MISSA DO
VAQUEIRO EM CARIDADE, PREPARAÇÃO DE PAMONHA E MELADINHA DO VELHO JEITO
SERTANEJO E ESCALADA AO TOPO DO SERROTE DOS TRÊS IRMÃOS
Texto: Arievaldo Vianna
Fotos: Autemar
Considero-me um escritor sintonizado com a nova realidade do mercado
editorial, com as modernas técnicas de impressão e divulgação virtual dos
textos (e-book, internet), com os eventos literários que acontecem Brasil
afora, mas não quero esquecer o caminho da cacimba dos saberes, da fonte
inesgotável, do manancial sagrado que sempre alimentou a minha imaginação, que
em algum de meus folhetos aparece com o nome de “Fonte das Coronhas”, um lugar
real, situado no sopé do serrote dos Três Irmãos, na divisa dos municípios de
Canindé, Quixeramobim e Quixadá. Foi ali que eu nasci e era ali, naquela fonte,
que meu pai colhia água potável e a conduzia no lombo de dois jumentos,
cantando folhetos de cordel em voz alta, para encurtar o nosso caminho.
No último final de semana resolvi saciar minha sede nas velhas
cacimbas de saberes sertanejos. Primeiro fui à tradicional Missa do Vaqueiro,
no município de Caridade-CE, na abertura dos festejos de Santo Antônio,
padroeiro do município. Para ali me desloquei na companhia dos poetas Geraldo
Amâncio e Zé Vicente, que abrilhantaram a celebração do Padre Tula, cantando um
mote inspirado no Evangelho: "Simão Pedro, tu me amas? / Apascenta o meu
rebanho", pelo que foram largamente aplaudidos.
No sábado desloquei-me para a comunidade de Sabonete-Macaóca,
município de Madalena, onde me empenhei na mistura de uma gostosa
"meladinha", bebida feita a base de cachaça, limão e mel de abelha,
muito popular na região. Em outros lugares leva o nome de "cachimbo".
A mistura tem que ser feita na medida exata. Meio copo de cachaça, duas
colheres de mel e uma banda de limão. Depois de mexer e deixar descansar por
alguns minutos, torna-se um néctar tão apreciado quanto a "ambrosia"
dos deuses do Olimpo. Não pode é se exceder, porque além de gostosa, a bebida
pega ligeiro e bota o cabra para dormir mais cedo. Nesse ínterim, recebi a
visita do primo Francisco Vianna, o popular Chico Pipa, que me trouxe algumas
espigas de milho verde, nata e um saco de frutos de cajá. Com a sua habilidade
de sertanejo curioso, foi quem nos ensinou a fazer a casaca das pamonhas usando
as palhas do próprio milho, do jeitinho que minha avó e minha mãe faziam. Ele
sabe dois modelos então aproveitamos a diferença para produzir pamonhas doces e
salgadas, temperadas com nata, queijo de coalho e algumas pitadas de sal ou
açúcar, conforme o gosto de cada um.
Esticamos a prosa e a baladeira tarde afora, ouvindo algumas cantigas
juninas de Luiz Gonzaga e quando me dei conta já havia passado da bitola,
bebendo além da conta. Nem me lembrava do compromisso assumido com o mano
Autemar e os primos Erasmo e Renê Sousa, para escalar a serra dos Três Irmãos,
um sonho remoto acalentado desde a infância. Prejudicado pela ressaca, tive de
suar um bocado na subida da montanha, mas com paciência e perseverança chegamos
ao topo, de onde vislumbramos uma das mais belas paisagens que o sertão
cearense pode oferecer.
EXPEDIÇÃO OURO PRETO | TRÊS IRMÃOS
Três monólitos de pedra
De assombrosa semelhança
Ocultaram os três castelos
Dos quais só resta a lembrança
No verso dos trovadores
Do reino da Esperança.
(O Marco Cibernético do Reino dos Três Monólitos)
Desde criança eu tinha o desejo de acompanhar um grupo de pessoas que
escalava a serra dos Três Irmãos, situada ao nascente da fazenda Ouro Preto, porém
nunca obtive autorização dos meus familiares. Nessa época, meu pai ia sempre ao
sopé do primeiro serrote, buscar água no açude dos Calixtos ou na Fonte das
Coronhas, um olho d'água perene, de rara beleza, que também fica nas
imediações.
O vento soprava uma bela sinfonia nas palhas das carnaubeiras,
mangueiras frondosas davam uma boa sombra e coqueiros espigados balançavam sua
copa ao sabor do vento, nas imediações do açude onde íamos sempre em busca do
precioso líquido. Eu aproveitava essas ocasiões para tomar banho, embora não
soubesse nadar. Desde menino eu sempre fui astucioso como o Cancão de Fogo e
afoito como Oliveiros, um dos Doze Pares de França, heróis de folhetos que meu
pai cantava em voz alta pelas estradas sertanejas. Algumas vezes eu conseguia
burlar o olhar sempre atento e vigilante de meu pai. Mas de pouco adiantava...
