EMBOSCADA
Gustavo
Barroso
A Mello Morais Filho
Mais tarde, regressava com sua força, ao lado duma moriçaba, quando ao
enfrentar uma moita, no lugar Mangabeira, meia légua distante de Lavras, uma
bala, partida do mato, o derrubou do cavalo, instantaneamente morto! (J. Brígido: O Ceará)
Apesar dos seus melhores
amigos o haverem prevenido com provas cabais que o Inácio de Albuquerque pusera
assassinos de tocaia no percurso que tinha que fazer de Umari ao Iguatu, o
Estevão de Matos não recuou da resolução que tomara. Ir àquela cidade sertaneja
a cavalo, varando o sertão inóspito, representava para ele um compromisso de
honra. Havia prometido à firma Ricarte Irmãos saldar as suas dívidas no dia 30
do mês. Os seus negócios de gado em Pedras de Fogo tinham dado lucro
suficiente. Possuía o dinheiro necessário ao pagamento das letras que os
Ricartes guardavam. Eles lhe haviam emprestado aquelas somas para salvá-lo duma
situação aflitiva nos seus negócios. Pusera-os em dia, só lhe restava agora
desobrigar-se da promessa. Não haveria forças humanas capazes de o demover. Nem
mesmo aceitava o alvitre de mandar pagar por outro. Iria em pessoa, para
mostrar à firma que era homem de palavra e para mostrar ao Inácio que não lhe
temia os cabras traiçoeiros e a vingança mesquinha.
A mulher, em lágrimas,
rojou-se-lhe aos pés; os filhos pequenos suplicaram-lhe em vão. Marcou o dia da
partida. Deu ordens severas para milhar bem o cavalo ruço e preparar um mocó de
sustância. Destemeroso, honesto e franco não se arreceava de outro homem. É
verdade que dum tiro certeiro de espera ninguém se livrava. Mas ele “sabia onde
moravam os mocós”. Era vaqueiro velho, cheio de mocambos, conhecedor de
negaças. Andara uns tempos atrás de cangaceiros, guiando destacamentos. Tinha
plena confiança em si.
No dia marcado seguiu viagem.
Partiu de manhã, mas não se embrenhou logo nas catingas. Algum esculca o havia
de ter espiado e logo corrido a levar a nova aos assalariados das emboscadas.
Parou fora da vila, em casa de Matias Florindo, escondeu o ruço na casa de
farinha e ali se ficou a parolar com o amigo até a boca da noite. Com o escuro
foi embora, levando o animal devagar, a clavina de repetição passada sobre o
arção do ginete. Deixou a estrada e meteu-se pelo mato, guiando-se pelas
estrelas faiscantes, que avistava por entre a ramaria rala dos paus-brancos.
Tinha medo da lua. Nessa noite ela ainda se levantava tarde. Mas ao outro dia
nasceria mais cedo e ao outro mais cedo ainda.
Quando ela clareou o matagal,
madrugava já. Distanciou-se mais da estrada que seguia paralelamente,
avistando-a, às vezes, por entre os troncos lisos. Num fechado de rompe-gibão,
mandacarus e umburanas, onde o pasto verde e suculento cobria o chão, tirou os
arreios do cavalo e amarrou-o pelo cabresto a um tronco. Depois, fazendo da
carona manta e da sela travesseiro, adormeceu ao pé das árvores.
O sol nascia.
Assim viajou mais uma noite e
dormiu mais um dia. Na terceira noite de viagem, a lua veio muito cedo. Aquilo
contrariava-lhe os planos. Além disso, a catinga naqueles lugares era tão
espessa, tão eivada de espinhais, tão acidentado o terreno, de barrocas, pedras
e fojos naturais, que só teve um remédio, depois de experimentar o trânsito do
mato em várias direções, que foi ganhar a estrada larga e seguir por ela,
lento, de ouvido à escuta e olhos à espreita.
O luar claro escorria pelos
troncos alvos e fazia das resinas transparentes lágrimas de luz. Altas, imóveis,
as frondes das árvores destacavam-se na claridade do céu. Mães-da-lua
gargalhavam ao longe, muito ao longe.
Os olhos argutos do Estevão
notaram que numa gameleira grande, entre dois grossos ramos em forquilha, as
folhas eram tão chegadas que por entre elas não se coava o luar. Parou o cavalo
e apontou a clavina para aquele escuro da folhagem, na desconfiança instintiva
em que vinha de homens atocaiando-o nas moitas e das copas das árvores. O tiro
partiu, ecoando nos pedregais. E um vulto de homem tombou mole, lá do alto, a
escabujar na estrada branca.
