OS CORDÉIS QUE SUASSUNA UTILIZOU
NO AUTO DA COMPADECIDA
No último dia 7 de
janeiro o caderno VERSO, do Diário do Nordeste, publicou ampla matéria sobre a reprise
da série O AUTO DA COMPADECIDA, direção de Guel Arraes, inspirado na obra do
mestre Ariano Suassuna. Na ocasião, o repórter Diego Barbosa me entrevistou a
respeito dos folhetos de Leandro Gomes de Barros e outros poetas que tiveram
influência direta sobre a obra de Suassuna. Confiram a íntegra da entrevista:
1- De que forma uma das
principais obras de Ariano Suassuna, “O Auto da Compadecida”, influenciou seu
trabalho no posto de cordelista? Houve essa influência?
R – Posso dizer que foi o contrário. Conheci a obra de
Leandro Gomes de Barros, a principal referência na obra de Suassuna, uns vinte
anos antes de conhecer “O Auto da Compadecida”. Não achei a menor graça naquela
adaptação dos “Trapalhões”, porém a do Guel Arraes, para a Rede Globo, foi
formidável. Ele valorizou todos os aspectos da cultura popular nordestina,
sobretudo da Literatura de Cordel. Eu que já conhecia os textos dos cordéis,
enfeixados no livro “Violeiros do Norte”, de Leonardo Mota, publicado em 1926,
fiquei encantado com o modo como Suassuna costurou o seu enredo, valendo-se das
passagens mais engraçadas e marcantes dos folhetos para criar as ações e os
diálogos de seus personagens. Essas estrofes de “O Dinheiro” (Leandro Gomes de
Barros, 1909) são emblemáticas e alguns versos foram utilizados na fala do
Padre João, personagem vivido pelo grande Rogério Cardoso:
Um inglês tinha um
cachorro
De uma grande
estimação
Morreu o dito cachorro
E o inglês disse
então:
― Mim enterra esse
cachorro
Inda que gaste um
milhão
Foi ao vigário, lhe
disse:
― Morreu cachorra de
mim
E urubu do Brasil
Não poderá dar-lhe fim
― Cachorro deixou
dinheiro?
Pergunta o Vigário
assim...
― Mim quer enterrar
cachorra!
Disse o vigário: ― Oh!
Inglês!
Você pensa que isto
aqui
É o país de vocês?
Disse o inglês: ― Oh!
Cachorra
Gasta tudo desta vez
Ele antes de morrer
Um testamento aprontou
Só quatro contos de
réis
Para o vigário deixou
Antes de o inglês
findar
O vigário suspirou
― Coitado! ― Disse o vigário,
De que morreu esse pobre?
Que animal inteligente!
Que sentimento tão nobre!
Antes de partir do
mundo
Fez-me presente do
cobre!
Leandro Gomes de Barros, por Jô Oliveira
2- Você escreveu a
biografia do Leandro Gomes de Barros, que foi quem escreveu alguns cordéis que
inspiram os episódios do Auto da Compadecida. Me explique melhor como aconteceu
essa influência de Leandro sobre a escrita do clássico de Suassuna. De fato,
houve essa conexão da escrita entre os dois? Que cordéis específicos foram
esses?
R – Ariano tinha na figura do seu pai, João Suassuna, ex-governador
da Paraíba assassinado após a Revolta de 1930, a sua maior referência. O livro
“Violeiros do Norte”, de Leota, é de 1926 e traz uma dedicatória ao pai do
dramaturgo paraibano. Pode-se dizer que este livro foi uma das leituras
prediletas de Ariano desde a infância, pois fazia parte da biblioteca de seu
pai. Na opinião de Bráulio Tavares, autor de ABC de Ariano Suassuna (José
Olympio Editora, 2ª edição, p. 25) “a Literatura de Cordel, que Ariano conheceu
ainda menino, em Taperoá-PB, viria a ser uma das fontes inspiradoras não apenas
de sua obra literária, mas do próprio Movimento Armorial, sua intervenção mais
consistente e deliberada na cultura brasileira.” Apesar da tragédia familiar
causada pela morte de seu pai e as constantes mudanças que a viúva e os filhos
foram forçados, a biblioteca de João Suassuna foi preservada por seu cunhado
Manuel Dantas Vilar, tio materno de Ariano e aqueles livros, certamente,
constituíam um tesouro na infância e adolescência do futuro escritor. Os
folhetos divulgados por Leota e inclusos na trama d’O Auto da Compadecida são:
“O Dinheiro” e “O cavalo que defecava dinheiro”, de Leandro Gomes de Barros e
“O Castigo da Soberba”, de Silvino Pirauá de Lima. Além destes, podemos incluir
também “As proezas de João Grilo”, do poeta pernambucano João Ferreira de Lima.
3- De forma geral, qual
a relação do “Auto da Compadecida” com o cordel, de uma forma geral?