Ele nos proibia o banho no açude, caso não estivesse presente. Subir a velha
trilha, nem pensar. Nos períodos de estiagem dava para observar bem os
vestígios de uma velha vereda. Mas papai não desgrudava o olho e até ameaçava
de nos dar umas chineladas - em mim e no mano Itamar, meu companheiro predileto
de travessuras, caso teimássemos em desobedecê-lo.
Somente agora, prestes a completar 50 anos de idade, é que pude realizar
esse velho desejo da infância. Acabo de chegar de uma expedição aos confins do
sertão onde fui nascido e criado. Esse pedaço de chão fica na divisa dos
municípios de Madalena, Canindé e Choró Limão. Antigamente, Madalena pertencia
a Quixeramobim e Choró desmembrou-se do território de Quixadá. Escalamos o primeiro serrote do conglomerado
chamado Três Irmãos, cuja altitude ultrapassa 550 metros. É uma tradição antiga
fazer essa trilha e, dentre outras coisas, celebrar um terço no dia de
Pentecoste. A data foi escolhida pelo saudoso primo José Rodrigues de Sousa, o
Zé Miguel.
Na verdade, a tradição vem desde a década de 1950, quando a família
Calixto Cavalcante e alguns vizinhos resolveram erguer um cruzeiro no topo da
primeira montanha, a que fica do lado do poente. Um dos responsáveis por essa
empreitada foi Raimundo Calixto, que depois se tornaria frade franciscano. Após
ingressar na Ordem, adotou o nome de Frei Paulo e foi viver no Pará, como
missionário de uma tribo indígena. Diz a tradição local que ele próprio se
encarregou de transportar os tijolos até o local onde foi erguido o cruzeiro,
que é de difícil acesso, com lances bem íngremes, difíceis de escalar com as
mãos ocupadas.
Casa do Ouro Preto, construída por meus avós paternos
Manoel Barbosa Lima e Alzira Sousa.
Às vezes eu não entendo como é que a pessoa nascida e criada num
paraíso como esse resolve se mudar para a cidade grande, com o intuito de
arranjar emprego e educar os filhos. Nessa terra em que doutores se formam com
o intuito de dominar e explorar o semelhante e políticos se ocupam em sabotar e
subtrair as riquezas da nação, eu preferia viver nessas locas de pedras, tal e
qual um preá ou um mocó, sem rádio e sem notícias de terras civilizadas. O
problema é que nessa mesmíssima década de 1950, quando foi erguido o tal
cruzeiro, o governo brasileiro permitiu um teste nuclear nessa cordilheira,
segundo afirma o Padre Richard Cornwall, em seu livro AMARGOR, ao qual nos
reportamos em SERTÃO EM DESENCANTO - I VOLUME DE MEMÓRIAS. Ou seja, se correr o
bicho pega, se ficar o bicho come!
O sacerdote encarregado de benzer o cruzeiro foi o então vigário de
Choró-Limão, Padre José Bezerra do Vale, natural de Boa Viagem, que assumira
essa paróquia em 1952, segundo informa o historiador Eliel Rafael da Silva
Junior, do blog História de Boa Viagem.* Segundo testemunhas, o Padre Zé
Bezerra escalou o serrote montado num jumento. Uma pessoa que também subira
levando uma quartinha d'água para o sacerdote saciar a sede e aspergir água
sobre o cruzeiro acabou quebrando acidentalmente a dita moringa, sendo obrigado
a descer em busca de outra vasilha com água.
Tempos depois, uma pessoa da família Calixto (Irmã Tereza) que fora
para o Rio Grande do Norte com o intuito de ordenar-se freira, converteu-se ao
protestantismo e retornou aos Três Irmãos com o firme propósito de destruir o
cruzeiro, o que fez, segundo dizem, com a ajuda de um irmão. Para tanto
utilizaram foice, machado e até querosene, para transformá-lo em cinzas.
Estivemos ontem no local e ainda encontramos tijolos espalhados e pedaços do
velho cruzeiro destruído.
Alguns membros da caravana que escalou a velha trilha no dia de ontem
(04 de junho de 2017) mostraram-se interessados na restauração do cruzeiro, o
que talvez ocorra no ano que vem.
* Sobre o Padre José Bezerra, ver:
http://www.historiadeboaviagem.com.br/pe-jose-bezerra-do-vale-filho/
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