sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

CONTISTAS DO CEARÁ




EMBOSCADA

Gustavo Barroso

A Mello Morais Filho

Mais tarde, regressava com sua força, ao lado duma moriçaba, quando ao enfrentar uma moita, no lugar Mangabeira, meia légua distante de Lavras, uma bala, partida do mato, o derrubou do cavalo, instantaneamente morto!  (J. Brígido: O Ceará)

                 Apesar dos seus melhores amigos o haverem prevenido com provas cabais que o Inácio de Albuquerque pusera assassinos de tocaia no percurso que tinha que fazer de Umari ao Iguatu, o Estevão de Matos não recuou da resolução que tomara. Ir àquela cidade sertaneja a cavalo, varando o sertão inóspito, representava para ele um compromisso de honra. Havia prometido à firma Ricarte Irmãos saldar as suas dívidas no dia 30 do mês. Os seus negócios de gado em Pedras de Fogo tinham dado lucro suficiente. Possuía o dinheiro necessário ao pagamento das letras que os Ricartes guardavam. Eles lhe haviam emprestado aquelas somas para salvá-lo duma situação aflitiva nos seus negócios. Pusera-os em dia, só lhe restava agora desobrigar-se da promessa. Não haveria forças humanas capazes de o demover. Nem mesmo aceitava o alvitre de mandar pagar por outro. Iria em pessoa, para mostrar à firma que era homem de palavra e para mostrar ao Inácio que não lhe temia os cabras traiçoeiros e a vingança mesquinha.



                A mulher, em lágrimas, rojou-se-lhe aos pés; os filhos pequenos suplicaram-lhe em vão. Marcou o dia da partida. Deu ordens severas para milhar bem o cavalo ruço e preparar um mocó de sustância. Destemeroso, honesto e franco não se arreceava de outro homem. É verdade que dum tiro certeiro de espera ninguém se livrava. Mas ele “sabia onde moravam os mocós”. Era vaqueiro velho, cheio de mocambos, conhecedor de negaças. Andara uns tempos atrás de cangaceiros, guiando destacamentos. Tinha plena confiança em si.

                No dia marcado seguiu viagem. Partiu de manhã, mas não se embrenhou logo nas catingas. Algum esculca o havia de ter espiado e logo corrido a levar a nova aos assalariados das emboscadas. Parou fora da vila, em casa de Matias Florindo, escondeu o ruço na casa de farinha e ali se ficou a parolar com o amigo até a boca da noite. Com o escuro foi embora, levando o animal devagar, a clavina de repetição passada sobre o arção do ginete. Deixou a estrada e meteu-se pelo mato, guiando-se pelas estrelas faiscantes, que avistava por entre a ramaria rala dos paus-brancos. Tinha medo da lua. Nessa noite ela ainda se levantava tarde. Mas ao outro dia nasceria mais cedo e ao outro mais cedo ainda.

                Quando ela clareou o matagal, madrugava já. Distanciou-se mais da estrada que seguia paralelamente, avistando-a, às vezes, por entre os troncos lisos. Num fechado de rompe-gibão, mandacarus e umburanas, onde o pasto verde e suculento cobria o chão, tirou os arreios do cavalo e amarrou-o pelo cabresto a um tronco. Depois, fazendo da carona manta e da sela travesseiro, adormeceu ao pé das árvores.

                O sol nascia.

                Assim viajou mais uma noite e dormiu mais um dia. Na terceira noite de viagem, a lua veio muito cedo. Aquilo contrariava-lhe os planos. Além disso, a catinga naqueles lugares era tão espessa, tão eivada de espinhais, tão acidentado o terreno, de barrocas, pedras e fojos naturais, que só teve um remédio, depois de experimentar o trânsito do mato em várias direções, que foi ganhar a estrada larga e seguir por ela, lento, de ouvido à escuta e olhos à espreita.

                O luar claro escorria pelos troncos alvos e fazia das resinas transparentes lágrimas de luz. Altas, imóveis, as frondes das árvores destacavam-se na claridade do céu. Mães-da-lua gargalhavam ao longe, muito ao longe.

                Os olhos argutos do Estevão notaram que numa gameleira grande, entre dois grossos ramos em forquilha, as folhas eram tão chegadas que por entre elas não se coava o luar. Parou o cavalo e apontou a clavina para aquele escuro da folhagem, na desconfiança instintiva em que vinha de homens atocaiando-o nas moitas e das copas das árvores. O tiro partiu, ecoando nos pedregais. E um vulto de homem tombou mole, lá do alto, a escabujar na estrada branca.

