(Ilustração:
Patativa do Assaré - Infogravura de Arievaldo Viana)
Artur
Pires
Foi
em Assaré, Cariri cearense, que vivi os primeiros anos da minha infância. Nasci
em Barbalha (por vontade de minha mãe, que é de lá), também no Cariri (e viajava
para lá e para o Crato com frequência para visitar a parentada), mas é do Assaré
que carrego as mais remotas reminiscências pueris, lá pelos derradeiros anos da
década de 80. Morávamos eu, meus pais e uma das minhas irmãs numa casa simples e
bonita, de mureta branca e portãozinho de ferro - à vista de todos os que
passavam em frente ao local -, jardim multicor, tomado de flores e plantas, que
davam uma suavizada de brisa leve e fagueira ao calor de suar em bicas que fazia
por aquelas bandas.
As
samambaias suspensas em jarros se espreguiçavam na varanda, os crótons margeavam
os cantos do muro com sua mistura de cores, os beija-flores toda manhã vinham
bicar as papoulas e, pintando parte da paisagem do jardim de encarnado, um
bouganville vermelho recebia cotidianamente a visita de sabiás e bem-te-vis em
seus galhos.
No
quintal, mais pés de plantas: goiaba, ata, mostarda, pimenta malagueta,
pimentão, tomate, capim santo, erva cidreira e erva doce esverdeavam aquela
parte de trás da morada. Os calangos eram vistos aos magotes. Ficavam também por
ali as galinhas de capoeira que minha mãe criava. Nesta fase da infância, meus
animais de estimação eram os pintinhos. Quando brincava com eles, minha mãe
ficava de olho em mim para que não os esmagasse em arrochos desmedidos. Algumas
vezes os vi nascer, naquela luta árdua pela liberdade:
O
pinto dentro do ovo
aspirando
um mundo novo
não
deixa de biliscar,
bate
o bico, bate o bico,
bate
o bico, tico tico
pra
poder se libertar
(Patativa
do Assaré – Lição do Pinto)
De
vez em quando, uma galinha mais gorda era escolhida e ia para a panela. Não
gostava que lhes torcessem o pescoço para matá-las, mas as adorava ao molho ou à
cabidela. Hummmm! Certa vez, mamãe inventou de criar também no quintal um veado,
o Bambi, que pouco tempo depois foi morto por uma cobra.
-
Tenho impressão de que foi cascavel ou coral – diz ela, ainda hoje.
Só
sei que, por conta desse ataque mortal, meus pais eram cheios de cuidados quando
eu e Alana, minha irmã, íamos ao quintal:
-
Cuidado, vocês, que aí tem cobra. Calcem pelo menos uma chinela – dizia mamãe,
com voz firme.
No
tempo de chuva, as gias, os cururus e as rãzinhas de banheiro saíam do brejo e
se entocavam nas matas do jardim e do quintal lá de casa. De noite, era um
coaxado medonho, mas a gente se acostumava. As cigarras, com seu grito agudo,
também surgiam aos montes. Mas eu me vidrava mesmo era nos vaga-lumes e seu
piscar de luzinhas mágico.
-
Chega, Artur, vem ver um vaga-lume!
E
eu saía de onde estivesse, em disparada, para apreciá-lo. E ficava ali,
embasbacado, observando-o, até a hora em que ele cansava de se exibir para mim e
ia embora.
Na
parte interna da morada, móveis amadeirados, escuros e com acabamentos
curvilíneos remetiam a um estilo considerado démodé nos dias de hoje. Foi
num piso de taco de madeira onde dei meus primeiros passos, ainda cambaleantes,
e depois, já craque na arte de andar, brinquei com meu cavalinho feito de cabo
de vassoura.
(Ilustração:
Klévisson Viana, na HQ Lampião)
Próximo
à casa, na esquina, ficava a bodega do seu Canuto, onde meus pais compravam
artigos domésticos e trocavam uma prosa costumeira. Havia também nas
proximidades a bodega do seu Pedro: cachaça, querosene e sabão não faltavam
nunca. A mulher de seu Pedro, dona Lurdes, vendia o melhor dindim da cidade. Foi
ela quem provocou em mim o gosto por picolés.
A
Escola Patativa do Assaré, onde aprendi o bê-a-bá, ficava nas redondezas
da praça da matriz, a principal da cidade. A nossa casa ficava a três quadras de
lá. Às segundas-feiras, fervia naquele quarteirão a feira de alimentos diversos
(desde hortaliças a quebra-queixo), fumo de rolo, roupa e o comércio de artigos
sertanejos (chapéus, gibões, chicotes, peitorais, alpercatas: tudo em couro). A
praça ficava abarrotada. Esbarrões eram frequentes. Vinha gente da serra de
Santana, de Amaro, de Genezaré e de
Aratama. Até de Saboeiro, Antonina do Norte e Tarrafas.
Meus
pais não me deixavam ir só à feira. Claro! Era um meninote de apenas quatro,
cinco anos no máximo. Um pingo de gente, de pele preta, grande sinal de nascença
nas costas, cabelo de índio, parecendo cortado em cuia, boca e olhos miúdos,
curioso e medroso. Ia para a feira com mamãe. Quando ela ia, me levava porque
percebia meu encanto com aquela miscelânea toda da feira do Assaré. Tipos
diversos. Ir àquela feira, que ficava a poucos quarteirões de casa, era como dar
a volta ao mundo. Tudo era novo – e tudo era mágico!
