Ar do vento, Ave Maria
Conto de
Manuel de Oliveira Paiva
Edição de base: Obra
Completa. Rio de Janeiro: Graphia, 1993.
O AR DO
VENTO, AVE MARIA
Ia
a lua sumindo-se lívida, por trás de um cabeço onde se abria o roçado. Por
entre as palhas do milho, — um mar de cobraria esverdeada, com reflexos de
armas brancas em mãos de combatentes revoltos, — fervilhava um sopro álgido que
saía roncando de sob a mata cavernosa das cercanias. Pelo meio da roça
bracejavam uns gigantes magros, pretíssimos, grandes árvores cuja fronde em
tempo fora roída pela queima das coivaras. Em um dos cantos, como rico em seu
sobrado, estava eu na rede muito aereamente armada nos músculos de uma peroba.
Via as árvores salientes como se fossem rochedos, e o cerrado do bosque me
fazia horror. Palavra que me arrependia daquela caçada. Porém, tinha uma fé
extraordinária no uniforme de couro tanado que me modelava dos pés à cabeça. Me
lembrava de que, se visse uma onça, era só enluvar na esquerda o chapeirão e
meter-lhe pela boca adentro, enquanto com a destra lhe furasse corajosamente o
coração com uma facada. Eu via blocos muito escuros 'no meio da claridade morna
que circula no organismo da própria noite.
Verberações
de estrelas abrindo os olhos de fera. Me achava meio nada, meio ser. O
horizonte não existia a tais horas senão para as penetrações luminosas,
nascimento ou sepultação de algum astro. Não havia perspectiva.
De
repente ouvi quebrar mato e estremeci todo. Perguntei a mim mesmo: "Pois
veado faz medo assim?"
Entretanto
o ruído não procurava o roçado, como faria o cervo, para furtar milho; mas
entranhava-se para o meu lado.
Pus-me
debruços, com a espingarda por baixo de mim e o dedo no gatilho. Os meus olhos
apavorados farejavam a direção da caça. Mas, diabo! veado faz medo assim? No
tronco encovado de uma embaúba, cessou o movimento; e em seguida vi
perfeitamente um bicho que, se espojando, rosnava, grunhia, relinchava,
berrava...
—
Fogo! — gritei eu no meu silêncio de horror.
Asneira!
Estou em presença mas é de uma visagem!
Por
fim o monstro arrancou numa carreira furiosa pelo ventre da fioresta, e então
parecia arrastar milheiros de correntes, de latas, de caixões ocos, e
relinchava com o estridor anunciante de uma locomotiva.
—
Burra sem cabeça! cochichei eu, todo encolhido, os cabelos em pé as mãos entre
as pernas apertando o cano da espingarda, o nariz com um arrocho, e os olhos
porejando lágrimas de morte.
Entretanto,
vi que o bicho tinha deixado uma coisa no chão. O que será? Ele já vai longe,
já se não percebe mais a barulheira; desçamos. Desembainhei a faca, prendi-a no
dente, e gatinhei pela árvore abaixo. Ah! nesse momento eu sentia todas as
delícias do pavor! Entretanto, o laço irresistível da curiosidade me chamava
para o pé da embaúba. Então eu me sentia gigante, conquistador, bandido,
valente, capaz de brigar com a floresta inteira, quanto com uma burra de padre.
O
que o bicho deixara no tronco da embaúba, era justamente uma cabeça de mulher,
com o rosto enterrado. Suspendi-a pelos cabelos e ela fez umas caretas
horrorosas!... Larguei-a de repente no chão, como quem solta uma brasa e corri.
Por acaso voltei o rosto e vi que a face daquela cabeça hedionda tinha ficado
para cima. Estava eu, portanto, desgraçado; o bicho, quando viesse, talvez por
descuido, engonçaria a cabeça assim invertida. E me seguirá a pista, porque
ele ficará desesperado... visto que as visages devem ter também as suas leis e
os seus logros.
Felizmente
alcancei a estrada. Como se a massa bipartida da selva fosse adiante de mim se
desorganizando, eu ia distinguindo o que é próximo do que é longe. Me parecia
ver uma árvore, como uma montanha, debruçada sobre o pálido fio da estrada, e,
quando eu me achegava eram muitas árvores separadas, porém, na mesma
trajetória.
Havia
nuvens baixas, que pareciam nebulosas, e outras escuras, modelando selvas
suspensas. O volume absorvia à linha e à superfície. Os insetos vibravam por
todos os cantos. Uns soltavam alaridos compassados, como pulsações de um
coração. Outros um contínuo som brilhante, vivo como estrelas. De quando em vez
um sapo coaxava de lá uma voz grossa, notas do peito. E outro assobiava, como
pelo canto da boca. Tudo parecia esquisitamente embiocado na pilhéria da
escuridão. A mãe-da-lua solfejava as notas inauditas, sobrenaturais, da sua
eterna escala descendente.
Ao
amanhecer, me achei deitado no copiá de uma fazenda, e perguntei ao primeiro
passante que vinha da vila:
—
A amásia do vigário teve alguma cousa, amigo?
—
Um açulero dos diabos, seu moço! Dizem que ela amanheceu com a cabeça torta!
—
Mas você viu-a? Isto é exato?
—
A freguesia está toda cheia.
E
o vaqueiro da fazenda, que acabava de encilhar o seu cavalo de campo, foi
montando e dizendo:
— O
que a mulher tem é o ar do vento...
—
Ave Maria — concluiu o outro se benzendo.
Manuel
de Oliveira Paiva
Escritor
brasileiro, Manuel de Oliveira Paiva, nascido a 12 de julho de 1861, em
Fortaleza, no Ceará, e falecido a 29 de setembro de 1892, na mesma cidade do
Brasil, destacou-se com a obra Dona Guidinha do Poço.
Aos
catorze anos, ingressou no Seminário do Crato, que abandonou no ano seguinte
por se ter desentendido com o padre reitor. Em 1877, vai para o Rio de Janeiro
a fim de estudar na Escola Militar, mas só em 1881 consegue fazer os exames de
admissão.
Enquanto
aluno desta escola começa a sua atividade literária, tendo ainda fundado a
revista A Cruzada, onde publicou o seu folhetim Tal Filha, Tal Esposa. No
entanto, dois anos mais tarde, tem de abandonar a Escola Militar por sofrer de
tuberculose.
Regressa
então ao Ceará onde, enquanto jornalista, luta pelo abolicionismo.
Paralelamente, intensifica a produção literária através de contos, crónicas e
sonetos.
Em
1889 é publicado em folhetins no jornal Libertador o seu romance de estreia, A
Afilhada, e, três anos mais tarde, deixa pronto um novo romance, Dona Guidinha
do Poço, que contudo só viria a ser publicado em 1952. Esta obra é considerada
um dos mais marcantes romances do naturalismo brasileiro.
A
Afilhada foi também editada em livro em 1961.