                Do alto de outra árvore mais adiante veio uma voz de homem, dura e cortante no silêncio daquela solidão.

                – Mataste, Chico?



                O Estevão estremeceu. A emboscada era de dois. Que havia de fazer? Se falasse, o salafrário conhecer-lhe-ia a voz e fugiria a prevenir o amo vil da morte do companheiro. Se não falasse, o miserável desconfiaria, havia de tentar espiar o que se passara e iria dar o alarma à chusma acanalhada dos bandidos do Inácio, ou do seu esconderijo talvez o prostrasse com um tiro bem dado. Essa hesitação durou um instante. A sua grande calma ante os perigos salvou-o, ajudada da fertilidade do seu espírito aguçado e todo sutilezas. Soltou um assobio arrastado e discreto, chamando o outro:

                – Fô – fi – i – i – ô – ô – ô…

                Ligeiro, apeou-se do ruço e ficou de pé, de clavina aperrada, no meio do caminho iluminado, ante o corpo do cangaceiro. O outro veio, cauteloso. Ao avistá-lo na claridade do luar, levou a arma à cara. O tiro partiu e o bandido caiu de joelhos, com um grito. Depois tombou de frente no barro, estorceu-se alguns segundos. Aquietou-se por fim.

                Ao seu grito, só o eco respondeu. Nem uma voz soou nas espessuras das moitas ou baixou da ramada das umarizeiras. Pesou um grande silêncio no sertão enluarado. O Estêvão montou o ruço. Acendeu o cachimbo e largou veloz pela estrada em fora…

 (Gustavo Barroso, Praias e Várzeas; Alma Sertaneja, Rio de Janeiro: J. Olympio, 1979, Coleção Dolor Barreira, págs. 60/62)

Fonte: MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.




Gustavo Barroso



Gustavo Dodt Barroso (Fortaleza, 1888 – Rio de Janeiro, 1959) exerceu o jornalismo em sua terra natal, transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1910, onde concluiu o curso de Direito, iniciado em Fortaleza. Voltou ao Ceará como Secretário do Interior e Justiça, em 1914, exercendo depois mandato de deputado federal pelo Ceará. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi dela presidente por duas vezes. Sua vastíssima bibliografia, que chega a quase cem títulos, versa os temas mais diversos. Cultivou a História, a sociologia e o folclore. De contos, publicou: Praias e várzeas (1915), Mula sem cabeça (1922), Livro dos milagres (1924), O Bracelete de safiras (1931).

Sânzio de Azevedo informa que “se trata de um dos maiores vultos do conto realista e regionalista do Ceará”. E acrescenta à lista de suas coleções de histórias O Livro dos Enforcados (1939), sobre o qual diz o seguinte: “tão esquecido de quantos enumeram os contos de Gustavo Barroso, e que, não obstante seja baseado em acontecimentos históricos, retirados da crônica criminal do Ceará, reúne algumas narrativas do mais autêntico sabor ficcional”. Numa análise de várias páginas do ensaio citado linhas atrás, assegura o crítico: “Não é difícil perceber a segurança com que Gustavo Barroso trabalha o conto, não o alongando excessivamente, e demorando-se em descrições apenas o estritamente necessário à pintura do ambiente e à preparação do clímax da fabulação”.  

Otacílio Colares, no ensaio “Gustavo Barroso e o Regionalismo”, introdução à edição de 1979, da Livraria José Olympio Editora, de Praias e Várzeas e Alma Sertaneja, num só volume, reabre a questão: estes escritos são contos ou apenas estórias populares adaptadas? “Num como noutro destes livros daquela prosa que diríamos ser ainda alencarina, pela musicalidade, mas, já em parte, pessoal, pelo cunho de realismo regional, quase – diríamos – tendente ao documental, num como noutro, o leitor preocupado com definições rígidas esbarra com o dilema: são contos o que está em ambos os volumes reunidos, ou apenas o são no que a palavra conto significa invenção e a palavra raconto é entendida como repetição (podendo ser modificada) de velhas narrativas.”

