Edson Wander · Goiânia, GO (16/1/2007 )
Entrevista de Arievaldo Viana no Site OVERMUNDO
A assertiva acima é do cordelista Arievaldo Viana, responsável pelo projeto Acorda Cordel na Sala de Aula. Publico abaixo a matéria que fiz sobre o projeto e a conversa que tivemos por email. Já me agendava para trazer esse papo aqui pro Overmundo e fui instigado a apressar a postagem pela entrevista que o Pedro Rocha fez com o pesquisador Gilmar de Carvalho (procurar por "O range-range inquieto...). Aliás, gostaria de ver o que Gilmar diria dessa informação do Arievaldo sobre o analfabetismo de Patativa do Assaré, já que ele escreveu sobre o poeta. Os demais colegas overmundanos podem comentar também sobre a alimentação que se fez na mídia sobre esse "incultismo" de Patativa. Puxei para essa história do Patativa pelo inusitado da coisa (ao menos pra mim), mas o projeto de resgate do cordel capitaneado pelo Arievaldo é o grande lance, tanto que deixei a questão do Patativa no fim da fila da entrevista. O Arievaldo me mandou depois uma outra entrevista muito mais interessante que ele deu a uma pesquisadora universitária que não reproduzo por falta de autorização, que nem quis pedir, aliás. Espero que ele ou ela se animem a trazê-la aqui. Deixei de propósito as respostas dele como me mandou na mensagem, incluindo as diferentes letras em maiúsculas e minúsculas, artifício que eu não pude fazer no jornal. Viva a liberdade editorial Overmundana !
Cordel de classe
Nova geração de poetas nordestinos revive a literatura de cordel
Forma literária secular que se ramificou por outras manifestações artísticas no Brasil (como a xilogravura e o repente), o cordel já foi importante instrumento de alfabetização, transmissão de conhecimentos e incentivo à leitura, especialmente no Nordeteste brasileiro. O auge do cordelismo se deu entre os anos de 1940 e 1950. Quase se extinguiu como cultura de massa, mas está ganhando novo fôlego pelo trabalho de uma nova geração de poetas e chegando às salas de aula pelo projeto Acorda Cordel na Sala de Aula, capitaneado pelo poeta, radialista, ilustrador e publicitário cearense Arievaldo Viana, 39 anos.
Como Arievaldo Viana, há hoje poetas escrevendo novos cordéis – livrinhos de formato e linguagem originais – e reeditando obras de cordelistas importantes do passado, como os paraibanos João Martins de Athayde (1887-1959) e Leandro Gomes de Barros (1865-1918). Esse movimento de revitalização do cordel data do fim dos anos 90, com o surgimento de editoras importantes do gênero como Tupynanquim (de Fortaleza), Coqueiro (Recife) e Queima-Bucha (Mossoró). Em Campina Grande (PB), o cordelista Manoel Monteiro conseguiu implantar um arrojado programa editorial de cordel com apoio dos poderes públicos locais.
O histórico do cordel levantado por Arievaldo no livro Acorda Cordel na Sala de Aula destaca o trabalho de poetas-editores como Pedro Costa (no Piauí), o mineiro Téo Azevedo (do Norte de Minas Gerais) e nordestinos radicados em São Paulo e Rio, como Mestre Azulão, Apolônio Alves dos Santos e Gonçalo Ferreira, que revive os livrinhos em bancas na feira de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Já adotado em escolas de várias cidades, o projeto Acorda Cordel na Sala da Aula contempla um livro homônimo que funciona como um guia do cordel para professores, uma caixa com 12 livrinhos de diferentes autores e um CD com músicas defendidas por repentistas como Geraldo Amâncio, Zé Maria de Fortaleza, Judivan Macedo e Mestre Azulão, além do próprio Arievaldo.
