segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Um conto europeu vira cordel no Brasil

 
HISTÓRIA DO JOÃO SOLDADO QUE 
METEU O DIABO NUM SACO
 

João Soldado se criou
Na terra da Palestina
Ficou órfão logo cedo
Foi bem triste a sua sina
Mas porém foi coroado
Por uma estrela divina.
 

(Da versão em cordel de Antônio Teodoro do Santos)
 

Uma das histórias de cordel mais conhecidas no Brasil é o folheto de Antônio Teodoro dos Santos (1916 – 1981), “João Soldado, o valente praça que meteu o diabo num saco”. Desde criança conheço este folheto, publicado pela Editora Luzeiro, de São Paulo. (Para saber mais sobre este folheto, consultar o blog CORDEL ATEMPORAL:  


A versão em prosa, que nos chegou de Portugal, só vim a conhecer muito tempo depois. É esta que se segue:
 

Era uma vez um rapaz bem nascido, mas sem leira nem beira, a quem tocou a sorte de ser soldado. Terminado o tempo de praça, que foram oito anos, alistou-se por mais oito e, terminados estes, por mais oito.
 Quando completou os últimos oito anos, já era velho e como nem para andar com as marmitas servia, deram-lhe baixa e entregaram-lhe tudo o que restava do soldo: um pão e quatro vinténs.
 Era tudo isto que vos estou narrando no tempo em que o dinheiro se contava por vinténs e por patacos, valendo cada pataco dois vinténs, no tempo em que “ir à tropa” era “ir às sortes” e o soldado era soldado porque recebia um soldo, mas tão pequeno que, como aconteceu ao nosso herói, ao fim de tantos anos só lhe restavam quatro vinténs.
 João Soldado pôs-se a caminho e ia dizendo para consigo:
“Sempre te declaro que tiraste um lucro de arregalar o olho! Depois de servires o Rei durante vinte e quatro anos, ficas com um pão e quatro vinténs! Mas é andar com Deus e nada ganhas em desesperar senão criares mau sangue.”

E pôs-se a cantarolar: 

Não há vida mais rendosa
Do que a vida de soldado.
É rancho, mochila e arma,
 E morrendo está arrumado! 

 Era também esse o tempo em que Nosso Senhor Jesus Cristo andava pelo mundo e trazia por moço a São Pedro. Encontrou-se com eles João Soldado e São Pedro, que era o do saco, pediu-lhe esmola.
 
Aqueles dois mendicantes
Eram São Pedro e Jesus
Quando andavam neste mundo
Trazendo a divina luz
Provando os bons corações
Com sua pesada cruz.

(Antônio Teodoro dos Santos) 

 -Eu que lhe hei-de dar – disse João Soldado – se, ao fim de servir o Rei vinte e quatro anos, não fiquei com mais do que um pão e quatro vinténs?

 São Pedro era teimoso e insistiu.