Braga Montenegro vê nele o ponto culminante da narrativa curta no Ceará nos primeiros anos do século XX. Entretanto, vamos nos ater aqui apenas a dois de seus livros de histórias curtas: Praias e Várzeas, de 1915, e Alma Sertaneja, de 1923. Para Otacílio Colares os episódios do primeiro livro seriam “racontos de estórias passadas de pais para filhos.” E acrescenta: “Como se pode facilmente verificar, há todo um contexto informativo a par do conteúdo, vamos dizer, ficcionístico ou literário. E, acima disto, a preocupação de empregar toda uma terminologia regional praiana” (…). Na verdade, o que mais chama a atenção do leitor nestes dois livros de Gustavo Barroso é a estruturação das narrativas nos moldes dos contos populares ou das histórias orais. A manipulação da linguagem erudita e popular se faz tanto no discurso direto como na descrição de ambientes e personagens e na narração propriamente dita. A par disso vem o núcleo básico de cada episódio, sempre envolto em tragédia. Outra característica destes contos é a fiel retratação dos ambientes praianos, varzianos e sertanejos do Ceará. Quanto aos narradores e personagens, verifica-se a presença quase que constante de dois narradores: um narrador-testemunha, que se confunde com o próprio escritor e inicia a estória, e um protagonista-narrador, que conta o episódio principal, quase sempre em diálogo com o primeiro ou instigado por este. Em quase todos os contos o narrador-escritor inicia a narração e, em seguida, a “entrega” ao narrrador-testemunha ou protagonista. Apesar disso, a oralidade sertaneja ou praiana não descamba para a linguagem puramente regional e popular. O escritor conduz a fala do outro narrador, sem prejuízo do uso de vocábulos (substantivos e verbos) e expressões regionais.

Em “Velas Brancas” o protagonista é Matias Jurema, “velho pescador do Meireles”, em Fortaleza. A referência aos objetos de uso em pescaria é minuciosa: samburás, tarrafas, poitas, jangadas, tauaçus, quimangas. O narrador não participa da história, é o próprio escritor. E o conflito do velho pescador com a vida e o mar se faz em silêncio e solidão.

A descrição do ambiente praiano em “Finados” é soberba: coqueiros frondosos, praia branca, jangadas e suas velas abertas, no povoado de Mundaú. E a história remete a uma das crendices do povo da praia: “Quem vai pescar dia de finados sujeita-se a não voltar e morrer de assombração no mar” (…). Lucas, no entanto, quer afrontar a morte e sai ao mar. No dia seguinte “os jangadeiros encontraram restos de uma jangada e no meio deles, espetado em pontas finas de rochas lodentas, o cadáver de Lucas.”

Em “Naufrágio” “o mar tinha uma calma aparente”, um iate navegava com quatro tripulantes. E a história, “vista” do mar, vai adquirindo ares de tragédia. Primeiro “lufadas imprevistas”, depois outra rajada, a neblina, a chuva. “E o iate virava de bordo no espumejar da vaga.” Os ventos se tornam fortes, terríveis, “a crescer numa espantosa velocidade.” Finalmente “houve uma grande pancada”. Dois homens, “cuspidos n’água, debatiam-se em desespero.” O barco “foi-se afundando, afundando.” De manhã “boiavam cadáveres e fragmentos de tábuas ao sabor das ondulações.”

Em “O Pescador”, como em outros contos do livro, há logo no início uma descrição: as ondas, a praia, coqueirais, dunas, rochedos, um farol. Paisagem pintada com exuberância, para que nela os personagens se movimentem. No terceiro parágrafo surge um personagem. Antes dele, porém, mais um pedaço do ambiente: uma choupana pobre. Pedro Jojó se move: “pôs o uru a tiracolo, enrodilhou a tarrafa no braço, segurou ao cinto a quicé afiada e dispôs-se a partir para a pescaria”. Outra crendice do povo da praia: a do “pescador encantado”, mau e governante das águas e dos peixes do rio. Pedro se diz incrédulo, a despeito dos pedidos de sua mulher. Metido nas águas da barra do Pacoti, o pescador vê erguer-se “um vulto que saía das águas.” No dia seguinte pescadores depararam o cadáver de Pedro.

A destoar das narrativas anteriores, “Santa” é narrada na primeira pessoa: testemunha ou o próprio escritor. Além disso, trata-se de episódio do sertão, em tempo de “seca brava”. Otacílio Colares o chama de “narrativa de cunho regional”. O narrador, sem nome explícito, cavalga um cavalo na serra do Pereiro. A paisagem seca é descrita aqui e ali. Uma personagem aparece na segunda página: “uma cabocla forte e esperta”. Em seguida se apresenta o marido dela, “um caboclo ossudo, alto”. Já quase no final da narrativa o segundo personagem se faz narrador para contar a história da santa do título. Dois personagens participam da trama: “o velho Chico de Paula” e sua mulher, a santa. E as duas tramas se cruzam, como se personagens reais passassem a conviver com personagens fictícios. A segunda mulher, a santa, já envelhecida, se mostra no cenário onde se encontram o narrador inicial, a cabocla e seu marido, o narrador do conto da santa.

