LIVRO ÚNICO DE UM GRANDE POETA
Não vai aqui um artigo de pretensa crítica literária. Nossa intenção é apresentar aos leitores do blog o livro “Carne e Alma”, do poeta Rogaciano Leite, um trabalho digno de edição moderna por alguém que se ocupe de nossas letras. Tenho em mãos a edição de 1971, com prefácio de Luiz da Câmara Cascudo. A publicação original, entretanto, é de 1950 (Irmãos Pongetti Editores, Rio de Janeiro). O livro é dividido em três partes: “Poemas Sertanejos”, “Versos a Esmo” e “Lianas Amazônicas”.
Na primeira parte, Rogaciano extravasa o estro do poeta nordestino nascido na fazenda Cacimba Nova, município de São José do Egito, no dia 1º de julho de 1920. Foi a sua fase de repentista nato que já na adolescência travava desafios de viola com os maiores cantadores da região. O poema que abre o livro é endereçado aos críticos, vazado em redondilha maior e no molde do quadrão, um dos gêneros preferidos dos cantadores:
“Senhores críticos, basta!
Deixai-me passar sem pejo,
Que o trovador sertanejo
Vai seu ‘pinho’ dedilhar…
Eu sou da terra onde as almas
São todas de cantadores:
– Sou do Pajeú das Flores –
Tenho razão de cantar!”
No tanger dos versos, o poeta já revela traços de sua bagagem cultural, adquirida tanto nos livros quanto na sua vida itinerante, pois Rogaciano foi sempre um nômade, seja como poeta, seja como conferencista, escritor e jornalista consagrado que conheceu o Brasil de ponta a ponta; e cita – desculpando-se com modéstia – autores como Lins do Rêgo, Álvaro Lins, Carpeaux, Milliet… A “poesia matuta” de Rogaciano é uma espécie de criação que mais tarde encontrará ressonância nos trabalhos de outros poetas nordestinos, da chamada vertente popular, a exemplo de Patativa do Assaré, talvez um nome bem mais conhecido nos dias de hoje. Em seu poema “Cante Lá, que Eu Canto Cá”, Patativa protesta:
“Poeta, cantô da rua,
Que na cidade nasceu,
Cante a cidade que é sua,
Que eu canto o sertão que é meu”,
reproduzindo nitidamente o que muito antes havia dito Rogaciano:
“Eles cantam suas praias,
Palácios e porcelana,
Eu canto a roça, a cabana,
Canto o sertão… que ele é meu”.
Observa-se com clareza que Rogaciano puxou com maestria um filão que até agora é seguido por uma massa de poetas, alguns deles nem sempre dignos de figurar nessa lista. Em outras composições, ainda na fase “matuta”, Rogaciano Leite evoca temas, cenários, costumes, amor telúrico e saudades, como no “Poema de minha terra”, em que descreve com precisão a casa onde ele nasceu:
“É um casarão de biqueiras,
De esteios, de cumeeiras,
De travessões e soleiras,
Linha, ripa e caibraria”.
Pássaros e árvores típicos do Nordeste, noites de lua, a paisagem da fazenda, o vaqueiro, paixões inocentes, brincadeiras pueris e recordações felizes desfilam na primeira parte do seu livro, à qual comparece também a cigarra boêmia imortalizada por Olegário Mariano:
“Tu és a cigarra-moça
E eu sou o homem-cigarra!
Vamos viver nesta farra,
Vamos morrer de cantar!”
Nota-se, todavia, que mesmo nesse estilo de fazer versos, Rogaciano transportou o universal para o coloquial, numa inversão prodigiosa em que conseguiu transmitir sentimentos sem escorregar no pieguismo. “Rogaciano Leite independe do tempo e do futuro”, assim resume Câmara Cascudo o perfil do poeta.
Já em “Versos a Esmo”, segunda parte do livro, ergue-se o poeta erudito, condoreiro, polimorfo, que cultiva o verso em váriado tamanho, da redondilha ao alexandrino bem acabado, ordenando estrofes também as mais diversas. É no meio do livro que o leitor percebe a comunhão de estros entre Rogaciano e seu antecessor distante, Castro Alves, para quem foi escrito o poema “Acorda, Castro Alves!”, no centenário deste. Os versos são cinzelados em décimas bem ao estilo do poeta baiano:
“Condor, que é de tuas asas
Que os astros arremessaram?
As plumas da águia soberba
Que no infinito brilharam?
