A BICHARIA
Luiz Dantas e Leonardo Mota
QUEM É O AUTOR DE "A BICHARIA"?
Quem será mesmo o autor do célebre poema "A BICHARIA", recolhido por Leonardo Mota e publicado por Luiz Dantas Quezado em seu livro "Glosas Sertanejas", e pelo próprio Leota em seu "Cantadores", de 1921?
Leandro Gomes de Barros? João Martins de Athayde? Luiz Dantas Quezado?
Leia esse texto a seguir e tire suas conclusões...
LUIZ DANTAS QUEZADO
Em 1923, quando se preparava para lançar o seu Cantadores, Leonardo Mota recebeu em sua casa a visita do poeta Luiz Dantas Quezado (nascido em 1850 em São João do Rio do Peixe-PB - hoje Antenor Navarro), que vivia no Cariri cearense desde a juventude. O velho poeta encontrava-se em Fortaleza acompanhando a publicação do seu opúsculo Glosas Sertanejas, do qual obtivemos uma cópia fac-similar da 4ª edição “correcta e muito augmentada pelo auctor”, impressa na Tipografia Commercial em 1925. Na oportunidade, Luiz Dantas apresentou à Leota o poema A bicharia, que figura na primeira edição de Cantadores, publicado pela Livraria Castilho, do Rio de Janeiro, em 1921. O tema é antigo... Existe uma versão parecida escrita por Leandro Gomes de Barros (talvez anterior à de Luiz Dantas Quezado), também atribuída ao poeta-empresário João Martins de Athayde. Trata-se de um folheto de 8 páginas. Como os poetas antigos gostavam de reaproveitar temas da oralidade (caso de O valente Vilela, Soldado Jogador etc) é possível que “A bicharia” tenha raízes bem antigas. O tema inspirou o compositor Zé Dantas (Siri jogando bola, gravação de Luiz Gonzaga) e, mais recentemente, o cantor e multi-instrumentista pernambucano Antônio Nóbrega (Coco da Bicharada, incluído no CD O marco do meio-dia). Excelente para ser lido e trabalhado nas escolas, apresentamos aqui a versão de Luiz Dantas:
A BICHARIA
Autor: Luiz Dantas Quezado
Vi um Tiú escrevendo,
Um Camaleão cantando,
Uma Raposa bordando,
Uma Ticaca tecendo,
Um Macaco velho lendo,
Cururu batendo telhas
Um bando de Rãs vermelhas
Trabalhando n’um tissume
Vi um Tatu n’um curtume
Curtindo couro de Abelhas.
Vi um Coati marceneiro,
Vi um Furão lavrador,
Vi um Porco agricultor,
E um Timbu velho ferreiro;
Um Veado sapateiro,
Caitetu tocando “buzo”,
Punaré fazendo fuso,
Aranha tirando empate,
Vi um besouro alfaitate
Cortando roupa de uso!
Vi um peba fogueteiro
Soltando fogos no ar,
Vi Papa-vento mandar
À rua trocar dinheiro;
Carrapato redoleiro
Comendo farofa pura,
Um bando de Tanajuras
Empregado num café;
Vi um percevejo em pé
Com um grajau de rapaduras!
Vi um peixe de chocalho,
Formigão de granadeira,
Vi um camarão na feira
Comprando queijo de coalho,
Vi Calango num trabalho
Melado em mel de furo;
Seis víboras dentro do muro
Conversando em Monarquia,
Imbuá na freguesia
Tomando dinheiro a juro!
Vi mosca batendo sola,
Mucuim tocando flauta,
Caranguejo de gravata
E cabra jogando bola;
Vi pulga tocar viola,
Tamanduá engenheiro,
Guariba tocar pandeiro,
Vi um mosquito tossindo
Uma formiga parindo,
Procotó era o parteiro!
Vi um morcego oculista,
Cachorro vendendo cana
Jaboti de russiana
E um gafanhoto dentista;
Urubu telegrafista
Um gato tabelião,
Carneiro na Relação,
O Bode n’um escritório
Cassote de suspensório
Eu vi fazendo um sermão!
In Glosas Sertanejas, de Luiz Dantas Quezado, 4ª edição “correcta e muito augmentada pelo auctor”, Typ. Commercial – Fortaleza-CE; 1925. O referido poema figura também na primeira edição de Cantadores, de Leonardo Mota, publicado pela Livraria Castilho, do Rio de Janeiro, em 1921
Capa da 4ª edição de "Glosas Sertanejas"
OS BICHOS QUE FALAVAM ou
O QUE VI, NO TEMPO QUE OS BICHOS FALAVAM
Autor: LEANDRO GOMES DE BARROS *
(* Conforme Átila de Almeida/José Alves Sobrinho e Sebastião Nunes Batista, Antologia da Literatura de Cordel – Fundação José Augusto, Natal-RN, 1977)
(TRECHOS)
Vi um Teju escrevendo
Um Camaleão cantando,
Uma Raposa bordando
Uma Ticaca tecendo
Um Burro com um livro lendo,
Um Sapo fazendo telha
Vi mais uma Rã vermelha
Trabalhando num teçume
Vi um Tatu no cortume
Curtindo couro de abelha.