Outra história de cenário sertanejo é “Espectro”: “A paisagem tinha a tristeza dos ermos” (…). Na paisagem, uma fazenda, a capela senhorial, com seu sino de cobre, a residência feudal do padre Ferreira, “um dos homens mais ricos e poderosos do sertão”, o protagonista. O ponto de vista onisciente conduz o leitor ao passado (ao tempo da escravidão, quando “estralejavam os chicotes dos capatazes”), à vida do personagem, a esbanjar riqueza, em meio à pobreza de seus servos, açoitados por qualquer motivo, até a morte, quando o cavalo em que viajava espantou-se e o levou ao chão. E mais uma vez a crendice: o corpo do padre desapareceu, levado pelo diabo. Na tarde do enterro viram “um negro todo encourado surgir na casa da fazenda”. (…) “Era Satanás em pessoa” (…).

O narrador de “A Luíza do Seleiro” é um viajante do sertão, uma testemunha ou o próprio escritor. O ambiente é o vale do Aracoiaba, nas proximidades das “serras do Baturité e do Acarape”. O narrador descreve a mata verde, as flores selvagens, as árvores, as águas mansas. Na terceira página se mostra o segundo narrador, o da narrativa do título. A personagem é descrita: “olhos rasgados e negros”, “pele macia e aveludada”, “grumos vermelhos dos seus lábios”. Mais adiante se revela outro personagem, Estevão Nunes, “filho de um fazendeiro rico”, estudante na cidade do Forte (Fortaleza). Um dos contos mais longos dos dois livros.

O protagonista de “O Patuá” é Chico de Paula, um saco de pancadas ou “armazém de pancadas”, seu apelido. O episódio transcorre na vila do Riachão, “ribeira sertaneja”. Tudo gira em torno de um patuá, um amuleto que faz do personagem um valentão, capaz de enfrentar cangaceiros.

Um dos contos ambientado em várzea é “Absalão”, nome de personagem bíblico. “A catinga acabava ali” (…) “e para diante várzeas estendiam-se planas”. O protagonista (pode-se dizer assim) é um velho touro chamado Orelhudo. A última refrega do animal com homem é o desfecho: a morte do vaqueiro, em primorosa narração.

História de violência, vingança e morte é “O Filho do Gurari” (gurari é “nome dum pau duro e espinhoso”), cuja ação decorre cem anos atrás, segundo Otacílio Colares, isto é, por volta de 1880. Grupos familiares em luta: de um lado, descendentes diretos de europeus, sobretudo holandeses, os Cavalcantis; de outro, netos de portugueses com índios Paiacus. De uma matança escapa um bebê, que é levado pelo grupo vencedor e criado como filho do chefe. Feito rapaz, é morto a mando do pai adotivo, por medo deste de que o jovem tome ciência da história da chacina.

Tema parecido com este é o de “Emboscada”, cuja ação se desenrola entre Umari e Iguatu. No entanto, o feitiço vira contra o feiticeiro: o emboscado acaba se dando bem, matando os dois homens encarregados de o matarem.

