terça-feira, 11 de outubro de 2011

RIACHÃO E O DIABO


O enigma Manoel Riachão



O famoso cordel Peleja de Manoel Riachão com o Diabo
em edição da Luzeiro, com capa assinada por Glen

Por: Marco Haurélio
Riachão e o Diabo foi um dos cordéis que mais ouvi na infância. Meu parente Abdísio Viana Araújo sabia quase todo de cor e recitou muitas vezes na minha presença. Meu pai, Evaldo Lima, também sabe vários trechos da famosa peleja. Leandro Gomes de Barros, autor da primeira versão em folheto, diz que o tema é bastante antigo "Minhas são somente as rimas / Exceto isso, mais nada". O que há por trás dessa célebre peleja, anterior, quem sabe, ao debate de Caatingueira e Romano?
O poeta Marco Haurélio lança algumas luzes sobre a questão nesse artigo que reproduziremos a seguir.

(Arievaldo Viana)


Quando Riachão é o próprio diabo

Manuel do Riachão ou Manoel Riachão pertence à categoria dos cantadores semilendários preservados pela memória popular, com características que variam de região para região.  Personagem ambivalente, é retratado, por vezes, como um repentista que é desafiado pelo diabo, a quem derrota, ardilosamente, recorrendo à terminologia sagrada. Noutras, Riachão é um indivíduo que vendeu a alma para o diabo, tornando-se, graças ao pacto, imbatível nos desafios sertanejos. Aparece, ainda, como o próprio diabo, e sua presença era indício de grandes catástrofes, como veremos no precioso documento recolhido e transcrito em forma de conto, intitulado Manuel do Riachão, pelo escritor mineiro Viriato Padilha:

É bastante conhecida em diversos estados brasileiros, principalmente nos do norte, a lenda do misterioso personagem a quem o povo deu o nome de Manuel do Riachão, e cujas aventuras satânicas são contadas em verso rústico desde Piauí até Sergipe.

Em alguns lugares acredita-se que Manuel do Riachão era o diabo em pessoa; em outros apresentam-no simplesmente como um indivíduo malfazejo e nefasto, que vendera a alma ao príncipe das trevas, a fim de se tornar o primeiro tocador de viola e improvisador dos batuques sertanejos.

Em toda parte, porém, Manuel do Riachão figura na tradição como bardo sem rival, afirmando-se que a sua passagem por qualquer lugar era prenúncio de calamidades súbitas e inexplicáveis. Guarda o povo lembrança de que secavam os regatos, não obstante a regularidade das chuvas, tresmalhavam-se os rebanhos, surgiam enfermidades no gado, desmereciam as lavouras, e até as pessoas sentiam-se atacadas de sofrimentos estranhos, quando Manuel do Riachão, de viola a tiracolo, atravessava qualquer paragem.

Assim, apesar da admiração que causava pelos seus altos dotes de improvisador inspirado e violeiro habilíssimo, Manuel do Riachão não podia demorar-se por muito tempo em qualquer ponto. Desde logo, a indignação popular levantava-se contra os seus singulares costumes, e nela procurava um derivativo por causa dos males que começavam a afligir a terra, sendo o pobre violeiro obrigado a enfronhar a viola, e buscar outro sítio, até que, sendo aí também perseguido, recomeçasse a sua eterna peregrinação. Assim vivia Manuel do Riachão, e os lugares que de preferência freqüentava eram as tavernas, as mesas de jogo, e principalmente os batuques, pelo prazer de derrotar no verso os mais afamados cantores.

Pois bem: vamos descrever a forma pela qual o povo do norte conta como o sombrio Manuel do Riachão desapareceu dos sambas sertanejos.
* * *
Em uma noite de São João folgava-se ruidosamente em modesta casa do sertão cearense. No terreiro crepitava grande fogueira que iluminava toda a frente da habitação; a criançada pagodeava em derredor do fogo, assando batatas e macaxeiras ao borralho, e na sala roncava o sapateado, puxado vigorosamente por uns cabras desempenados, vaqueiros, comboieiros e roceiros, e por moças sadias, robustas e esbeltas. Todas aquelas pessoas, ali reunidas em alegre folgança, conheciam-se muito, e, ou eram parentes próximos ou afastados, ou vizinhos bastante íntimos.