Do alto de outra árvore mais
adiante veio uma voz de homem, dura e cortante no silêncio daquela solidão.
– Mataste, Chico?
O Estevão estremeceu. A
emboscada era de dois. Que havia de fazer? Se falasse, o salafrário
conhecer-lhe-ia a voz e fugiria a prevenir o amo vil da morte do companheiro.
Se não falasse, o miserável desconfiaria, havia de tentar espiar o que se
passara e iria dar o alarma à chusma acanalhada dos bandidos do Inácio, ou do
seu esconderijo talvez o prostrasse com um tiro bem dado. Essa hesitação durou
um instante. A sua grande calma ante os perigos salvou-o, ajudada da
fertilidade do seu espírito aguçado e todo sutilezas. Soltou um assobio
arrastado e discreto, chamando o outro:
– Fô – fi – i – i – ô – ô – ô…
Ligeiro, apeou-se do ruço e
ficou de pé, de clavina aperrada, no meio do caminho iluminado, ante o corpo do
cangaceiro. O outro veio, cauteloso. Ao avistá-lo na claridade do luar, levou a
arma à cara. O tiro partiu e o bandido caiu de joelhos, com um grito. Depois
tombou de frente no barro, estorceu-se alguns segundos. Aquietou-se por fim.
Ao seu grito, só o eco
respondeu. Nem uma voz soou nas espessuras das moitas ou baixou da ramada das
umarizeiras. Pesou um grande silêncio no sertão enluarado. O Estêvão montou o
ruço. Acendeu o cachimbo e largou veloz pela estrada em fora…
(Gustavo Barroso, Praias e Várzeas; Alma
Sertaneja, Rio de Janeiro: J. Olympio, 1979, Coleção Dolor Barreira, págs.
60/62)
Fonte: MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos
Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
Gustavo Barroso
Gustavo
Dodt Barroso (Fortaleza, 1888 – Rio de Janeiro, 1959) exerceu o jornalismo em
sua terra natal, transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1910, onde concluiu o
curso de Direito, iniciado em Fortaleza. Voltou ao Ceará como Secretário do
Interior e Justiça, em 1914, exercendo depois mandato de deputado federal pelo
Ceará. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi dela presidente por duas
vezes. Sua vastíssima bibliografia, que chega a quase cem títulos, versa os
temas mais diversos. Cultivou a História, a sociologia e o folclore. De contos,
publicou: Praias e várzeas (1915), Mula sem cabeça (1922), Livro dos milagres
(1924), O Bracelete de safiras (1931).
Sânzio
de Azevedo informa que “se trata de um dos maiores vultos do conto realista e
regionalista do Ceará”. E acrescenta à lista de suas coleções de histórias O
Livro dos Enforcados (1939), sobre o qual diz o seguinte: “tão esquecido de
quantos enumeram os contos de Gustavo Barroso, e que, não obstante seja baseado
em acontecimentos históricos, retirados da crônica criminal do Ceará, reúne
algumas narrativas do mais autêntico sabor ficcional”. Numa análise de várias
páginas do ensaio citado linhas atrás, assegura o crítico: “Não é difícil
perceber a segurança com que Gustavo Barroso trabalha o conto, não o alongando
excessivamente, e demorando-se em descrições apenas o estritamente necessário à
pintura do ambiente e à preparação do clímax da fabulação”.
Otacílio
Colares, no ensaio “Gustavo Barroso e o Regionalismo”, introdução à edição de
1979, da Livraria José Olympio Editora, de Praias e Várzeas e Alma Sertaneja,
num só volume, reabre a questão: estes escritos são contos ou apenas estórias
populares adaptadas? “Num como noutro destes livros daquela prosa que diríamos
ser ainda alencarina, pela musicalidade, mas, já em parte, pessoal, pelo cunho
de realismo regional, quase – diríamos – tendente ao documental, num como
noutro, o leitor preocupado com definições rígidas esbarra com o dilema: são
contos o que está em ambos os volumes reunidos, ou apenas o são no que a
palavra conto significa invenção e a palavra raconto é entendida como repetição
(podendo ser modificada) de velhas narrativas.”