O segundo livro, Alma Sertaneja, tem como subtítulo “contos trágicos e sentimentais do sertão”. Na verdade algumas narrativas do primeiro também se adaptam a este modelo. A maioria das histórias sertanejas segue o mesmo esquema narrativo: um narrador não identificado ou sem nome explícito inicia a narrativa e apresenta o segundo narrador-personagem ou testemunha. Os animais do sertão mais uma vez estão presentes como personagens. É o caso do touro Azulão, de “Marialva Sertanejo”. O heroísmo, a valentia, a coragem do sertanejo, ao lado da miséria, da fome, da seca, são assuntos desses contos. Em “O Come-Gente” Gustavo Barroso atinge o clímax do realismo, com o personagem Luiz Zambeta, “que ficou maluco de fome” e se tornou “estropófogo” (antropófago). Em “O Drama do Guriú” a fome é dos tubarões (história praiana), que devoram toda uma família, à exceção do chefe. “Os infelizes debatiam-se nas águas movediças e os tubarões, virando-se de dorso para baixo, vinham furiosamente, os papos amarelos à mostra, atacar os prisioneiros do oceano.” Em “A Alma do Turco” não há um segundo narrador, mas diversos. Os personagens-narradores se acham numa barranca do rio Quixeramobim. Teodósia conta o último episódio, o do título. O protagonista é um animal, um cachorro grande, o Turco. Tanto o narrador-escritor como a narradora-testemunha fazem questão de dar alma ao animal ou de humanizá-lo. Acusado de furtar queijo e espantar e matar galinhas, o cão é escorraçado de casa diversas vezes. Ao final, se deixa morrer ou morre de tristeza, ao perceber a aproximação do dia em que será levado por um paroara para muito longe, um seringal no rio Xingu, no Amazonas. Em “A Moça da Sapiranga” o primeiro narrador se acha, com outros personagens, ao pé da serra da Tucunduba, após atravessar o rio Ceará. O segundo narrador, Maneco, conta história ocorrida em Orós, a da moça com sapiranga nos olhos. Em “Os Noruegueses do Sabiaguaba” o primeiro narrador se revela um pouco, ao anunciar ao leitor: “E era isso o que a minha curiosidade de escritor ia procurar na casa vetusta do Curió.” A narrativa acontece em Sabiaguaba, “um recanto de praia e bem bonito, por sinal, entre a barra do Rio Cocó e a do Pacoti.” Em “Chifre de Cabra” o narrador-protagonista é João Gameleira, o pajem do narrador-escritor. O episódio se dá na cidade de Quixeramobim. Mulher trai marido, João Gameleira, e é por ele assassinada, juntamente com o outro. Também história de seca é “A louca”, a lembrar “Come-Gente”. Nela o ponto de vista onisciente não deixa entrever um narrador-personagem ou testemunha. O protagonista é Domingos Lopes. Acossado pela seca, vaga pelos sertões. Depara uma casinhola no meio do sertão. Na entrada vê “o cadáver dum cachorro magro”. Dentro da casa, “os corpos apodrecidos de três pequenas crianças”. A seguir, depara a mãe, a louca do título. Na serra de Baturité acontece o episódio de “O Poço das Piranhas”, a lembrar velhas narrativas de horror. Outra história de seca é “Os Filhos do Capitão João Pedro”, ambientada em Fortaleza. Um dos poucos contos em que a capital cearense, ou o seu litoral, é retratada. “Mano Francisco” se inicia com “Sertão inóspito!” É o sertão de Mombaça. O protagonista é Francisco, irmão do narrador-testemunha, “uma coisa medonha”, “um monstro em forma humana”. O tema é a loucura. O homem “ficou doido varrido”, matou um irmão com a mão-de-pilão e “está convencido que virou leão!” O ponto de vista onisciente é retomado em “O Perdão das Trevas”, no qual mais uma vez a seca é tema. Em “O Lobisomem” o contista “engana” o leitor, desde o título e a primeira frase: “Estórias de lobisomens!” Na verdade, se trata de história de um falso lobisomem, o vaqueiro Geraldo, “que tinha fama de homem honesto”, porém mais interessado num pacote de dinheiro do que em sangue humano. A história transcorre em 1899, na ribeira do Banabuiú. A última narrativa, “Como eu Matei a Maçaroca”, também se localiza no sertão, ao tempo dos cangaceiros e de onças, as maçarocas. São diversos pequenos episódios. O narrador onisciente dá voz ao narrador-personagem, o anspeçada Xico Linheiro, o matador da onça.

A matéria-prima dos contos de Praias e Várzeas e Alma Sertaneja é, pois, a natureza em toda a sua pujança e o homem como ser biológico e como ser cultural, este integrado àquela não apenas na paisagem, mas na própria vida (ação), o que faz de Gustavo Barroso um contista (um escritor) pinturesco e, ao mesmo tempo, dramático (drama, conflito) da terra e da gente cearenses.

Fonte: MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

O NORDESTE E A MPB



João Pernambuco (violonista)


INFLUÊNCIA DO CANCIONEIRO POPULAR NORDESTINO

NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA



Livro de Almirante "No tempo de Noel Rosa"



ANTECEDENTES FOLCLÓRICOS

Por: Almirante (Henrique Foréis Domingues)

Entusiasmado com as criações do violonista João Pernambuco, Noel Rosa compôs sua primeira obra musical em versos, a embolada “Minha Viola”. Quatro dias antes de morrer, Noel Rosa deixou seu derradeiro manuscrito, a embolada “Chuva de Vento”.

Em 1897, Sílvio Romero lançou seu volume Cantos Populares do Brasil, em 1901, Melo Morais Filho, Festas e Tradições Populares do Brasil, em 1903, Rodrigues de Carvalho, Cancioneiro do Norte, em 1908, Pereira da Costa, Folclore Pernambucano, Alexina de Magalhães Pinto lançou, em 1909, Os Nossos Brinquedos e, em 1911, Cantigas das Crianças e do Povo — valiosos subsídios do Norte e Nordeste. Estando em voga os temas do Nordeste, em 1909, Osório Duque Estrada, autor dos versos do Hino Nacional Brasileiro, publicou o livro O Norte (Impressões de Viagem), um panorama do folclore nordestino.