Assim, notava-se em todas as fisionomias bem-estar completo, satisfação imensa, principalmente nos rapazes e raparigas, quase todos de namoro entabulado ou de casamento ajustado.
Foi em meio dessa festa, simples e boa, que se lembrou fazer um dia a sua aparição o misterioso indivíduo cujo nome encabeça estas linhas, Manuel do Riachão, o mais afamado e fantástico violeiro dos sertões do norte.

* * *

Esse bardo errante, sempre precedido pela antipatia popular, vira-se obrigado a abandonar o Icó, onde assombrara pela sua perícia em improvisar, mas onde também incorrera gravemente no desagrado público, por haver desrespeitado, com uma cantada obscena, uma procissão que se fazia no lugar, sacrilégio que coincidiu com o aparecimento de uma praga de lagartas que devastara completamente os roçados de milho.
A calamidade foi tomada como conseqüência do desacato religioso, e Manuel do Riachão, temendo qualquer violência contra a sua pessoa, bebeu o último gole de aguardente, nas tavernas do Icó, pôs a sua preciosa viola em bandoleira, e lá se foi, estrada fora, a procurar novos auditórios para exibição dos seus dotes de improvisador.

Gastou dias em atravessar a serra do Pereiro, porém na noite de São João já se achava na chapada do Apodi, sôfrego por cantar, visto como no caminho não havia encontrado um só parceiro com o qual se divertisse.

Passava na estrada Manuel do Riachão, quando viu a fogueira e a festa a que já nos referimos. Sem hesitação encaminhou-se para o lugar da patuscada, e, aproveitando-se de um momento de suspensão do batuque, chamou a viola ao peito, e cantou com voz forte estas duas quadras:

Senhora dona da festa,
Me ouça, faça favô;
 
Não trago fome, nem sede
 
Nem me atormenta o calô;

Só quero, senhora minha, 
Dizer aos seus convidados
 
Que, quando o meu peito se abre,
 
Se esconde o mais pintado.

Todas as pessoas que se achavam na sala, e bem assim a criançada que se divertia em torno da fogueira, correram para perto de Manuel do Riachão, que, em pé, no meio do terreiro, continuava a tanger o rasgado na sua viola, sem dizer palavra, e como que à espera que alguém lhe aceitasse o atrevido desafio. Muito alto, magro e de longo cavanhaque cor de barba de milho, tinha a perna arqueada em postura mefistofélica, e um riso sardônico lhe arregaçava o canto dos lábios magros e arroxeados.

Não haveria ninguém naquela festa que aceitasse o desafio daquele sujeito? Era o que todos, com os olhos, se perguntavam uns aos outros, ansiosos por uma lição ao insolente, e ao mesmo tempo desejosos de novo divertimento.

Não esperaram muito tempo os foliões. Dentre a chusma saiu logo um crioulo de gaforinha crescida, o Xico Bordão, que, apanhando uma viola, respondeu no mesmo tom e música ao violeiro errante:

No tempo em que eu cantava 
O meu peito retinia; 
Dava um grito no Icó,
 
No Cariri se ouvia.

Senhora dona da casa,
Faça favô, mande entrá
Quem à sua porta bate,
Pedindo só pra cantá.

Uma salva estrondosa de palmas, acompanhada de gritaria dos meninos, acolheu a cantiga do Xico Bordão, e este, indo ao encontro do Riachão, que continuava sempre de perna arqueada e viola ao peito, cumprimentou-o; e, tomando-o pelo braço, introduziu-o na sala. Rapazes e moças sentaram-se nos bancos dispostos ao correr das paredes, e tendo a dona da casa chegado dois tamboretes aos contendores, estes se abancaram cerimoniosamente, e depois de chupitar cada um seu copinho de aguardente, começou o torneio poético e musical, que não durou muito, pois o Bordão declarou-se logo vencido e retirou-se da sala envergonhado.

Estimulados os brios dos assistentes pela derrota do companheiro, empurraram para o meio do aposento um outro cantador, o Xico Casa-Velha, que também tinha as suas fumaças de improvisador.