Braga
Montenegro vê nele o ponto culminante da narrativa curta no Ceará nos primeiros
anos do século XX. Entretanto, vamos nos ater aqui apenas a dois de seus livros
de histórias curtas: Praias e Várzeas, de 1915, e Alma Sertaneja, de 1923. Para
Otacílio Colares os episódios do primeiro livro seriam “racontos de estórias
passadas de pais para filhos.” E acrescenta: “Como se pode facilmente
verificar, há todo um contexto informativo a par do conteúdo, vamos dizer,
ficcionístico ou literário. E, acima disto, a preocupação de empregar toda uma
terminologia regional praiana” (…). Na verdade, o que mais chama a atenção do
leitor nestes dois livros de Gustavo Barroso é a estruturação das narrativas
nos moldes dos contos populares ou das histórias orais. A manipulação da
linguagem erudita e popular se faz tanto no discurso direto como na descrição
de ambientes e personagens e na narração propriamente dita. A par disso vem o
núcleo básico de cada episódio, sempre envolto em tragédia. Outra
característica destes contos é a fiel retratação dos ambientes praianos,
varzianos e sertanejos do Ceará. Quanto aos narradores e personagens,
verifica-se a presença quase que constante de dois narradores: um
narrador-testemunha, que se confunde com o próprio escritor e inicia a estória,
e um protagonista-narrador, que conta o episódio principal, quase sempre em
diálogo com o primeiro ou instigado por este. Em quase todos os contos o
narrador-escritor inicia a narração e, em seguida, a “entrega” ao
narrrador-testemunha ou protagonista. Apesar disso, a oralidade sertaneja ou
praiana não descamba para a linguagem puramente regional e popular. O escritor
conduz a fala do outro narrador, sem prejuízo do uso de vocábulos (substantivos
e verbos) e expressões regionais.
Em
“Velas Brancas” o protagonista é Matias Jurema, “velho pescador do Meireles”,
em Fortaleza. A referência aos objetos de uso em pescaria é minuciosa:
samburás, tarrafas, poitas, jangadas, tauaçus, quimangas. O narrador não
participa da história, é o próprio escritor. E o conflito do velho pescador com
a vida e o mar se faz em silêncio e solidão.
A
descrição do ambiente praiano em “Finados” é soberba: coqueiros frondosos,
praia branca, jangadas e suas velas abertas, no povoado de Mundaú. E a história
remete a uma das crendices do povo da praia: “Quem vai pescar dia de finados
sujeita-se a não voltar e morrer de assombração no mar” (…). Lucas, no entanto,
quer afrontar a morte e sai ao mar. No dia seguinte “os jangadeiros encontraram
restos de uma jangada e no meio deles, espetado em pontas finas de rochas
lodentas, o cadáver de Lucas.”
Em
“Naufrágio” “o mar tinha uma calma aparente”, um iate navegava com quatro
tripulantes. E a história, “vista” do mar, vai adquirindo ares de tragédia.
Primeiro “lufadas imprevistas”, depois outra rajada, a neblina, a chuva. “E o
iate virava de bordo no espumejar da vaga.” Os ventos se tornam fortes, terríveis,
“a crescer numa espantosa velocidade.” Finalmente “houve uma grande pancada”.
Dois homens, “cuspidos n’água, debatiam-se em desespero.” O barco “foi-se
afundando, afundando.” De manhã “boiavam cadáveres e fragmentos de tábuas ao
sabor das ondulações.”
Em
“O Pescador”, como em outros contos do livro, há logo no início uma descrição:
as ondas, a praia, coqueirais, dunas, rochedos, um farol. Paisagem pintada com
exuberância, para que nela os personagens se movimentem. No terceiro parágrafo
surge um personagem. Antes dele, porém, mais um pedaço do ambiente: uma
choupana pobre. Pedro Jojó se move: “pôs o uru a tiracolo, enrodilhou a tarrafa
no braço, segurou ao cinto a quicé afiada e dispôs-se a partir para a
pescaria”. Outra crendice do povo da praia: a do “pescador encantado”, mau e
governante das águas e dos peixes do rio. Pedro se diz incrédulo, a despeito
dos pedidos de sua mulher. Metido nas águas da barra do Pacoti, o pescador vê
erguer-se “um vulto que saía das águas.” No dia seguinte pescadores depararam o
cadáver de Pedro.