O escritor, pesquisador e radialista Almirante

João Teixeira Guimarães nasceu a 2 de novembro de 1883, em Jatobá, Pernambuco. Com 12 anos foi para Salinas, em seguida para o Recife. Ainda garoto, nos centros dos cantadores e nas feiras, ouvia e admirava Hugolino do Teixeira, Romano da Mãe D’Água, Inácio da Catingueira, Mané do Riachão e vários outros. Ali recebeu as primeiras instruções violonísticas de Manoel Cabeceira, Cirino de Guajurema, Bem-te-Vi, Madapolão, Serrador, cego Sinfrônio e Fabião das Queimadas.
Em 1902 veio para o Rio e daqui em diante tornou-se conhecido pela alcunha de João Pernambuco. Aqui se fez amigo de Quincas Laranjeiras, Zé Rebelo, Mário Cavaquinho, Sátiro Bilhar, Veloso e tantos outros.
Anos depois conheceu o poeta Catulo da Paixão Cearense, que desde 1900 publicava livros de versos e modinhas e, até 1912, não havia produzido nada absolutamente, em poemas sertanejos, especialmente dos costumes nordestinos. Certa vez, João Pernambuco pôs-se a cantar uma toadinha com os versos populares de sua terra, mas compondo melodia inédita, exclusivamente de sua autoria:

Nega, você me dá (o tiá)
Nega, você não dá não
Nega, se você me dá
E tá na faca, na madeira e no quicé.
Cinco pataca,
Dois tostões,
Mil e quinhento
Minha casa mobiada
Gás aceso e o povo dento...etc.

Catullo, gravura de Pacheco


Catulo nasceu a 8 de outubro de 1863 em São Luís do Maranhão, seguiu para o Ceará e com 17 anos de idade veio para o Rio. Da amizade com João Pernambuco, que lhe exibiu a sua melodia, resultou a criação da primeira canção sertaneja de cunho folclórico.
Entusiasmado com a novidade do coco-de-emboladas (2), Catulo anotou as expressões típicas e saborosas do Nordeste, apontadas pelo violonista. Catulo já não se recordava dos interessantes vocábulos e estranhava o próprio título que João Pernambuco indicara — “Caboca do Caxangá”. Caxangá, o lugar em que tanto vivera...
Sobre a origem dessa famosa cantiga servem como prova definitiva as palavras do poeta, em entrevista do Diário de Notícias de Lisboa, de 30 de janeiro de 1935: “... quando começava a minha obra poética mais importante apareceu-me o João Pernambuco, que vinha do Norte e que, sabe tocar muito bem o violão, me trouxe um vocabulário ainda não pervertido pela língua culta”.
Sem a menor dúvida, Catulo aproveitou os principais elementos melódicos de João Pernambuco para o estribilho citado pelo violonista:

Caboca de Caxangá
Minha caboca vem cá.

E veio, assim, a versalhada repleta de vocábulos colhidos no repertório de João Pernambuco, como Caxangá, Pajeú, Jaboatão, Santo Amaro (lugares e adjacências do Estado de Pernambuco); indaiá, imbiçuru, oiticica, gameleira, taquara (árvores, madeiras do Nordeste); urutau, chorão, jaçanã, quartau, quicé (aves, animais, expressões), usados na nova canção:

Em Pajeú, em Caxangá,
Em Cariri, em Jaboatão,
Eu tenho a fama de cantô
I valentão... etc...

A cantiga despertou interesse no povo, sendo publicada em 1913, no volume Lyra dos Salões (Rio de Janeiro, edição Quaresma, 1913). Como testemunho de gratidão ao seu indiscutível colaborador e parceiro, Catulo imprimiu com esta dedicatória:

“Ao Pernambuco, o insigne violonista’’ (CABOCA DE CAXANGÁ, p. 232)



Lyra dos Salões - Livraria Quaresma (1923)