Este, porém, no fim de duas quadras esmoreceu. Dizendo o seu nome numa quadrinha, Riachão aproveitou-se dele, e respondeu que toda a casa velha era tapera. Isso foi suficiente para confundir o adversário.
Ainda um terceiro cantador veio sentar-se no fatídico tamborete: era o Totonho, filho da dona da casa, e esse também foi levado à parede com a mesma facilidade.

Então ninguém mais quis cantar com o homem magro do cavanhaque vermelho; e Manuel do Riachão, vendo que nenhum cantador vinha ocupar o tamborete vazio, levantou-se, fez uma grande mesura, e, recuando até a porta, preparava-se para dar a sua despedida em verso, como é costume, quando surgiu na sala, com um machete a tiracolo, e sem que ninguém soubesse por onde tinha entrado, um rapaz muito pálido, de longos cabelos dourados e anelados, olhos profundamente azuis, envolvido num amplo ponche-pala de cor cinzenta clara.

Esse moço adiantou-se na sala, e sentando-se no tamborete onde tinham sido vencidos o Bordão, o Casa-Velha e Totonho, cantou com voz dulcíssima a seguinte quadrinha, em desafio, fazendo-se acompanhar no machete:

Seu Manué do Riachão, 
Não dê já a despedida,
 
Torne a afinar a viola
 
Que o dia vem longe ainda.

Manuel do Riachão, sentindo-se nomear, isto em lugar em que julgava ser completamente desconhecido, teve um estremeção e fixou os seus olhos fundos e vivos como brasas no desconhecido que continuava a dedilhar no machete, até então conservando a vista abaixada, como que por timidez e recato. A ligeira emoção do violeiro não foi no entanto percebida pelos foliões; e ele, procurando disfarçá-la, respondeu ao moço com esta quadra arrogante:

Bem sei que o dia vem longe, 
Temos tempo pra trová,
 
Mas vosmecê se arrepende
 
Antes do galo cantá.

O moço de olhos cor do céu continuava de fronte baixa, e em sua fisionomia, que parecia anuviada por funda tristeza, nem o menor sinal de emoção denunciou, ao ouvir a resposta atrevida do Riachão.

Ao mesmo tempo que todos os circunstantes crescia o interesse pelo desafio; e um pressentimento vago como que lhes dizia que Manuel do Riachão, segundo a frase popular, se estreparia naquela topada. Assim, foi com satisfação que viram o moço do machete ferir de novo o instrumento com as suas mãos, que eram de uma brancura de cera de carnaúba, e soltar estes versos:

Um ano tão bom de inverno 
Que pecados são os seu!
 
Seu Manué do Riachão
 
Seu riacho não correu ...

Manuel do Riachão tornou a fitar os seus olhos de brasa no moço do ponche-pala cinzento; o famoso violeiro como que procurava saber quem era esse que parecia querer revelar ao auditório matuto a sua misteriosa e sombria natureza. No entanto não deixou de fazer a sua entrada em tempo e responder com visível mau humor nos seguintes versos:

Se o riacho não correu 
Não foi por falta de inverno,
 
É que as águas afundaram
 
Foram ferver no inferno.

Os caipiras começaram a admirar-se da feição estranha que tomava o desafio poético. Quem seriam aqueles dois singulares violeiros, tão estranhos e diferentes nos modos e nas figuras? – perguntavam eles, chegando as bocas aos ouvidos uns dos outros. Quando as últimas notas, que acompanhavam os versos do Riachão, se extinguiram, o moço triste do machete descerrou outra vez os lábios, sem no entanto levantar ainda fronte, e cantou:

Seu Manué do Riachão, 
Que triste sina é a sua,
 
Noite que vomecê canta,
 
No céu não se vê a lua.

Riachão torceu-se no tamborete, incomodado por essa segunda investida à sua reputação, e apenas o moço cor de cera acabava de desferir a última sílaba do verso, ele bramiu com voz forte, na qual se percebia claramente a raiva e o despeito:

Se a lua não aparece 
Na noite de meu descante,
 
É, moço do machetinho,
 
Que eu canto só no minguante.