Que é do teu grito altaneiro
Que atravessava o nevoeiro
Pra ressoar junto a Deus?
Renasce, Fênix altiva!
Que outra senzala aflitiva
Precisa dos cantos teus!”
É também nesta altura da obra, que encontramos os sonetos de Rogaciano, burilados segundo a rigorosa exigência clássica da arte de Petrarca e de Camões. “À minhã mãe”, "Inversão de racismo”, “Judeu errante” e “Ilusão do suicídio” são alguns dos sonetos deixados pelo poeta. E ainda o mais conhecido soneto de sua autoria, “Se voltares”, que encerra com um conceito de grandeza bíblica:
“Para os que voltam, pelo amor vencidos,
A vingança maior dos ofendidos
É saber abraçar os humilhados”.
Ainda nesta segunda parte do livro o poeta dedica-se à musa de sua inspiração, Mazé, como no soneto “Súplica” e em vários poemas que a têm como motivação recorrente. Outra composição magistral de Rogaciano é o épico “Os expedicionários cearenses”, bem como “Os trabalhadores”, poema que foi depois traduzido em várias línguas e gravado pelo autor em monumento na Praça de Moscou, durante sua temporada pela Europa.
Na terceira e última parte do livro, deominada “Lianas Amazônicas”, Rogaciano mergulha nos segredos, mistérios e lendas da Amazônia, traduzindo em versos toda a grandeza e opulência das águas e florestas daquela região. E o mesmo menestrel do sertão árido vai agora cantar os igarapés e folhagens da selva imensa, onde envolve ainda todo seu amor, em poemas desta vez intitulados “Amor sobre as águas”, “Crepúsculo amazônico” dentre outros…
Foi nesse período, que ele, como repórter itinerante, escreveu a série de reportagens intitulada “Na fronteira do fim do mundo”, que lhe valeu o “Prêmio Esso” em 1965. Mas Rogaciano parece fazer questão de concluir seu livro de poesia voltando-se de novo para o Nordeste e sua problemática. Em versos de uma dramaticidade ainda gritante e atual, ele denuncia, nas derradeiras páginas de seu livro, a miséria e o abandono reinantes no bairro Pirambu, em Fortaleza, assim como denuncia o descaso com as vítimas da seca no Ceará, no poema-reportagem intitulado “Os flagelados”, publicado pela primeira vez na “Gazeta de Notícias”, edição de 10 de maio de 1956:
“Exauriram-se as fontes, tudo é seco; os rios
Com o leito esturricado, ao longo dos baixios,
Eroscam-se no chão, num morno caracol;
As árvores de pé, desnudas como espetos,
Apontam para o céu num gesto de esqueletos
Condenados por Deus, queimados pelo sol”.
Rogaciano Leite morreu com apenas 49 anos, no dia 7 de outubro de 1969, no Rio de Janeiro. Seu corpo foi trazido para Fortaleza, cidade onde viveu boa parte de sua vida e ali bacharelou-se em Letras Clássicas e onde também realizou o primeiro Congresso de Cantadores no Teatro José de Alencar. Homem de vários instrumentos, jamais desprezou suas origens e foi o responsável por introduzir a cantoria de viola nos salões sociais, tanto de Fortaleza como do Rio de Janeiro, revelando talentos como o do Cego Aderaldo. Como compositor, deixou um clássico da MPB, a música “Cabelos cor de prata”, gravada por Silvio Caldas. Os trabalhos contidos em seu livro são datados de vários lugares por aí afora, prova mais uma vez da vida nômade de Rogaciano, um artista múltiplo de inspiração plena. Retomando o primeiro poema do livro “Carne e Alma”, é mesmo ele quem, com sua modéstia exemplar, adverte:
“Finalmente, este volume
De tão fraca ressonância
Tanto tem riso da infância
Quanto guerra, fome e amor…
Numa palavra, senhores,
O livro que vos entrego
É como saco de cego:
– Tem feijão de toda cor!...”
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Poeta Rogaciano Leite
Na ocasião dessa postagem no blog VILA CAMPOS, postei o seguinte comentário:
"Um poeta no sentido lato da expressão. Telúrico e universal ao mesmo tempo, sertanejo e cosmopolita, com um pé nos carrascais do agreste que ele tanto palmilhou e outro nos salões engalanados dos teatros. Dizem que fazia sonetos de improviso, o que não duvido. Dimas Batista, nos seus momentos mais inspirados, também fazia o mesmo." (Cancão de Fogo) |