Era de grande efervescência o movimento artístico daquela época e, em 1914, várias revistas teatrais do ano referiam-se à nova moda musical. Nos três dias do carnaval, animado conjunto, sob o título de Grupo do Caxangá, percorreu os principais pontos da Avenida Rio Branco (3). Seus componentes, orientados por João Pernambuco, usavam máscaras ou grandes barbas, empunhando seus instrumentos e trajando vestimentas típicas, com nomes de guerra nas palas dobradas dos chapéus, conforme foto no O Malho (4) de 28/02/1914: João Pernambuco (Guajurema), Jacob Palmiéri (Zeca Lima), Donga (Zé Vicente), Caninhá (Mané do Riachão), Pixinguinha (Chico Dunga), Henrique Manoel de Souza (Mané Francisco), Manoel da Costa (Zé Porteira), Osmundo Pinto (Inácio da Catingueira). (Ver página 38)
No último dia do carnaval, alguns préstitos exibiam, em carros especiais, letreiros sob o título de “A Embolada do Norte”. Devido ao êxito de “Caboca de Caxangá”, no ano seguinte João Pernambuco apresentou a Catulo outra melodia do mesmo tipo de coco de embolada, a que o poeta pôs letra intitulando-a de “Luar do Sertão”. O poeta editava as músicas, gravava-as em chapas de discos e cantava-as nas festinhas caseiras, nos recitais e palcos, citando somente o seu nome, sem jamais mencionar outros parceiros!
No teatro persistiu o interesse pelos movimentos folclóricos e naquela ocasião representaram-se as peças Ouro Sobre Azul, revista (5) de Maria Lina (Teatro Recreio) (6),  e A Caboca de Caxangá, burleta (7) de Gastão Tojeiro, música de Carlos Rodrigues e Luís Corrêa (Teatro São José (8), 07/12/1915).


Livros de 'MODINHAS' impressos pela Livraria Quaresma

Afonso Arinos, no mesmo ano, realizou um ciclo de conferências sobre temas folclóricos, finalizando-o em 28 de dezembro, com a conferência “Lendas e Tradições Brasileiras”, sob o patrocínio da Sociedade de Cultura Artística, no Teatro Municipal de São Paulo, tendo sido apresentados autos e danças dramáticas e tradicionais. Nas festas eram convidadas as mais ilustres figuras da sociedade paulista e a imprensa informava:

“Para essa parte veio do Rio um grupo de exímios artistas nacionais, reunidos para esse fim pelo senhor João Guimarães, conhecido pelo cognome de Pernambuco, sua terra natal, que ele honra pelo seu talento artístico, exuberante e espontâneo. Foram companheiros de Pernambuco, o grande tocador de viola e de violão, os nossos instrumentos populares por excelência, os senhores Otávio Lessa, Luiz Pinto da Silva e José Alves Lima” (9).

Em dezembro, dia 30, e em janeiro de 1916, o espetáculo repetiu-se e João Pernambuco criou a Trupe Sertaneja, que se exibiu em São Paulo e, em seguida, no Rio e em Porto Alegre.
Crescia o interesse pelas músicas populares de fundo folclórico. Os jornais dedicavam particular atenção aos versos das canções brasileiras, especialmente as sertanejas. No Rio, a 14 de fevereiro de 1916, representava-se a revuette (10), Carnaval no Trianon, de autoria de Fábio Aarão Reis, com músicas de Luiz Moreira e Raul Martins, com Abigail Maia cantando canções folclóricas. No Teatro São Pedro (24 de abril), apresentava-se a revista O Meu Boi Morreu, de Raul Pederneiras e J. Praxedes, com melodias de Pascoal Pereira e Adalberto Carvalho, e o maior sucesso do carnaval do ano, a toada folclórica “O Meu Boi Morreu”.
Dois anos atrás, Abigail Maia, considerada a “atriz da moda”, granjeara o justo título de “a rainha da canção brasileira”, com repertório de modinhas brasileiras e sertanejas como “Chico Mané Nicolau”, “Nhô Djuca”, “Inderê”, “Chora, Chora, Chorado”, “Cambuco e Balaio”, “O Meu Boi Morreu”, “A Rolinha”, “Assim É que É”, “Rolinha do Sertão” e outras. Era ainda relembrado o êxito em Santos, no Rinque Miramar, e depois em várias cidades, do célebre trio Foca - Abigail-Moreira, de José Batista Coelho (João Foca), teatrólogo e humorista; Abigail Maia, atriz e cançonetista, e Luiz Moreira, compositor e maestro.



Catullo foi muito popular no seu tempo

Em 30 de abril desse mesmo ano, os motivos populares do Nordeste deram origem à peça de costumes sertanejos O Marroeiro, original de Catulo da Paixão Cearense e Ignácio Raposo, com músicas do maestro Paulino do Sacramento, incluindo o estribilho de maior sucesso, com diferentes alterações melódicas em seus versos:

Olha a rolinha
Sindô, sindô
Mimosa flor
Sindô, sindô
Presa no laço
Do meu amô.