Na verdade Manuel do Riachão era um repentista admirável, e essa resposta tão adequada causou a admiração dos sertanejos. O moço louro, porém, continuava impassível e de olhos fitos no chão. De seu amplo ponche-pala cinzento evolava-se como que uma neblina levemente dourada que o envolvia todo; e assim que lhe coube a vez de cantar, gemeu no semblante esquálido crescente perturbação; e, embora só o tivesse encarado de frente uma só vez, o moço pálido bem o percebia, e assim saiu-se com esta:

Seu Manué do Riachão, 
Uma coisa está se vendo:
 
Sua viola enrouquece,
 
Sua voz 'tá 'smorecendo.

Era verdade o que dizia o moço triste, porém Manuel do Riachão tentava ainda resistir, e assim respondeu incontinenti:

Não se glorie com isso, 
Cantante do ponche-pala,
 
Bebi demais no caminho
 
Sinto um pigarro na fala...

Esses versos eram prenúncio da derrota do terrível trovador. O auditório compreendeu-o, e ficou suspenso dos lábios do cantador cor de cera, que, sempre de olhos baixos, tangia no machetinho, com tanta doçura que parecia que os seus dedos vaporosos nem feriam as cordas.

Logo que Riachão se calou, o moço levantou pela segunda vez os seus olhos serenos, tornou a fitá-los em cheio no violeiro, e cantou com voz mais alta e vibrante:

Seu Manué do Riachão, 
Meu amigo e camarada,
 
Vomecê se avexa tanto
 
Eu não me avexo de nada.

Manuel do Riachão, ao sentir de novo penetrar-lhe a luz clara e profundamente azul dos olhos do fantástico moço pálido, tornou a confundir-se: os seus dedos, rasparam na viola, nervosamente, sem tirar harmonia, o seu corpo todo tremeu; e, pela segunda vez, nesse desafio, não entrou logo com a réplica, ao que o moço do machete, aproveitando a descaída, tornou de novo a abrir os lábios, e cantou, tornando-se a sua voz aguda e firme:

Seu Manué do Riachão, 
Depois da flô vem a espiga:
 
Quero que vomecê reze
 
O Padre-Nosso em cantiga.

Sentindo essa provocação direta aos seus sentimentos religiosos, Manuel do Riachão ergueu-se de um salto. Todo o seu corpo foi tomado de um tremor convulsivo; e torcendo os braços e as pernas, como se fossem serpentes raivosas, vibrou as cordas da viola, com tanta raiva, que as fazia rebentar, ao mesmo tempo que berrava com voz sombria:

Seu moço do ponche-pala, 
Não sou padre pra rezá;
 
Renego os santos da igreja,
 
Renego a pedra do artá.

E, ao dizer isto, todas as luzes da sala se apagaram, e bem assim a fogueira que crepitava no terreiro. Todos ficaram tomados de assombro.

Pelo luar que entrava pela janela viram no entanto que o moço pálido se levantava e se erguia do chão, alguns palmos, ao mesmo tempo que cantava, com voz tão aguda que chegava a doer nos ouvidos, estes versos que foram os últimos do famoso desafio:

Senhora dona da festa, 
Abra a porta, acenda a luz,
 
Estamos com o diabo em casa
 
Rezemos o Credo em cruz.

Assim que acabou de cantar, ouviu-se na sala um estrondo medonho; e, abrindo-se logo o soalho, de meio a meio, por ele enterrou-se e sumiu-se o nefasto Manuel do Riachão, ao passo que o moço triste e de mãos cor de cera mais se elevava do chão. O seu amplo ponche-pala cinzento transformara-se em asas, brancas como a neblina da manhã; e o seu machete tomara a forma de uma palma, que ele comprimiu ao seio, e, sempre subindo, voou pela janela aberta e desapareceu no espaço, sem que olhos humanos pudessem segui-lo.

* * *

É assim que o povo do norte conta de que maneira Manuel do Riachão desapareceu dos sambas sertanejos.

(Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956)

Ruth Guimarães, no impressionante e erudito estudo Os filhos do medo (1950),  reproduz uma versão da lenda em que o cantador é derrotado por um moço que depois se revela um anjo. A quadra que sela a derrota do diabo (Riachão), que estoura e some, aparece com uma pequena variação:

Senhora dona de casa
Feche a porta e apague a luz,
Que temos o Diabo em casa,
Rezemos o credo em cruz.