-
Eita que tá crescendo rápido o minino, dona Ana! – dizia Galego, verdureiro onde
mamãe sempre comprava as frutas e verduras lá de casa, bagunçando com seus dedos
grossos e peludos os meus cabelos na altura da testa.
-
É.... Meu neguim! – dizia minha mãe, toda orgulhosa com a cria, novamente
bagunçando meus cabelos à altura da testa.
Após
pegar as laranjas, beterrabas, bananas e hortaliças que Galego separava toda
segunda-feira para ela, me pegava pelo braço e seguíamos o passeio. Entre os
tipos da feira, eu observava com mais atenção os sertanejos, aqueles cabras da
pele engelhada pelo sol castigante do semiárido, das mãos grossas e calejadas
devido ao manejo do arado e da enxada no roçado. Trabalhadores. Enxugavam o suor
da fronte com uma rápida passada de mão. A cabaça d´água amarrada à cintura, a
camisa de botão aberta na altura do peito e o terço envolto no pescoço:
-
Me vê dois rolo pra módi d´eu levar pro Saboeiro!
Fumo
de rolo – que era enrolado na palha do milho - e rapadura eram artigos
imprescindíveis à feira. Quase sempre passeando
entre os feirantes e clientes, lá estava ele, com seu jeito gracioso, simples,
prosador, poético: Patativa do Assaré. Toda segunda-feira, descia a serra de
Santana, distrito de Assaré, e se misturava à multidão. Quando já estava na
cidade, apenas atravessava a rua, pois sua casa em Assaré fica em frente à praça
da matriz.
(Ilustração:
Klévisson Viana, na HQ Lampião)
Patativa
era gênio... E gente! Das melhores! Sua simplicidade era admirável, assim como
sua sabedoria. Devido à amizade do poeta com meu pai e com minha mãe, que era
professora de Isabel, neta dele, fomos diversas vezes à sua casa em Assaré e uma
vez à sua morada na serra de Santana. A
casa era simples: taipa e terra batida. Mas a vida deles ali na serra era digna.
Não havia barriga roncando de fome; se chovesse, a roça dava conta do sustento.
Por isto mesmo, a chuva era a coisa mais
aguardada ao longo do ano. Na seca braba,
o sertanejo se virava como podia: tanajuras, tejos, pebas e preás iam pro
forno. Naquele
dia, fomos convidados para um almoço farto: mugunzá, galinha caipira, milho
assado, banana maçã, melancia, pamonha, jerimum, canjica, cuscuz. Tudo criado,
plantado e colhido ali mesmo. Antes do almoço, quase como um ato ritualístico,
Patativa e os seus entornaram uma terça de cachaça, naqueles copos americanos.
Glut!
De uma vez só, sem fazer careta!
-
É pra módi abrí o apititi – disse um dos parentes do poeta que estavam em volta
da mesa.
Da
casa de Patativa ao lado da praça da matriz, em Assaré, onde fui mais vezes,
carrego flashes de
memória mais vivos, mais detalhados. A cadeira de balanço na sala, onde ele
gostava de se balançar enquanto enrolava seu fumo, já com as mãos trêmulas pelo
peso da idade, mas com a habilidade de quem sabia o que estava fazendo; o grande
pote de barro, sobre o jirau, onde ficava a água que dona Belinha, mulher de
Patativa, me servia num caneco de flandre; a moringa; a grande panela de barro;
o bule onde era servido o café (meus pais adoravam o café de dona Belinha!); as
fotografias familiares antigas, mais parecendo pinturas, decorando as paredes da
casa; e, logicamente, toda a prosa, toda a poesia, toda a oralidade extasiante
do maior poeta popular de todos os tempos. Eu, minino
véi, nem
compreendia a grandeza de Patativa à época, mas adorava ouvir as rimas e
melodias daquela cantoria, sob a voz nasalada, telúrica e verdadeira do
poeta.
Em
1990, meu pai, que era bancário, foi transferido para Redenção, no Maciço de
Baturité. Fomos embora do Assaré, mas aqueles anos vividos ali reverberam em mim
ainda hoje. Voltamos lá algumas vezes, visitamos Patativa. Ele veio nos visitar
certa vez, quando já morávamos em Fortaleza. As lembranças do Assaré não estão
guardadas na memória à toa. Sempre que ameaço esquecê-las, elas vêm à tona para
me reavivar e mostrar a beleza da simplicidade e da sabedoria sertaneja:
plantar, colher, comer. Viver! Com prosa... E poesia!
Vida
eterna a Patativa e ao Assaré!
(Xilogravura/ilustração:
Arievaldo Viana)
Mas
porém vou lhe contá,
as
coisa aqui como é,
sou
fio do Ceará,
nascí
aqui no Assaré,
...
Nesta
bôa terra nossa
quando
é tempo de invernada
bota
girmum chega a roça
fica
toda encaroçada
...
Não
sendo tempo de fome
sinhô
douto pode crê,
nesta
terra o cabra come
até
a barriga inchê,
nem
carne, nem macarrão,
mas
porém mio e feijão
e
farinha é a vontade,
nimguém
come da ração
como
se faz na pensão
lá
das rua da cidade
...
Tô
lhe contando a certeza
das
coisa do meu sertão,
aqui
ninguém tem riqueza
mas
porém tem munta ação
(Patativa
do Assaré – Ilustrismo Senhô Doutô)
Raramente publico textos de outros autores neste espaço, mas resolvi reproduzir esse belo texto do amigo ARTUR PIRES - Jornalista e Especialista em Docência do Ensino Superior, ambas pela UFC - e blogueiro, pela beleza lúdica e telúrica que o mesmo contém.