 -Enfim – disse João Soldado – ainda que, depois de servir o Rei vinte e quatro anos só tenha por junto um pão e quatro vinténs, repartirei o pão com vossemecês.
 E puxando da navalha, cortou o pão em três bocados, deu-lhes dois e ficou com um.
 Daí a duas léguas, encontrou-se outra vez com São Pedro que tornou a pedir-lhe esmola.
 -Quer parecer-me – disse João Soldado – que lá adiante vi vossemecês e que conheço essa calva. Mas enfim… é andar com Deus ainda que, ao fim de servir o Rei vinte e quatro anos, só tenha um pão e quatro vinténs e do pão não me reste senão este bocado que vou repartir com vossemecês.
 Assim o fez e, em seguida, comeu a sua parte para que não tornassem a pedir-lha.
 Ao pôr do sol, terceira vez se encontrou com o Senhor e São Pedro, que lhe pediram esmola.
- Ia jurar que já lha dei – disse João Soldado. – Mas enfim… é andar com Deus ainda que, ao fim de servir o Rei vinte e quatro anos, me vi só com um pão e quatro vinténs. E vou repartir com vossemecês estes quatro vinténs como já reparti o pão.
 Pegou nas duas moedas de pataco, deu uma a São Pedro e ficou com a outra.
“Que hei-de fazer com um pataco?” disse João Soldado para os seus botões. “O remédio é deitar-me a trabalhar, se quero ter de comer.”
-Mestre! – dizia entretanto São Pedro ao Senhor – Faça Vossa Majestade alguma coisa em favor desse desgraçado que serviu vinte e quatro anos o Rei e não tirou outro proveito mais do que um pão e quatro vinténs que repartiu conosco.
-Está bem – concordou o Senhor. – Chama-o e pergunta-lhe o que quer ele.
 Assim fez São Pedro, e João Soldado, depois de muito pensar, respondeu que o que queria era que, no bornal que levava vazio, se metesse tudo o que ele quisesse meter nele. Isso lhe foi concedido. E João Soldado seguiu caminho.
 Ao passar por uma aldeia, avistou numa tenda umas broas de pão mais alvo que jasmins e umas linguiças que estavam mesmo a dizer: comei-me. 
 -Salta para o bornal! – ordenou João Soldado em voz de comando.
 E era coisa de pasmar ver as broas dando voltas como rodas de carreta e as linguiças arrastando-se como cobras a encaminharem-se para o bornal.
 João Soldado, que comia mais do que um cancro e naquele dia tinha mais fome do que Deus tem paciência, apanhou um fartote, daqueles de dizer “não posso mais”.
Ao anoitecer chegou ele a outra aldeia. Como era soldado com baixa, tinha direito a alojamento, a que lhe dessem boleto. Por isso se dirigiu ao regedor a quem disse:
-Senhor, eu sou um pobre soldado que, ao fim de ter servido o Rei 24 anos, achei-me só com um pão e quatro vinténs que se gastaram no caminho.
 O regedor respondeu-lhe que, se ele quisesse, o alojaria numa herdade próxima, para onde ninguém queria ir habitar porque nela havia morrido um condenado e, desde então, andava lá coisa ruim. Mas que se ele era animoso e não tinha medo de coisas ruins, podia ir lá e encontraria lá tudo do bom e do melhor pois o condenado tinha sido riquíssimo. Falou João Soldado:
-Senhor! João Soldado não deve nem teme e portanto posso encaixar-me lá enquanto o diabo esfrega um olho.
 Na tal herdade, achou-se João Soldado no centro da abundância. A adega era das mais excelentes, a dispensa das mais providas e os madureiros estavam atestados de fruta.
 A primeira coisa que fez, como prevenção para o que desse e viesse, foi encher uma cântara de vinho porque considerou que aos bêbados costuma tapar-se a veia do medo. A seguir, acendeu uma vela e sentou-se a fazer umas migas de toucinho.
 Mal se tinha sentado, ouviu uma voz que vinha pela chaminé abaixo e dizia:
 -Caio?
 -Pois cai, se tens vontade – respondeu João Soldado que já estava meio pitosga com as emborcações daquele vinho precioso. – Quem serviu vinte e quatro anos o Rei, não deve nem teme.
 Ainda não tinha acabado de falar e já caía pela chaminé abaixo a exacta perna de um homem. João Soldado sentiu tal arrepio que se lhe eriçaram os cabelos como a um gato assanhado. Pegou na cântara e bebeu um trago.

 Mais animoso, perguntou à perna:
 -Queres que te enterre?
 A perna fez sinal de que não com o dedo gordo do pé.
-Pois apodrece para aí – disse João Soldado.
 Daí a nada, tornou a ouvir a mesma voz, que vinha da chaminé, a perguntar:

 -Caio?

 -Pois cai, se tens vontade – respondeu ele dando outro beijo na cântara. – Quem serviu vinte e quatro anos o Rei, não teme nem deve.
 Caiu então a outra perna, ao lado da companheira que já lá estava. Para rematar em poucas palavras: como caíram as pernas, caíram os quatro quartos de um homem e, por último, a cabeça, que se uniu aos quartos, e então se pôs em pé uma peça, não um cristão, mas um assombroso espectro que parecia dever ser o próprio condenado em corpo e alma. 