Em Terra de sol, Gustavo Barroso cita a mesma estrofe, atribuída a Manoel da Bernarda que, numa peleja travada numa fazenda dos Inhamuns, Ceará, derrota o cangaceiro Rio-Preto:

Senhora dona de casa,
Abra a porta e apague a luz,
Estamos com o cão em casa,
Rezemos o credo em cruz.



Quando Riachão é oponente do diabo

A história do violeiro que, desafiado pelo diabo, derrota-o, sobreviveu na tradição oral até que Leandro Gomes de Barros desse a ela forma literária, no final do século XIX. Riachão, na versão fixada por Leandro, não é o diabo, mas seu antagonista. A ação se passa em Açu, Rio Grande do Norte, onde Riachão cantava:

Riachão estava cantando 
Na cidade de Açu, 
Quando apareceu um negro 
Da espécie de urubu, 
Tinha a camisa de sola 
E as calças de couro cru.

Beiços grossos e virados 
Como a sola de um chinelo 
Um olho muito encarnado 
O outro muito amarelo, 
Este chamou Riachão 
Para cantar um martelo.

Riachão disse: eu não canto 
Com negro desconhecido, 
Porque pode ser escravo, 
E anda por aqui fugido 
Isso é dar cauda a nambu 
E entrada a negro enxerido.

Mesmo assim, a peleja têm início, e o diabo, personificado num catador negro, em plena vigência da escravidão no Brasil, apresenta suas “credenciais”:

N - Sou professor de matérias 
Que sábio não as conhece; 
A lei que dito no mundo, 
O próprio rei obedece 
Meus feitos são conhecidos, 
A fama se estende e cresce.

O que chama a atenção de Riachão:

Riachão disse consigo: 
- Esse negro é um danado! 
Esse saiu do Inferno, 
Pelo Demônio mandado, 
E para enganar-me veio 
Em um negro transformado!

(...)

VER POSTAGEM COMPLETA em "CORDEL ATEMPORAL"


segunda-feira, 10 de outubro de 2011

MESTRES DA CANTORIA

Leonardo Mota, Jacó Passarinho e Cego Aderaldo Ferreira de Araújo

Cego Aderaldo
Nome Artístico: Cego Aderaldo
Nome de Batismo: Aderaldo Ferreira de Araújo
Instrumento: Viola e rabeca (ver foto acima)
Nascimento: Crato, 24 de Junho de 1878
Falecimento: Fortaleza, 29 de Junho de 1967
Fonte: http://www.casadocantador.blogspot.com/