A
destoar das narrativas anteriores, “Santa” é narrada na primeira pessoa:
testemunha ou o próprio escritor. Além disso, trata-se de episódio do sertão,
em tempo de “seca brava”. Otacílio Colares o chama de “narrativa de cunho
regional”. O narrador, sem nome explícito, cavalga um cavalo na serra do
Pereiro. A paisagem seca é descrita aqui e ali. Uma personagem aparece na
segunda página: “uma cabocla forte e esperta”. Em seguida se apresenta o marido
dela, “um caboclo ossudo, alto”. Já quase no final da narrativa o segundo
personagem se faz narrador para contar a história da santa do título. Dois
personagens participam da trama: “o velho Chico de Paula” e sua mulher, a
santa. E as duas tramas se cruzam, como se personagens reais passassem a
conviver com personagens fictícios. A segunda mulher, a santa, já envelhecida,
se mostra no cenário onde se encontram o narrador inicial, a cabocla e seu
marido, o narrador do conto da santa.
Outra
história de cenário sertanejo é “Espectro”: “A paisagem tinha a tristeza dos
ermos” (…). Na paisagem, uma fazenda, a capela senhorial, com seu sino de
cobre, a residência feudal do padre Ferreira, “um dos homens mais ricos e
poderosos do sertão”, o protagonista. O ponto de vista onisciente conduz o
leitor ao passado (ao tempo da escravidão, quando “estralejavam os chicotes dos
capatazes”), à vida do personagem, a esbanjar riqueza, em meio à pobreza de
seus servos, açoitados por qualquer motivo, até a morte, quando o cavalo em que
viajava espantou-se e o levou ao chão. E mais uma vez a crendice: o corpo do
padre desapareceu, levado pelo diabo. Na tarde do enterro viram “um negro todo
encourado surgir na casa da fazenda”. (…) “Era Satanás em pessoa” (…).
O
narrador de “A Luíza do Seleiro” é um viajante do sertão, uma testemunha ou o
próprio escritor. O ambiente é o vale do Aracoiaba, nas proximidades das
“serras do Baturité e do Acarape”. O narrador descreve a mata verde, as flores
selvagens, as árvores, as águas mansas. Na terceira página se mostra o segundo
narrador, o da narrativa do título. A personagem é descrita: “olhos rasgados e
negros”, “pele macia e aveludada”, “grumos vermelhos dos seus lábios”. Mais
adiante se revela outro personagem, Estevão Nunes, “filho de um fazendeiro
rico”, estudante na cidade do Forte (Fortaleza). Um dos contos mais longos dos
dois livros.
O
protagonista de “O Patuá” é Chico de Paula, um saco de pancadas ou “armazém de
pancadas”, seu apelido. O episódio transcorre na vila do Riachão, “ribeira
sertaneja”. Tudo gira em torno de um patuá, um amuleto que faz do personagem um
valentão, capaz de enfrentar cangaceiros.
Um
dos contos ambientado em várzea é “Absalão”, nome de personagem bíblico. “A
catinga acabava ali” (…) “e para diante várzeas estendiam-se planas”. O
protagonista (pode-se dizer assim) é um velho touro chamado Orelhudo. A última
refrega do animal com homem é o desfecho: a morte do vaqueiro, em primorosa
narração.
História
de violência, vingança e morte é “O Filho do Gurari” (gurari é “nome dum pau
duro e espinhoso”), cuja ação decorre cem anos atrás, segundo Otacílio Colares,
isto é, por volta de 1880. Grupos familiares em luta: de um lado, descendentes
diretos de europeus, sobretudo holandeses, os Cavalcantis; de outro, netos de
portugueses com índios Paiacus. De uma matança escapa um bebê, que é levado
pelo grupo vencedor e criado como filho do chefe. Feito rapaz, é morto a mando
do pai adotivo, por medo deste de que o jovem tome ciência da história da
chacina.
Tema
parecido com este é o de “Emboscada”, cuja ação se desenrola entre Umari e
Iguatu. No entanto, o feitiço vira contra o feiticeiro: o emboscado acaba se
dando bem, matando os dois homens encarregados de o matarem.