-João Soldado – disse ele com um vozeirão capaz de gelar o sangue nas veias – vejo que és um valente. 

-Sim, senhor. Sou um valente, não há dúvida. Pela vida de Cristo, nunca João Soldado conheceu nem fartura nem medo. Apesar disso, saberá Vossa mercê que, ao fim de ter servido vinte e quatro anos o Rei, o proveito que tirei foi um pão e quatro vinténs.
-Não te entristeças por isso. Porque se fizeres o que eu te vou dizer, salvarás a minha alma e serás feliz. Aceitas fazê-lo? 

 -Sim senhor, sim senhor. 

 -O pior – observou o espectro – é que me parece que tu estás bêbedo…

-Não senhor, não senhor. Estou assim “tem-te não caias”. Pois saberá Vossa Mercê que há três classes de bebedeira. A primeira é “tem-te não caias”, a segunda é de fazer SS e RR e a terceira é de cair. Ora eu, senhor, não passei do “tem-te não caias”.
-Se assim é, vem comigo.
 João Soldado levantou-se. Ficou a balouçar como um santo num andor. Mas lá conseguiu pegar na vela. O espectro, porém, estendeu o braço como uma garrocha e apagou a luz. Não era precisa porque os olhos dele alumiavam como duas forjas acesas.
Quando chegaram à adega disse o espectro:
 João Soldado, pega numa enxada e abre aqui uma cova.
-Abra-a Vossa Mercê com toda a força que tem, se faz gosto nisso. Eu não servi o Rei vinte e quatro anos, sem outro proveito que um pão e quatro vinténs, para me pôr agora a servir outro amo que pode ser que nem isso me dê.
 O espectro pegou na enxada, cavou e tirou três talhas. Disse a João Soldado:
- Esta primeira talha está cheia de cobre, que repartirás pelos pobres. Esta segunda talha está cheia de prata, que empregarás em mandar rezar missas pela minha alma. E esta terceira talha está cheia de ouro, que será para ti se me prometeres entregar as outras conforme acabo de dispor.
- Fique Vossa Mercê descansado – afirmou João Soldado. – Vinte e quatro anos passei cumprindo as ordens que me davam sem tirar outro proveito que um pão e quatro vinténs. Já vê Vossa Mercê se o não farei agora que tão boa recompensa me promete.
 E na verdade, João Soldado cumpriu tudo o que lhe recomendou o espectro e, de contente, ficou metido num sino. Quem não ficou nada contente foi o Diabo-Mor, Lúcifer, o qual perdeu a alma do condenado pelo muito que por ela rezaram a igreja e os pobres. Mas não sabia como vingar-se de João Soldado.
 Ora havia no Inferno um Satanás pequeno, astuto e ladino, que garantiu a Lúcifer ser capaz de lhe trazer João Soldado. Causou isto muita alegria ao Diabo-Mor. E prometeu ao diabinho que, se ele conseguisse fazer o que dizia, o presentearia com um molho de enfeites e de ditos para seduzir e perder as filhas de Eva e com uma porção de baralhos de cartas e garrafas de vinho para tentar e perder os filhos de Adão.
 Estava João Soldado sentado no seu quintal, quando vê chegar junto de si, todo lépido, o diabinho, que o saúda:
-Bons dias, Senhor Dom João!
-Estimo ver-te macaquinho. Que feio que tu és! Queres uma fumaça?
-Não fumo, Dom João, senão palhas.
 -Vai um copo?
-Não bebo senão água-forte.
-Pois, então, que vens tu cá fazer?
-Venho levar Vossa Mercê comigo.

