A
LITERATURA DE CORDEL NO BRASIL
VAI MUITO BEM, OBRIGADO!
Célia
Navarro Flores
Universidade
Federal de Sergipe
O crítico literário Díaz-Maroto, em seu livro Panorama de la Literatura de Cordel española,
de 2000, diz que a literatura de cordel desapareceu na Espanha por volta dos
anos 70 e, em Portugal, por volta dos anos 80, e que, "no Brasil continua
relativamente viva nos noventa; assim é possível que conheça o século XXI".
Felizmente, nosso cordel chegou ao século XXI e com muita vitalidade, graças à
iniciativa de cordelistas que não apenas produzem cordel, mas que lutam por sua
sobrevivência.
Nesse sentido, devemos parabenizar a iniciativa da criação
da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), a qual congrega
cordelistas de todas as partes do Brasil. Dirigida pelo simpaticíssimo mestre
Gonçalo Ferreira, no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, a academia
comercializa cordéis e mantém um vasto acervo, parte do qual já está
catalogado.
Outro fator que contribui para a divulgação e sobrevivência
de nosso cordel é a mudança na perspectiva da produção cordelística no Brasil,
que se observa atualmente. Embora ainda existam os poetas de corte tradicional,
ou seja, aqueles oriundos do campo, que produzem um cordel bastante popular, hoje
há uma nova geração de cordelistas: homens letrados, que além do cordel,
exercem outras atividades como o jornalismo, a propaganda etc. Os pontos de
vendas dessas obras também se diversificaram. No nordeste, ainda são
encontrados os folhetos pendurados em barbantes, vendidos em praças e feiras
populares. Entretanto, hoje, eles podem ser adquiridos também nas livrarias
locais ou nas virtuais. Com essa nova geração de cordelistas, o formato dos
folhetos também mudou. Hoje, ao lado dos folhetos tradicionais, encontram-se
cordéis em edições de luxo, profusamente ilustrados, em formatos maiores. Outra
mudança interessante foi com relação à função dos cordéis e seu público alvo.
Se antes os cordéis tinham apenas a função de entretenimento e eram destinados
ao público em geral ‑ muitas vezes, pouco letrado ‑, hoje, além dessas
atribuições, ele passou a ser pensado e utilizado como recurso didático nas
escolas brasileiras, destinado a um público infanto-juvenil, o que levou os
cordelistas a adaptar grande quantidade de obras literárias brasileiras e
estrangeiras para a literatura de cordel, como, por exemplo: Memórias póstumas de Brás Cubas e O alienista, do escritor brasileiro
Machado de Assis, A dama das camélias,
de Alexandre Dumas Filho, As aventuras de
Robson Crusoé, de Defoe, Os
miseráveis, de Vitor Hugo, Dom
Quixote, de Cervantes, entre muitos outros.
Ao lado da criação da ABLC e da mudança na perspectiva de
produção do cordel, há um terceiro elemento que pode ser considerado um
propagador da literatura cordelística: o pesquisador; a publicação de artigos e
a apresentação de comunicações em congressos sobre tema relacionado ao cordel
colaboram para sua valorização. Em algumas universidades brasileiras já podemos
encontrar estudiosos do tema.
A Península Ibérica pode até não produzir mais literatura de
cordel, mas deve-se reconhecer que há um esforço para preservação dos folhetos
existentes e para colocar esse acervo à disposição de pesquisadores,
principalmente na Espanha. No Brasil, ainda há grande dificuldade em conseguir
os cordéis. A ABLC, por exemplo, não disponibiliza ainda o catálogo de seu
acervo, tampouco as bibliotecas públicas das cidades nordestinas, nas quais,
geralmente, há uma seção de cordéis. Um acervo digitalizado, entretanto, pode
ser encontrado no site do Centro
Nacional de Folclore e Cultura Popular, no Rio de Janeiro.