R – Sem exageros eu posso afirmar que sem o Cordel essa peça
não existiria e, se existisse, não teria tido metade da aceitação que teve por
parte do público. Os lances mais engraçados da obra, como o testamento e
enterro da cachorra, o animal que defecava moedas de ouro, a gaita mágica que
ressuscita defuntos e até mesmo a burla da bexiga cheia de sangue de galinha
estão nos folhetos de Leandro, que certamente baseou-se em contos populares,
transmitidos oralmente geração após geração. Daí a empatia imediata que o
público teve pela obra, ao reconhecer de imediato as velhas matrizes de
histórias que faziam parte de sua tradição oral. Convém lembrar que outras
obras realizadas a partir do romanceiro popular nordestino também obtiveram
grande sucesso. Nessa lista eu incluiria os filmes “O homem que virou suco” (filme brasileiro de 1981 dirigido por
João Batista de Andrade e estrelado pelo ator José Dumont) e “O
homem que desafiou o diabo” (filme de 2007, dirigido por Moacyr Góes,
baseado na obra As Pelejas de Ojuara
do escritor potiguar Nei Leandro de Castro). Citaria também as novelas
“Saramandaia”, de 1976, que tinha em sua trilha a canção Pavão Mysteriozo, do
cearense Ednardo e outra mais recente, intitulada “Cordel do Fogo Encantado”. O
cordel também tem feito muito sucesso nas adaptações para teatro. Em 2006 o
“Grupontapé de Teatro”, de Uberlândia-MG, dirigido por Fernando Limoeiro,
ganhou um prêmio da Funarte com a adaptação de um dos meus folhetos, “O
batizado do gato”, que escrevi e publiquei em 2000 e hoje se encontra na oitava
edição.
4- Por que, em sua
visão, a série “O Auto da Compadecida” marcou tanto e como você acha que o
público a receberá hoje?
R – O Auto da Compadecida é uma das obras-primas da
dramaturgia brasileira e a adaptação que Guel Arraes fez para a televisão e o
cinema conseguiu reunir um dos melhores elencos da dramaturgia brasileira. Não
é todo filme que consegue reunir, numa só tacada, atores como Fernanda
Montenegro, Lima Duarte, Rogério Cardoso, Diogo Vilela, Marco Nanini, Matheus
Nashtergaele e Selton Melo num mesmo time, numa produção tão bem cuidada, com
cenários tão ricos e trilha sonora tão adequada. Tudo ali é perfeito, ao
contrário da adaptação de “A Pedra do Reino”, por Luís Fernando Carvalho, que
acabou se tornando, a meu ver, um grande equívoco. Apesar do esforço do diretor
e da superprodução, o resultado soou meio hermético, incompreensível para o
grande público. Eu, particularmente, gostei bastante, sobretudo pelo lado
burlesco e grandiloquente, mas o público comum não está habituado a esse tipo
de produção. Na minha opinião, essa versão de O Auto da Compadecida é como as
comédias de Charlie Chaplin. É atemporal.
5- Qual legado o
programa deixa para a cultura brasileira tendo em vista o reconhecimento dado à
regionalidade nordestina?
R – Acho que o cinema brasileiro teria dado largas passadas
se tivesse seguido essa fórmula tão bem engendrada pela produção de “O Auto da
Compadecida”. Na esteira de seu sucesso, tivemos, pelo menos, dois filmes
interessantes: “Lisbela e o Prisioneiro” e o já mencionado “O homem que
desafiou o diabo”. Conversando outro dia com o cineasta Rosemberg Cariry ele me
confidenciou que seu maior sonho é fazer uma adaptação do Romance do Pavão Misterioso com todos os efeitos especiais que a
tecnologia permite hoje em dia. Outro texto formidável, na mesma linha do João
Grilo, é A vida de Cancão de Fogo e
seu Testamento, de Leandro Gomes de Barros. Outra obra do poeta paraibano que
tem todos os elementos adequados para um bom filme é O Cachorro dos Mortos, uma história de suspense, na linha de Edgar
Allan Poe, onde três irmãos são mortos barbaramente tendo por única testemunha
um cachorro, que consegue escapar a fúria do assassino e acaba sendo a
principal testemunha do crime. O grande problema, a meu ver, é que sempre que o
cinema e a TV querem utilizar o cordel como fonte de inspiração, não interagem
com o devido respeito, não fazem da mesma maneira de quando se trata de uma
obra “erudita”. Para eles, todo cordel é coisa de “DOMÍNIO PÚBLICO”, algo sem
um criador definido. É preciso ter mais respeito pela chamada CULTURA POPULAR.
Se você reparar bem, nem no livro de Suassuna, nem nas adaptações feitas para o
cinema e a televisão, aparece o nome de LEANDRO GOMES DE BARROS, o verdadeiro
criador dos folhetos e maior responsável pela popularização dessas histórias.
Entrevista concedida à DIEGO BARBOSA - Repórter do Sistema
Verdes Mares | Caderno Verso - Diário do Nordeste