O livro-guia traz as origens e o desenvolvimento do cordelismo no país, as técnicas e modalidades e sugestões de exercícios para se trabalhar com alunos. É ferramenta paradidática da alfabetização ao ensino médio, garante Arievaldo, alfabetizado pela avó com os livrinhos. Em que pese a história da poesia popular ter exemplos de poetas analfabetos ou semi-analfabetos que ficaram famosos por explorarem ou apresentarem essa condição em seus poemas, Arievaldo Viana se apressa em dizer que o projeto Acorda Cordel na Sala de Aula prima por ensinar o cordel de acordo com a norma culta da língua portuguesa.
O livro-guia traz as origens e o desenvolvimento do cordelismo no país, as técnicas e modalidades e sugestões de exercícios para se trabalhar com alunos. É ferramenta paradidática da alfabetização ao ensino médio, garante Arievaldo, alfabetizado pela avó com os livrinhos. Em que pese a história da poesia popular ter exemplos de poetas analfabetos ou semi-analfabetos que ficaram famosos por explorarem ou apresentarem essa condição em seus poemas, Arievaldo Viana se apressa em dizer que o projeto Acorda Cordel na Sala de Aula prima por ensinar o cordel de acordo com a norma culta da língua portuguesa.
“Desde Leandro Gomes que os cordelistas escrevem e defendem a correção da escrita. E há uma diferença entre o cordelismo e a poesia matuta, os próprios poetas matutos não gostavam de serem tratados como cordelistas”, diz, em referência a Zé da Luz (1904-1965) e Patativa do Assaré (1909-2002).
Aquisições do kit do projeto Acorda Cordel na Sala de Aula com o autor pelo e-mail acordacordel@ig.com.br pelo telefone (85) 9909-1745.
Geraldo Gonçalves (filho de Patativa), Kydelmir Dantas,
Arievaldo Viana e o Senador Inácio Arruda
A ENTREVISTA
1 – Li sobre o trabalho da editora Tupynanquim e fiquei curioso por saber se se produz tanto cordel hoje quanto no auge dessa arte, nas décadas de 40 e 50, como você aponta do livro-roteiro do projeto Acorda Cordel na Sala de Aula.
ARIEVALDO - Na década de 1990 o cordel esteve ameaçado de extinção e houve mesmo quem fosse aos jornais e tv's anunciar a sua morte. Li matérias de professores universitários que pesquisam a cultura popular dizendo que só havia sobrevivdo o folheto circunstancial, aquele cordelzinho jornalístico de oito páginas. Eu, particularmente, não gosto de produzir coisas dessa natureza... os únicos cordeis circunstanciais que eu produzi foram sobre a QUEDA DAS TORRES GÊMEAS e a MORTE DO PAPA JOÃO PAULO II, que na verdade é uma biografia de um vulto que eu já admirava... Não foi com interesse oportunista que eu produzi. Tenho mais de oitenta folhetos já publicados, muitos de 32 páginas, que o tradicional "romance". Quando comecei a publicar meus folhetos, no final da década de 90, abracei essa causa com o intuito de revitalizar o cordel e estimulei outras pessoas a produzir e publicar. O poeta MANOEL MONTEIRO de Campina Grande. estava editando seus trabalhos em pequenas tiragens feitas em XEROX... Depois da minha injeção de ânimo voltou a publicar em gráfica, em grandes tiragens de 3 a 5 mil exemplares e aos poucos a gente foi montando um sistema de distribuição para todo o Brasil. Hoje eu vendo e permuto folhetos com poetas de São Paulo (Marco Haurélio), Rio de Janeiro (Mestre Azulão, Marcus Lucenna e Gonçalo Ferreira - o pessoal da ABLC - Academia Brasileira de Liteatura de Corde), da Paraíba (Manoel Monteiro, Astier Basílio), do Rio Grande do Norte (Antonio Francisco e Crispiniano Neto), de Pernambuco (Costa Leite e Marcelo Soares), da Bahia (Bule-Bule), enfim... o cordel repentinamente renasceu em todo buraco. Como diz o poeta Manoel Monteiro, a poesia popular é igual a saúva... não tem quem consiga matar. Hoje, editoras como a TUPYNANQUIM e a QUEIMA-BUCHA são responsáveis pelo lançamento de quase mil títulos, em dezenas de tiragens... Mesmo assim, o cordel ainda não atingiu a mesma intensidade do tempo de João Martins de Athayde, quase se faziam tiragens de até 50 mil exemplares de clássicos como PROEZAS DE JOÃO GRILO e PAVÃO MISTERIOSO.
