTA era um pesquisador atuante, que bebia nas fontes da poesia cabocla e não poupava críticas aos chamados folcloristas de gabinete. Seu pecado era não citar as fontes e muitas vezes, atribuir à cantadores seus conhecidos versos que já haviam sido publicados em folheto, sobretudo obras de Leandro Gomes de Barros.
Eis a capa da primeira edição de CANTADORES, verdadeira preciosidade.
SOBRE O LIVRO: Trechos de uma matéria publicada na revista ESSO, em 1963.
" Leonardo Mota, que foi um apaixonado pesquisador dos cantadores que produzem prosa sertaneja, estudou-os em sua intimidade, em seu próprio ambiente, convivendo com eles de igual para igual. Nessas ocasiões ele não representava o advogado, o jornalista, o secretário do governador do estado. Era, antes de tudo, um amigo que tratava de viver em contato com aquela gente humilde, esquecido dos títulos e de sua condição social.
Foi Leonardo Mota quem, com a sua autoridade, no livro intitulado
Cantadores, apontou os por ele considerados como os mais expressivos, naturais e completos improvisadores da poesia do sertão: Anselmo, Passarinho, Sinfrônio e Aderaldo. Os dois últimos eram cegos e tocadores de rabeca. Manejavam o instrumento como os menestréis medievais, ou seja, colocavam-no à altura do peito e não sob o queixo. Os dois primeiros eram violeiros, mas todos tinham muitas características em comum, inclusive uma memória extraodinária.
Anselmo, por exemplo, foi o mais famoso vate matuto da região do norte do Ceará e alegava jamais haver vivido do "ufiço", com o que queria dizer que não levava a vida nômade dos cantadores de profissão. Analfabeto, sempre fez versos influenciados pelos desafios e cantigas que ouvira em sua meninice, quando os poetas sertanejos de então passavam pelo lugar onde ele morava. Alguns dos seus versos característicos:
Tem duas coisa no mundo
Que eu nunca pude entendê;
É pade i pro inferno,
Outra é doutô morrê.
Avoa, meu caboré,
Penera, meu gavião,
Palmatora quebra dedo,
Palmatora faz vergão,
Quebra os ossos e quebra a carne
Mas não quebra opinião!...
..............
Preu cantá na sua casa,
Meu patrão, me dê licença!
Se a cantiga não fô boa,
Desculpe, vossa incelença
Que, às vez, as coisa não sai
Do jeito que a gente pensa.
Não tem outro cantadô
Pra me ajudá um tiquim.
O cantá de dois é bom,
O ruim é cantá sozim;
A gente, andando de dois
Encurta mais os camim...
Passarinho é outro da lista dos "grandes". Seu nome de guerra: Jacó Passarinho. Cearense de Mutamba, localidade perto de Aracati, sua maior glória era saber ler e escrever. Ágil repentista, memória terrível, tinha uma deficiência: não ser exímio tocador de viola. Mas isso ficava esquecido quando cantava versos assim:
De amor a gente não muda.
De ano em ano, mês em mês!
Amor é que nem bexiga:
Só dá na gente uma vez...
.............
Cantador que dá-se a preço
Não se areia nem faz troça:
Sujeito de bom calibre
Depois de velho remoça;
Quem beija a boca de um filho
A boca de um pai adoça.
Nossa Senhora é mãe nossa,
Jesus Cristo é nosso pai
Na minha boca repente
É tanto que sobra e cai...
Quem beija a boca de um filho
Adoça a boca de um pai
Mostro a quem vem e a quem vai,
Mostro a todos da jornada:
Mais vale quem Deus ajuda
Do que quem faz madrugada.
Quem beija a boca de um filho
Deixa a de um pai adoçada.
Este mundo é uma charada...
Ai de mim, se Deus não fosse!
Repente em minha cabeça
Ainda não acabou-se:
Quem beija a boca de um filho
Deixa a boca de um pai doce.
Foi o inverno quem trouxe
Ao Ceará a fartura.
Eu, em casa de homem rico,
Gosto de fazer figura...
Quem beija a boca de um filho
Deixa a de um pai com doçura.
O cego Sinfrônio, natural de Jabuti, perto de Messejana, pode ser considerado como um dos cantadores mais espontâneos do Nordeste.
Cegou quando tinha apenas um ano de idade e, apesar disso, devido a sua extraordinária memória, tornou-se um verdadeiro cabedal de romances, cantigas e desafios. Sua mulher lia pacientemente os manuscritos e folhetos até que ele os conseguisse decorar. Sua maior qualidade: ser maravilhoso improvisador. Nômade por natureza, admirável profissional do canto. Sinfrônio foi o tipo do cantador reconhecidamente respeitado por todos os demais. Uma filosofia pessoal marcava toda a inspiração do cego Sinfrônio:
Anda já em quarenta ano
Que eu vivo somente disso...
Achando quem me proteja.
Eu sou bom nesse serviço:
Eu faço a vez de machado
Em tronco de pau mucisso...
Esta minha rabequinha
É meus pés e minhas mão,
Minha foice e meu machado,
É meu mio e meu feijão,
É minha planta de fumo,
Minha safra de algodão...
................
Eu andei de déu em déu
E desci de gaio em gaio...
Jota a Já, queira ou não queira,
Eu não gosto é de trabaio...
Por três coisa eu sou perdido
Muié, cavalo e baraio!
Aderaldo foi, sem dúvida, o cantador de melhor voz, entre os quatro mais famosos, e além disso possuía uma apreciável veia poética. Natural do Crato, no Ceará, cegou aos 18 anos, quando maquinista num desastre ferroviário que sofreu sua composição na Estrada de Ferro Baturité. Ao contrário de Sinfrônio, que não gosta de versos de amor, Aderaldo é um lírico. Em todos os seus "desafios" não deixa de lado o seu sentimentalismo:
Meu benzinho, diga, diga,
Por caridade confesse
Se você já encontrou
Quem tanto bem lhe quisesse.
Meu bem, que mudança é esta
Neste teu rosto adorado?
Acabou-se aquele agrado
Com que me fazia festa?
Eu juro que nunca quis
Ofender teu peito nobre!
Fala, meu anjo, descobre.
Diga, meu bem, que te fiz?
Todo passarinho canta
Quando vem rompendo a aurora;
Só a pobre mãe da lua
Quando canta — logo chora...
Assim eu faço também,
Quando meu bem vai se embora!"
("São donos cantadores da palavra". Revista Esso. Rio de Janeiro, fevereiro de 1963) |