Vi um lacrau enfermeiro
Urubu feito marchante,
Vi um Siri despachante
Vi um Pavão sapateiro
Um Timbu velho ferreiro
Vi uma Pulga tocando,
Uma Preguiça dançando,
Um Guará fazendo covos
Dois Grilos batendo ovos,
E um Jaboti cozinhando.
Vi um mosquito valente
Promotor e advogado,
Com um pelotão formado
De batalhão “Tiradente”
A Muriçoca na frente
Dizendo à Cabra: - Não pode!
Depois amarrou o Bode
Que estava no campo nu,
Mandou prender o Muçu
Por ter raspado o bigode.
Vi Lesma remar canoa,
Peru mestrando um navio,
Sulcando as águas de um rio
Saltando de pôpa à proa.
No saltar de uma camboa
Quando viu, ficou cismado,
No fundo de um valado
Um caranguejo ainda moço
Com a corda no pescoço
Tinha morrido enforcado.
Vi Mosca batendo sola
Vi Pium fazendo lata,
Vi Goiamum de gravata
E a Cabra jogando bola
Coelho tocando viola,
Catita soprando um “buzo”
Jibóia fazendo um fuso
Cotia num desempate
Vi um Besouro alfaiate
Cortando roupa de uso.
Vi um Cachorro copeiro
Vi Saúva agricultora
Vi Cascavel professora
Vi Gafanhoto caixeiro,
Vi Mucurana barbeiro,
Vi Urso vendendo trapo,
Lagarta deu um sopapo
Chamando tudo canalha
Vi Imbuá de navalha
Fazendo a barba d’um sapo.
Vi um Rato fogueteiro
De sócio mais um Jaguar,
Vi Papa-vento mandar
Na rua trocar dinheiro
Carrapato redoleiro
Contando muita bravura
Vi mais uma tanajura
Trabalhando num roçado
Percevejo namorado
Discutindo a formosura.
(...)
Antônio Nóbrega
O COCO DA BICHARADA
Recriação de cantiga e versalhada popular por
Antônio Nóbrega e Wilson Freire
Vou contar, que eu conheço
E você nem acredita:
Uma cidade esquisita
Onde tudo é pelo avesso.
Se quiser dou o endereço
Para visita-la um dia,
Gente lá não tem valia,
Como bicho é tratada
Lá o homem não é nada
Só quem manda é a bicharada.
Avôa, meu Caboré,
Peneira, meu Gavião,
Palmatória quebra dedo,
Palmatória faz vergão.
Quebra tudo, quebra pedra,
Só não quebra opinião.
Vi mosca de camisola,
Vi cavalo num debate,
Vi uma traça alfaiate
Guaxinim tocar viola,
Um siri jogando bola.
Vi um pica-pau ferreiro,
Um veado arruaceiro,
Vi um mosquito tossindo,
Vi uma gata parindo
E o cachorro era o parteiro.
Vi um peixe de chocalho,
Uma perua discreta,
Jabuti que era atleta
Mais veloz que um atalho,
Calango jogar baralho,
Formiga tapando furo,
A lagartixa no muro
Dando uma de alpinista,
E um preá capitalista
Emprestar dinheiro a juro.
Avôa, meu Caboré,
Peneira, meu Gavião,
Palmatória quebra dedo,
Palmatória faz vergão.
Quebra tudo, quebra pedra,
Só não quebra opinião.
Vi um jumento escrevendo
Vi preguiça trabalhando,
Vi a besta reclamando.
Eu vi um morcego lendo,
Caranguejeira tecendo,
Porca em água-de-cheiro,
Vi um cururu faceiro,
Coruja no oculista,
Vi tatu ser maquinista
Lá no metrô de Pinheiros.
Vi a pulga se coçando,
Avestruz tirar encosto,
Vi barata ter bom gosto,
Um bode se barbeando
Um gambá se perfumando,
Seriema ser modelo.
Vi minhoca de cabelo,
Vi cobra de suspensório
Macaco no escritório
Organizar desmantelo.
Avôa, meu Caboré,
Peneira, meu Gavião,
Palmatória quebra dedo,
Palmatória faz vergão.