A respeito das criações das melodias “Caboca de Caxangá” e “Luar do Sertão”, estampamos o depoimento definitivo da carta do saudoso maestro Villa-Lobos (Documento A, ver página 32). E acrescentamos mais declarações que atestam ter sido João Pernambuco o autor das famosas canções, com as assinaturas de José Rebelo da Silva, o Zé Cavaquinho (Documento B, ver página 33), Benjamim de Oliveira e Alcebíades Carreiro (Documento C, ver página 34), o professor Sylvio Salema Garção Ribeiro (Documento D, ver páginas 35 e 36), o musicólogo Mozart de Araújo e a frase do ilustre crítico Andrade Murici, publicada na coluna “Pelo Mundo da Música”, do Jornal do Brasil de 13 de agosto de 1941:
“... Luar do Sertão, letra de Catulo da Paixão Cearense, para a qual esse modesto João Pernambuco compôs música destinada a viver enquanto houver vida num coração de brasileiro”.



João Pernambuco

Declara Mozart de Araújo:

João Pernambuco era homem simples, modesto, de poucas letras. Não tinha ambições de glória e muito menos de fortuna, tanto assim que, apesar do talento excepcional que possuía, morreu pobre. Foi desse homem autêntico e verdadeiro que ouvi a declaração de haver fornecido a Catulo Cearense muitas das suas cantigas trazidas do Norte, entre estas a melodia “É do Humaitá”, que ele cantava ao violão ou à viola.

Catulo, apesar de possuir um bom ouvido, não era um compositor, e também não era um bom musicista, pois o seu violão era rudimentar. Em termos de criação musical, não é possível compará-lo a Pernambuco, cuja obra é das melhores do repertório violonístico do Brasil. Pessoalmente ouvi de Catulo que a melodia “É do Humaitá” foi trazida do Norte por João Pernambuco.
“Modifiquei e fiz o ‘Luar do Sertão’, que foi vendido ao Figner (11)”, declarou-me Catulo, em 1946, poucos meses antes de morrer. Conhecendo Catulo e Pernambuco, entendi que a modificação da melodia consistiu simplesmente em adaptá-la à letra que, esta sim, era de Catulo. Ademais, João Pernambuco nunca se cansou de exaltar o poema de Catulo, que ele considerava um dos mais belos da nossa língua.
Conheço versões folclóricas do coco “É do Humaitá” e nenhuma dessas versões coincide com a melodia que Pernambuco cantava. Não hesito, pois, em afirmar que a melodia fornecida a Catulo era criação própria de João Pernambuco, como eram as toadas “Vancê”, “Tiá de Junqueira”, “Biro-biro-yaiá”, “Siricóia”, “Ajueia Chiquinha” e tantas outras.


NOTAS

1 - Por Catulo nunca tê-lo mencionado como autor da melodia de “Caboca de Caxangá” e “Luar do Sertão”, João Teixeira Guimarães, com profunda mágoa, faleceu a 16 de outubro de 1947.
2. - O coco-de-embolada é um gênero musical muito popular na região nordeste do Brasil, em que dois repentistas travam um desafio musical através de improvisos. A letra é geralmente cômica ou satírica. (N.O.)
3. - A avenida Rio Branco corta o centro da cidade do Rio de Janeiro.Antes chamada de Avenida Central, é uma das principais ruas do centro e foi um marco da reforma urbanística de Pereira Passos no início do século XX. (N.O.)
4. - O Malho foi uma revista brasileira criada em 1902, cuja especialidade era satirizar as notícias políticas da época. (N.O.)
5. - Redução da expressão teatro de revista, que consiste num tipo de espetáculo teatral, composto de números falados, musicais e humorismo. (N.O.)
6. - Surgido ainda no século XIX e inicialmente chamado de Recreio Dramático, esse teatro ficava em frente à Praça da Constituição, no centro do Rio de Janeiro. Foi demolido em 1968. (N.O.)
7. - Tipo de peça teatral cômica, que teve origem na Itália do século XVIII. (N.O.)
8. - O teatro São José localizava-se na praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, e funcionou de 1903 a 1926. (N.O.)
09. - “Lendas e Tradições Brasileiras”, Afonso Arinos. (N.A.)
10. - Tipo de ato teatral surgido no início no século XIX que mistura dança, esquetes e música. (N.O.)
11. - Fred Figner foi dono da Casa Edison, o primeiro estúdio de gravação de disco do Brasil. (N.O.)

Esse texto é o primeiro capítulo do livro NO TEMPO DE NOEL ROSA – Almirante.
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