Meu interesse pelo cordel surgiu, inicialmente, quando, já
morando em Aracaju, deparei-me com alguns cordéis com tema cavalheiresco, com
personagens da história de Carlos Magno e os doze pares de França. Pareceu-me
inacreditável que tais personagens sobrevivessem no Brasil. Posteriormente,
encontrei dois cordéis sobre o Quixote,
de Cervantes, livro que foi meu objeto de estudo no mestrado e doutorado. Porém,
meu interesse definitivo pelo cordel foi despertado pela leitura do Romance d'A pedra do Reino e o príncipe do
sangue do vai-e-volta, de Ariano Suassuna. Em 2010, iniciei um projeto
sobre Cervantes na obra de Suassuna e li muito sobre o escritor paraibano e sua
obra. Em meados do ano passado, iniciei uma pesquisa sobre o Quixote na literatura popular. Minha
intenção é estudar essa obra na literatura de cordel espanhola e na brasileira.
Entretanto, como 2013 é o ano em que se comemoram os 400 anos das Novelas Exemplares, de Cervantes, decidi
ampliar minha pesquisa: além do Quixote, resolvi
investigar também as Novelas Exemplares
na literatura popular.
O livro El ingenioso
hidalgo Don Quijote de La Mancha, mais conhecido no Brasil como Dom Quixote, foi escrito por Cervantes
em duas partes: a primeira publicada em 1605 e a segunda em 1615. Na época, a
obra foi considerada cômica e seus personagens obtiveram grande sucesso, tanto
que nas festas mascaradas apareciam pessoas fantasiadas de Dom Quixote e Sancho
Pança, os protagonistas da obra. Temos notícias de um primeiro "pliego suelto"
(como se chamavam os cordéis na época) datado de 1657, de autor anônimo, no qual
dialogam Dom Quixote e Sancho.
No Brasil, em 2005, em comemoração aos 400 anos da primeira
parte do Quixote, foram publicados
dois cordéis sobre a obra: As aventuras de Dom Quixote em versos
de cordel,
de Klévison Viana, ilustrado pelo próprio autor, e Dom Quixote em cordel, de J. Borges, com ilustrações de Jô Oliveira.
Trata-se de duas edições comemorativas, de luxo, em formato grande. Ainda não
nos debruçamos sobre essas obras para uma análise mais detida; por isso, por
enquanto, vamos nos limitar a tecer alguns comentários sobre as adaptações das Novelas exemplares, para as quais
dedicamos dois artigos, que ainda estão no prelo.
As Novelas exemplares
foram escritas por Cervantes em 1613. Trata-se de doze contos, os quais foram
publicados integralmente, no Brasil, apenas em 2012, pela editora Arte e Letra.
Todas as edições brasileiras anteriores são incompletas. Assim como o Quixote, alguns contos dessa obra de
Cervantes foram adaptados, na Espanha, para a literatura de cordel, isto é,
para ser vendido em "pliegos sueltos" (expressão que poderíamos
traduzir por "folhas soltas" ou "folhas avulsas"). Encontrei
uma referência a três contos publicados no século XIX: A espanhola inglesa (1847), A
ciganinha (1863) e A senhora Cornélia
(1863).
No Brasil, deparei-me com dois contos das Novelas exemplares adaptados para o
cordel: Rodolfo e Leocádia ou a força do
sangue de Arievaldo Viana e A
espanhola inglesa, de Manoel Monteiro. O primeiro foi editado por ocasião
do IX Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol, em 2001, e reeditado em 2006,
com o título A força do sangue e uma
capa bem mais elaborada para compor o kit
do projeto "Acorda Cordel na Escola". O segundo foi escrito a pedido
da Editora Scipione para ser utilizado como material paradidático.