Quebra tudo, quebra pedra,
Só não quebra opinião.
Vi onça vegetariana
Piolho coçar cabeça,
Vi um burro prestar queixa,
Leão comendo banana.
Vi uma zebra de pijama,
Eu vi um peba engenheiro,
Guariba tocar pandeiro,
Tanajura usando tanga,
Vi o cão chupando manga
Batendo bombo em terreiro.
Texto/Pesquisa: ARIEVALDO VIANA
OBRIGADO PELA VISITA!
AGORA É SÓ COMENTAR...
Esse trabalho do mestre Luiz Dantas Quezado constitui uma obra-prima da Literatura de Cordel. É uma ocorrência de rara inspiração esse tipo de criação imaginativa, dentro de uma perpectiva suprarrealista. A personificação de animais já foi um dos filões mais atraentes da literatura popular, na prosa, na poesia e mesmo na música, a exemplo da composição “Siri Jogando Bola”, do Luiz Gonzaga. A maneira de visualizar situações excêntricas tem sido também muito bem aproveitada pelos mestres da Literatura Universal. Em seu romance “Memórias Póstumas de Braz Cubas”, Machado Diassis descreve o delírio de seu personagem no momento da morte, que chegou a ponto se ver “transformado na Suma Teológica de S. Tomás de Aquino”. Já em seu conto “ O Aleph”, o escritor argentino Jorge Luis Borges narra as visões incríveis de seu pergonagem: “Vi o mar populoso, vi a madrugada e a noite, vi as multidões da América, vi uma teia de aranha prateada no centro de uma pirâmide negra, vi um labirinto quebrado (era Londres), vi os olhos intermináveis fixos em mim, imediatos, como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum refletia minha imagem...”. Como se observa, os poetas têm um link mágico de ideias em sua imaginação febril. Na literatura, a distância entre erudito e popular é um fio muito tênue.
ResponderExcluirParabéns ao cordelista Arievaldo pelo desbloqueio de tanta coisa rara e importante que ele vem publicando em seu blog.
Maravilhoso esse 'link' criado pelo poeta Pedro Paulo entre a poesia popular e autores consagrados da literatura universal, como os geniais Machado de Assis (ou Diassis), Jorge Luis Borges e o teólogo cristão S. Thomás de Aquino. Na verdade, o fio que separa o "popular" do "erudito" é muito tênue, invisível, indecifrável... Melhor mesmo é a definição de Ariano Suassuna: segundo ele, não existe cultura "erudita" ou cultura "popular". O que existe mesmo é CULTURA (boa ou ruim, em ambas as esferas).
ResponderExcluirGostaria que outros experts no assunto, como os poetas Marco Haurelio, Marcos Mairton e Rouxinol do Rinaré também manifestassem a sua opinião nesse espaço.
Meu caro Ari,
ResponderExcluirchamaste pelo meu nome, cá estou eu.
Acho interessante você levantar essa questão do paralelo entre o "popular" e o "erudito". Tenho pensado muito sobre isso e sempre encontro dificuldade para diferenciar uma cultura da outra, se é que dá mesmo para fazer isso.
Se popular for aquilo que está mais perto do povo, ou um tipo de manifestação que surge do povo, ou que as pessoas menos letradas assimilam com mais facilidade, acho que um tipo de manifestação cultural que hoje é considerada popular, amanhã pode não ser, e vice versa.
Mas o que me incomoda mesmo é quando se usa a palavra "popular" para desqualificar, tornar menor. Talvez o cordel tenha sofrido com isso, tratado por muitos anos como uma "literatura popular".
Só pra finalizar, é por isso que sempre me refiro ao blog "Mundo Cordel", como instrumento de difusão da cultura, e não da cultura popular.
Gostaria de mais detalhes da vida de jose alves sobrinho urgente
ResponderExcluirO poeta José Alves Sobrinho deixou uma vasta obra escrita e faleceu muito recentemente. É possível entrar em contato com familiares e adquirir parte de sua obra em Campina Grande-PB.
ExcluirPena que muitos não consegue enxergar aí uma cultura brasileira que desvia ser melhor apoiada pelos setores educacionais e outros.
ResponderExcluirO cordel está conquistando o seu espaço dia após dia e obtendo o respeito de muitos educadores em todo o Brasil. Não é a toa que o MEC, através do PNBE, vem adquirindo obras em CORDEL para as bibliotecas escolares de todo o país. Estamos também na FEIRA INFANTO JUVENIL DE LIVROS DA BOLONHA, Itália, o evento mais importante do gênero em todo o mundo.
ResponderExcluirMuito legal esses cordeis
ResponderExcluirPorque no texto *No tempo que os bichos falavam* é considerado um folheto de cordel
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