AUTO BIOGRAFIA


Eu venho de muito longe, desde o dia 24 de junho de 1878. Sou filho da cidade do Crato, onde nasci em modesta casa da Rua da Pedra Lavrada, atualmente Rua da Vala. Meu pai, Joaquim Rufino de Araújo, era alfaiate. Minha mãe, Maria Olímpia de Araújo, era de prendas domésticas, como devem ser todas as mulheres. Meu sofrimento, na vida, vem também de muito longe.
Quando eu tinha pouco mais de dois anos, perdi meu pai. Lá ouviram falar em homem que tem ataque de congestão? Aquele velho e honrado alfaiate, que largara Crato para viver em Quixadá, aonde viera buscar fortuna, fora agarrado pela desgraça. Que pode fazer um alfaiate mudo, surdo e aleijado? Desde esse momento a necessidade entrou em nossa casa. Entrou e se abancou. Eu, com idade de cinco anos, tive que trabalhar na casa do Sr. Miguel Clementino de Queiroz. .. E era com esse dinheiro que eu podia sustentar meu pai.
Tentei tudo na vida; queria virar logo homem, ganhar mais dinheiro para poder socorrerminha família. Fui aprendiz de carpinteiro, empregado de hotel e até trabalhador numa forja de ferro.
Era uma oficina modesta, e seu proprietário, mestre Antônio Henrique, ali me acolheu com simpatia, ensinando-me os rudimentos de mecânica. Mas, quando tudo parecia melhor encaminhado para mim, meu irmão mais novo – ah, o mano Raimundo, de treze anos de idade! – adoecer. Doença de matar. A medicina daquele tempo não teve força para ampará-lo... Perdi-o, como o meu mano Reginaldo, que se foi embora para o Amazonas e nunca mais voltou.
Fiquei sozinho com todos os encargos da família. E como pesavam! Como sofria meu pai, surdo, mudo e aleijado. Quantas e quantas vezes não ouvi mamãe chorar! Como doía aquele choro, na madrugada.
Quando aí tinha dezoito anos, meu pai morreu. Morte macia. Veio chegando devagarzinho até levar o melhor alfaiate e o melhor pai que conheci. Passamento deu-se a 10 de março de 1896 e no dia 25, do mesmo mês, aconteceu a desgraça que me tirou a luz do mundo. Como é que se conta a história de um moço que ficou cego porque tomou um copo d'agua? Que mal pode fazer um copo d'agua? Por que eu haveria de cegar por isso apenas? Eu havia pedido água para beber, na casa defronte á nossa.
Quando devolvia o copo com um "muito obrigado", senti aquela dor horrível, um arrocho querendo sair da minha cabeça. Meus olhos ficaram logo turvos. Apertavam-se, doíam, como se estivessem cheios de espinhos de cacto. - Meu Deus! – foi o que pude dizer. Até aí, ainda enxergava. Eu podia ver o mundo, as coisas. Sabia o que era uma manhã de sol, um dia de chuva, o chegar da noite... Mas depois disso, aí meu Deus! Meus olhos se fecharam para sempre.
Fiquei completamente cego. E aquela coisa morna, que pingou na minha mão, repetidas vezes, me disseram depois que era sangue. O sangue que descera de meus olhos estalados pelo destino.
É impossível descrever a vida de um cego dentro de casa, isolado do mundo, sabendo que perdeu para sempre o colorido das paisagens. Mas de tudo, o pior foi quando senti que devia sair á rua para pedir auxílio a um e a outro. Não, dizia comigo mesmo, um homem não deve pedir esmolas! Principalmente moço como eu... Ninguém aparecia em nossa casa. Era receio de que lhe fosse pedir ajuda. Cego, e pobre, achei-me quase faminto. Não digo só, porque minha mãe estava comigo. Eu implorava ao Nosso Senhor Jesus Cristo, São Francisco de Canindé... Queria um caminho, uma vereda que me levasse a um abrigo seguro! Uma noite sonhei cantando:


Oh! Santo de Canindé!
Que Deus te deu cinco chagas,
Fazei com que este povo
Para mim faça as pagas;
Uma sucedendo ás outras
Como o mar soltando vagas!


Acordei. Que fora aquilo? Como pudera decorar, fixar na mente aquela estrofe? Imaginei então que, naquela, estava a mão poderosa de Deus, a dizer-me que meu destino era cantar. Uma mocinha me ouviu narrar este sonho, deu me de presente um cavaquinho. Foi nas cordas desse cavaquinho que eu comecei a experimentar o meu então pobre talento de cantador:


Ah! Se o passado voltasse,
Todo cheio de ternura.
Eu ainda tinha visto,
Saía da vida escura...
Como o passado não volta
Aumenta minha tristeza:
Só conheço o abandono
Necessidade e pobreza.


Minha mãe, que me ouvia sempre, encantada, dizia-me: - Canta, filho... Um dia o pessoal te compreenderá! Entusiasmo de mãe, eu bem sabia. Mas o importante era aprender. Um homem que canta sabe se impor e assim eu pensava. E tinha certeza que um dia me libertaria das minhas trevas, tangendo as cordas de uma viola...
Saí pela redondeza, me oferecendo: - Querem que o ceguinho cante? Alguns diziam:
- Experimente... Se agradar... Eu sempre agradava. Ia recebendo então, em paga, milho, feijão, arroz, farinha, e até carne de bode. Quando enchia um saco de pano destas coisas que ganhava, voltava á nossa casa. Minha querida mãezinha exultava de satisfação: - Não lhe dizia, filho! Um dia... Não perca a esperança.
Um dia, que dia horrível! Eu tinha conseguido mais prendas. Vinha carregado de coisas; trazia até um carneiro, que recebera de presente. Tudo, graças ao meu canto, a tudo aquilo que eu improvisei, divertindo o povo. Mas nesse dia, a minha mãe morreu.