O
segundo livro, Alma Sertaneja, tem como subtítulo “contos trágicos e
sentimentais do sertão”. Na verdade algumas narrativas do primeiro também se
adaptam a este modelo. A maioria das histórias sertanejas segue o mesmo esquema
narrativo: um narrador não identificado ou sem nome explícito inicia a
narrativa e apresenta o segundo narrador-personagem ou testemunha. Os animais
do sertão mais uma vez estão presentes como personagens. É o caso do touro
Azulão, de “Marialva Sertanejo”. O heroísmo, a valentia, a coragem do
sertanejo, ao lado da miséria, da fome, da seca, são assuntos desses contos. Em
“O Come-Gente” Gustavo Barroso atinge o clímax do realismo, com o personagem
Luiz Zambeta, “que ficou maluco de fome” e se tornou “estropófogo”
(antropófago). Em “O Drama do Guriú” a fome é dos tubarões (história praiana),
que devoram toda uma família, à exceção do chefe. “Os infelizes debatiam-se nas
águas movediças e os tubarões, virando-se de dorso para baixo, vinham
furiosamente, os papos amarelos à mostra, atacar os prisioneiros do oceano.” Em
“A Alma do Turco” não há um segundo narrador, mas diversos. Os
personagens-narradores se acham numa barranca do rio Quixeramobim. Teodósia
conta o último episódio, o do título. O protagonista é um animal, um cachorro
grande, o Turco. Tanto o narrador-escritor como a narradora-testemunha fazem
questão de dar alma ao animal ou de humanizá-lo. Acusado de furtar queijo e
espantar e matar galinhas, o cão é escorraçado de casa diversas vezes. Ao
final, se deixa morrer ou morre de tristeza, ao perceber a aproximação do dia
em que será levado por um paroara para muito longe, um seringal no rio Xingu,
no Amazonas. Em “A Moça da Sapiranga” o primeiro narrador se acha, com outros
personagens, ao pé da serra da Tucunduba, após atravessar o rio Ceará. O
segundo narrador, Maneco, conta história ocorrida em Orós, a da moça com
sapiranga nos olhos. Em “Os Noruegueses do Sabiaguaba” o primeiro narrador se
revela um pouco, ao anunciar ao leitor: “E era isso o que a minha curiosidade
de escritor ia procurar na casa vetusta do Curió.” A narrativa acontece em
Sabiaguaba, “um recanto de praia e bem bonito, por sinal, entre a barra do Rio
Cocó e a do Pacoti.” Em “Chifre de Cabra” o narrador-protagonista é João
Gameleira, o pajem do narrador-escritor. O episódio se dá na cidade de
Quixeramobim. Mulher trai marido, João Gameleira, e é por ele assassinada,
juntamente com o outro. Também história de seca é “A louca”, a lembrar
“Come-Gente”. Nela o ponto de vista onisciente não deixa entrever um
narrador-personagem ou testemunha. O protagonista é Domingos Lopes. Acossado
pela seca, vaga pelos sertões. Depara uma casinhola no meio do sertão. Na
entrada vê “o cadáver dum cachorro magro”. Dentro da casa, “os corpos
apodrecidos de três pequenas crianças”. A seguir, depara a mãe, a louca do
título. Na serra de Baturité acontece o episódio de “O Poço das Piranhas”, a
lembrar velhas narrativas de horror. Outra história de seca é “Os Filhos do
Capitão João Pedro”, ambientada em Fortaleza. Um dos poucos contos em que a
capital cearense, ou o seu litoral, é retratada. “Mano Francisco” se inicia com
“Sertão inóspito!” É o sertão de Mombaça. O protagonista é Francisco, irmão do
narrador-testemunha, “uma coisa medonha”, “um monstro em forma humana”. O tema
é a loucura. O homem “ficou doido varrido”, matou um irmão com a mão-de-pilão e
“está convencido que virou leão!” O ponto de vista onisciente é retomado em “O
Perdão das Trevas”, no qual mais uma vez a seca é tema. Em “O Lobisomem” o
contista “engana” o leitor, desde o título e a primeira frase: “Estórias de
lobisomens!” Na verdade, se trata de história de um falso lobisomem, o vaqueiro
Geraldo, “que tinha fama de homem honesto”, porém mais interessado num pacote
de dinheiro do que em sangue humano. A história transcorre em 1899, na ribeira
do Banabuiú. A última narrativa, “Como eu Matei a Maçaroca”, também se localiza
no sertão, ao tempo dos cangaceiros e de onças, as maçarocas. São diversos
pequenos episódios. O narrador onisciente dá voz ao narrador-personagem, o
anspeçada Xico Linheiro, o matador da onça.
A
matéria-prima dos contos de Praias e Várzeas e Alma Sertaneja é, pois, a
natureza em toda a sua pujança e o homem como ser biológico e como ser
cultural, este integrado àquela não apenas na paisagem, mas na própria vida
(ação), o que faz de Gustavo Barroso um contista (um escritor) pinturesco e, ao
mesmo tempo, dramático (drama, conflito) da terra e da gente cearenses.
Fonte: MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos
Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
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