2 – Na sua opinião, por que a literatura de cordel em prosa não floresceu no Brasil como na Europa ?
Justamente devido à musicalidade do povo brasileiro... Um povo que tem a melodia no sangue e já fala cantando e anda gingando. É natural essa clara preferência pela poesia rimada e metrificada. Mas existem alguns casos de cordel em prosa, só que muito raros aqui no Brasil. Numa coleção de quase quatro mil títulos que eu tenho, existem apenas uns quatro ou cinco textos em prosa. O resto é feito em sextilhas, setilhas e martelos.
3 – São vários exemplos de uso do cordel como fonte de músicas conhecidas. O que move essa proximidade entre cordelistas e músicos? Apenas a poesia como fonte de letra para as canções explica a relação?
O CANTADOR e o CORDELISTA são essencialmente musicais. A questão da métrica está sempre presente e o ritmo de leitura do cordel em voz alta é pura música... Veja o caso de JACKSON DO PANDEIRO... o único tipo de literatura que ele consumiu a vida toda foi o CORDEL. Se você analisar a obra de Jackson, de Luiz Gonzaga, de João do Vale, de Gordurinha e da nova geração de compositores nordestinos, vai ver que todos tiveram influência da cantoria e do cordel. E por que isso? A poesia popular oral foi que deu origem as cantigas, as canções de eito (de trabalho) e está presente no mundo todo... Na Península Ibérica, no México, na Argentina. Só que, ao chegar no Nordeste, não foi impressa como simples "folhas corridas" ou "pliegos sueltos". Lá no México era uma folha de papel ofício dobrada ao meio e ilustrada com uma gravura do grande José Guadalupe Posada, os temas eram muito parecidos com os nossos. A história de bandidos famosos como EL TIGRE DE SANTA JÚLIA, ou as escaramuças de Emiliano Zapatta correspondem aos feitos de Antonio Silvino, Conselheiro, Lampião, Padre Cícero e outros personagens brasileiros. O que diferencia o nosso cordel é o formato. Foi Leandro Gomes de Barros quem primeiro adotou o sistema de dobra a folha de ofício em quatro partes orginando com isso o formato 16x11cm, que sobrevive até hoje. Os folhetos são sempre múltiplos de oito páginas, oito, dezesseis, vinte e quatro, trinta e duas, quarenta e quarenta oito páginas. Podem vir em um, dois ou três volumes, como é o caso de clássicos como ROMANCE DE UM SENTENCIADO, que é uma adaptação do CONDE DE MONTE CRISTO, do Alexandre Dumas. Os trovadores franceses, espanhóis e portugueses narravam os feitos de Carlos Magno e os Doze Pares de França... Donzela Teodora, Jean de Calais, João Grilo, Pedro Malzartes (ou Pedro de Urdemales). Esses temas foram a base do nosso cordel, juntamente com as gestas do Ciclo do Gado (Boi Espácio, Rabicho da Geralda, Boi Vermelhinho, Boi Mandingueiro, Vaca do Burel, etc). Surgiram inicialmente em quadras e em forma de ABCs. Vieram também os ABC's de Jesuíno Brilhante, de Lucas da Feira, do Cabeleira e outros bandidos do primeiro ciclo do cangaço. Essas histórias tinham uma melodia que foram reaproveitadas posteriormente por muitos compositores. Daí que um cara como Zé Ramalho, Ednardo ou Alceu Valença nada mais são que "violeiros eletrificados" ou trovadores eletrônicos, como diz o Belchior.