Viola de Cego Aderaldo - Museu Histórico de Quixadá
Agora estava só no mundo. Só é triste. E assim eu saí dali e comecei uma nova existência. Saí pelo mundo a cantar. Os meus pés pisaram a poeira de muitos caminhos! Percorri todas as serras, alcancei os chapadões, varei a caatinga, entrei no brejo... Por toda parte eu levava a minha voz, assim como um soldado leva a bandeira do seu batalhão, cumprindo um roteiro de cantorias. Aqui escrevo, e juro que é verdade.
 Fonte: http://www.casadocantador.blogspot.com/


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domingo, 9 de outubro de 2011

SANDÁLIA DE LAMPIÃO

 

Artesão cearense leva couro do cangaço à passarela da SPFW

Em 1938, Lampião pediu uma sandália ao pai de Espedito Seleiro. Muitos anos depois, ele transformou o molde em tendência fashion

Daniel Aderaldo, iG Ceará | 09/10/2011 07:00 (http://www.ig.com.br/)


Quando Virgulino Ferreira, de alcunha Lampião – o mais famoso e temido cangaceiro do sertão nordestino –, desenhou o molde de uma sandália com sola retangular, para confundir os rastros deixados pelo caminho, ele não sabia, mas estava criando um estilo. Hoje, “a sandália do Lampião” é a marca do artesão cearense Espedito Veloso de Carvalho, de 72 anos, conhecido apenas como Espedito Seleiro. Ele parou de vestir vaqueiros e agora se dedica à arte de trabalhar em couro, fazendo calçados e assessórios.


Foto: Divulgação/Secretaria de Cultura do Ceará
Espedito Veloso de Carvalho, de 72 anos: molde direto de Lampião



Os “croquis” de Lampião, guardados pelo pai de Espedito Seleiro, ainda hoje são inspiração para o trabalho do artesão cearense. O rei do cangaço gostava de ornamentar as vestimentas usadas por ele e por seu bando. Um dia, teve a ideia de fazer um calçado com um solado com as partes da frente e de trás idênticas. Servia para confundir e despistar a polícia que sempre estava no seu encalço. Em 1938, quando o grupo de cangaceiros liderado por Lampião esteve, como tantas vezes, na região do Cariri, pediu para um de seus "cabras" encomendar a um conhecido artesão local novas peças. Mandou o desenho de como deveriam ser os calçados.
“Meu pai, o Raimundo Seleiro, estava fazendo uma sela no alpendre de casa, aí chegou um homem e perguntou se ele poderia fazer umas alpargatas de couro com o mesmo material da sela para cavalo. Ele explicou que não era bom nisso, que trabalhava fazendo gibão, chicote, chapéu e sela para vaqueiro, mas aceitou. Depois, quando descobriu que era para o coronel Virgulino, ficou todo se tremendo e nem quis cobrar”, conta, rindo, o mestre no ofício.



Sandálias de Maria Bonita

Mais tarde, Espedito Seleiro, o quarto da geração de mestres em couro, ainda aos oito anos aprendeu com o pai o ofício. “Cada lapada era uma lição. Foi a melhor coisa do mundo pra mim, porque eu aprendi ligeiro”, relembra. A quarta geração de seleiros vive na pequena Nova Olinda, no Cariri cearense, a 552 quilômetros de Fortaleza, mas seu trabalho já compôs coleção de grife internacional, foi apresentado em desfile na São Paulo Fashion Week e exportado para vários países ao redor do mundo.

A sandália do Lampião foi só o começo na guinada que Espedito deu na carreira, forçado pela necessidade. “Meu pai falava que a dor ensina o cabra a gemer. Quando estava acabando, diminuindo o trabalho para os vaqueiros, eu fui pensando 'puxa vida, a família grande, crescendo, pai faleceu...' Eu tinha que arrumar o feijão para dar a esse povo todo. Perdi muita noite de sono desenhando peça. Deus me deu uma estrela e comecei a fazer bolsa e sandália”, conta ele. “Quando o dia amanhecia eu ia fazer. No comércio ia vendo o que o povo gostava mais, o que se admirava mais. Ia prestando atenção. Quando fiz a sandália do Lampião e ela ficou famosa, imediatamente fiz a da Maria Bonita”.

LEIA MATÉRIA COMPLETA AQUI -  http://www.ig.com.br/