-Em boa hora seja. Não servi vinte e quatro anos o Rei, para bater em retirada diante de um macaquito de má morte como tu. João Soldado não deve nem teme, percebes? Olha, sobe a essa figueira que está cheia de belos figos, enquanto eu vou pelos alforjes porque me parece que a o caminho que temos a andar é comprido.
 O Satanás pequeno, que era guloso, subiu à figueira e pôs-se a comer figos. João Soldado foi buscar o bornal que deitou às costas, voltou para junto do diabrete e gritou-lhe:
 -Salta para o bornal!
 Dando gritos de assombrar o diabrete não teve outro remédio senão enfiar-se dentro do bornal.
 João Soldado fechou o saco, e pôs-se a desancar o diabrete até lhe deixar os ossos num feixe. Depois, mandou-o ir-se embora. Quando, chegado ele à sua presença, o Diabo-Mor viu o seu benjamim naquele estado, e partido, pôs-se vermelho de fúria e desatou aos gritos:
-Irra! Três mil vezes irra! Juro que esse descarado do João Soldado mas há-de pagar todas de uma vez! Eu mesmo lá vou em pessoa!

 João Soldado já esperava esta visita. Estava prevenido e tinha o bornal às costas. Logo que Lúcifer se apresentou, deitando lume pelos olhos e foguetes pela boca, avançou para ele muito tranquilo e disse-lhe:

-Compadre Lúcifer! Fizeste bem em vir. Mas é preciso que saibas que João Soldado não deve nem teme!

-Tu, meu fanfarrão das dúzias é que vais saber. Meto-te no inferno num abrir e fechar de olhos.

-Tu a mim? Tu, Lúcifer, a João Soldado? Não há-de ser fácil … tem cuidado.

 O Diabo bufava: “Vil guzano terrestre!”

E João Soldado a rir-se:

 -Grande estafermo! Vou enfiar-te no meu bornal. A ti, ao teu rabo e aos teus cornos.

 -Basta de bravatas! – rugiu o Diabo, estendendo o enorme braço e mostrando as unhas tremendas e negras.

 -Salta para o bornal! – ordenou João Soldado na voz de comando que aprendera na tropa.

 E por mais que Lúcifer se torcesse, por mais que se arrepelasse e pusesse num novelo, foi direitinho de cabeça para dentro do bornal.

 João Soldado fechou o saco e foi buscar um masso. Pôs-se a descarregar cada pancada que onde batia fazia uma cova. Lúcifer ficou mais chato que uma folha de papel.

 Quando sentiu os braços cansados abriu o bornal, deixou cair o miserável e disse-lhe:

- Por agora contento-me com isto. Mas se te atreves a voltar a aparecer diante de mim, grande desavergonhado, arranco-te o rabo, os cornos e as unhas, e nunca mais metes medo a ninguém.

 O Diabo lá se arrastou como pôde até ao Inferno. Quando a corte infernal o viu chegar naquele estado, derrubado, encolhido, transparente, com o rabo entre as pernas, todos aqueles farricocos se puseram a vomitar sapos e cobras.

 -Que havemos de fazer depois disto, Senhor? – perguntavam eles.

-Mandar vir serralheiros para que façam ferrolhos para as portas, mandar vir pedreiros para taparem todos os buracos e fendas das paredes, a fim de que não entre, não surja, nem aporte ao Inferno o grande insolente do João Soldado!

 E assim se fez com toda a pontualidade.

 Quando João Soldado viu aproximar-se a hora da sua morte, pegou no bornal e encaminhou-se para o céu. À porta encontrou São Pedro.

 -Ora viva! Seja benvindo! – disse-lhe São Pedro – Onde é a ida, amigo?

-Aonde vê – respondeu João Soldado muito ancho e emproado.

 E ia entrando.

-Alto lá, compadre! No céu não entra assim qualquer um como se entrasse em sua casa. Vejamos. Que merecimentos traz Vocemecê?

-Pois diga-me, Senhor São Pedro… Pois diga-me se lhe parece regular que eu, depois de lá em baixo ter servido o Rei vinte e quatro anos sem tirar outro proveito mais do que um pão e quatro vinténs, diga-me se, depois disso, não há no céu um lugar para mim?

 São Pedro sorriu e João Soldado entrou.