4 – O hip hop é um complexo de manifestações artísticas norte-americanas que junta canto, dança e grafite. Há paralelo possível entre o hip hop e as técnicas do cordelismo, também uma arte mista que se vale da rima, da xilogravura e eventualmente de músicos (pandeiristas, violeiros)? Inventamos muito antes deles essa tríade artística? Dá para afirmar isso?
Olha, Jackson do Pandeiro foi um dos primeiros caras a fazer uma coisa muito parecida com o RAP. O nosso Coco de Embolada tem o mesmo fraseado melódico. É difícil saber quem copiou quem... Isso vem da raiz africana e está presente em todos os povos onde há influência da cultura negra. O cantor de funk e de "rap" ainda faz uma coisa muito primitiva, com métrica quebrada e rimas forçadas. Uns garotos de uma cidade do interior do Ceará, que já faziam "rap", participaram de umas oficinas que fiz e depois que tiveram noções de métrica, rima e oração (regras básicas da Literatura de Cordel) admitiram que o trabalho deles iria evoluir muito mais depois que tiveram essa influência. A poesia popular nordestina tem muitas ramificações: A CANTORIA, O CORDEL, O ABOIO, O COCO DE EMBOLADA, A POESIA MATUTA e a LITERATURA DE CORDEL propriamente dita, que é a poesia popular impressa. Essa coisa da XILOGRAVURA nem sempre esteve presente. Leandro Gomes de Barros não usava, nem João Martins de Athayde, que foi o maior editor de cordel nas décadas de 20, 30 e 40 do século XX. Editores de menor poder aquisitivo, que não podiam pagar um clichê ou uma zincogravura, foram os primeiros a utilizarem esse recurso, a fazer o casamento do cordel com a xilo. Lógico que o resulto foi enriquecedor, porque une duas forma manifestações artísticas diferentes - a poesia e a gravura. Gabriel O Pensador me surpreendeu ao regravar a música A MULHER QUE VIROU HOMEM, de Jackson do Pandeiro. Além de reforçar essa batida de rap, ainda acrescentou algumas estrofes que não existiam no original e que não ficaram nada a dever à obra de Jackson. Eu geralmente levo essas músicas para as minhas oficinas e as pessoas ficam deslumbradas ao saber disso. Até Raul Seixas fez cordel - As aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor e Os Números são duas músicas onde a estrutura do cordel está presente. Portanto, a contribuição da poesia popular está presente também no ROCK, no xaxado, no baião e, se duvidar, até na fina flor da MPB. Veja por exemplo as músicas "PARATODOS" e "A VIOLEIRA" de Chico Buarque... são pura cantoria.
5 – Fiquei curioso com as informações que você diz ter sobre a erudição de Patativa do Assaré. Fale um pouco mais sobre. Porque isso não foi tão difundido? Ele não quis? Alimentava esse “mito” ou haveria outras razões?
Os primeiros folhetos de PATATIVA eram em linguagem convencional... são dessa safra ALADIM E A LÂMPADA MARAVILHOSA, ABILIO E SEU CACHORRO JUPI e outros. Paralamente ele também fazia sonetos e poemas matutos. Em dado momento ele percebeu que seus poemas matutos tinham melhor aceitação, sobretudo depois que LUIZ GONZAGA gravou a TRISTE PARTIDA. Então ele optou pela poesia matuta, seguindo a escola de CATULO DA PAIXÃO CEARENSE e ZÉ DA LUZ. Foi uma opção. Mas ele nunca negou que tinha influências de Castro Alves, Gonçalves Dias, Camões e outros poetas eruditos, que sempre leu com frequência. Criou-se um mito em torno do Patativa "analfabeto" que não é verdadeiro, embora ele fosse um camponês e convivesse com pessoas desletradas. Talvez dessa convivência é que tenha surgido esse toque de autenticidade na linguagem que ele escolheu para se manifestar artisticamente.
Obrigado pela entrevista.
Esta matéria de EDSON WANDER foi publicada também no jornal O POPULAR, de Goiania-GO,