Infelizmente, embora tenhamos entrado em contato diversas vezes com a editora,
ela não nos facilitou o guia didático do cordel A espanhola inglesa. Curiosamente, as duas adaptações têm pontos em
comum. O fato de serem pensados para um público-alvo letrado ― A força do sangue para os professores de espanhol que participaram
do congresso e A espanhola inglesa
para a sala de aula ―
os dois cordéis apresentam uma preocupação com a língua portuguesa, sem, no
entanto perder seu sabor popular. O cordel A
espanhola inglesa é amplamente ilustrado por um artista de renome como Jô
Oliveira. São 18 ilustrações, além da capa, sendo que muitas delas são duas
cenas na mesma página. Esse recurso torna o folheto bastante atrativo para seu
público-alvo: os jovens estudantes.
Quando falamos em adaptação, sempre há certo preconceito.
Isso se nota mais facilmente quando se trata da adaptação de um romance para o
cinema. É comum ouvirmos o comentário: "o livro é melhor".
Entretanto, a adaptação, para ser boa, não tem necessariamente de ser fiel ao
original, porque toda adaptação é uma recriação e é exatamente nesse processo
de recriação que podemos avaliar a criatividade e a competência do artista que
adapta. No caso das adaptações para o cordel, devemos levar em consideração o
fato de que o cordelista tem de realizar um esforço de condensação das obras
originais, pois os contos de Cervantes adaptados são bastante longos. O poeta
deverá selecionar os momentos da história que parecem mais significativos para
seu entendimento ou mesmo alterar partes do relato, sem, no entanto,
descaracterizar totalmente a história contada. São exatamente nos momentos de
divergência entre o texto adaptado e o original que o adaptador imprime suas
marcas pessoais, as quais muitas vezes nos levam a intuir uma possível
interpretação do original. Isso pode ser notado no caso dos cordéis em questão.
Para ilustrar, vou citar dois exemplos. Arievaldo Viana modifica o horário de
um determinado acontecimento: no original de Cervantes, a família volta de um
passeio ao rio às 11 da noite; no cordel, a família volta do passeio no final
da tarde: "A tarde se derramava/ Nos montes do ocidente/ A lua já
despontava/ Taful e resplandecente/ Iluminando a passagem/ Dessa família
inocente" (p. 02). Na Espanha, os dias são muito longos no verão, até às
22 horas é dia, por isso é natural que uma família volte de um piquenique à
beira de um rio às 23 horas. No Brasil, entretanto, e principalmente no
Nordeste, anoitece muito cedo, por volta das 18 horas; portanto, é muito mais
verossímil que uma família de bem retorne de um passeio no final da tarde. Esse
exemplo nos mostra como Arievaldo Viana procura adaptar (não sabemos se
conscientemente) o tempo, levando em consideração o contexto brasileiro.
O segundo exemplo retiro do cordel de Manoel Monteiro. Ao
contar que a menina Isabel foi raptada na Espanha, aos sete anos, pelos
corsários ingleses, Manoel Monteiro faz um comentário que não tem nada a ver
com o livro de Cervantes: "Grande potência é assim/ No passado e no
presente/ Rouba, mata e escraviza/ Com cara de boa gente/ A história se repete/
No "reino" de Bush e "Beth"/ Com o mesmo filme indecente"
(p. 6). Entretanto, com esse comentário, Manoel Monteiro nos deixa entrever sua
crítica pessoal às grandes potências atuais, a qual, provavelmente, é
compartilhada por muitos dos leitores do cordel.
Particularmente, eu não saberia avaliar a eficácia da
utilização dos cordéis em sala de aula, mas, como professora de literatura, afirmo
que a adaptação das obras literárias para o cordel assume duas funções
importantes: por um lado, divulga a obra literária adaptada;
por outro, colabora para a sobrevivência da literatura cordelística.
Respondendo ao comentário do crítico espanhol Díaz-Maroto, o qual parece
duvidar da sobrevivência do cordel no Brasil do século XXI, podemos dizer:
"Sim, a literatura de cordel chegou ao século XXI no Brasil. Ela vai muito
bem, obrigado".