PORQUE O CEARENSE DEU O NOME DE “AVOANTE”
À POMBA DE BANDO
Esta
semana caiu-me às mãos um exemplar de um livreto assaz curioso, publicado em
1921, intitulado Curiosidades e Factos Notáveis do Ceará (128
páginas), da autoria do professor João Gonçalves Dias Sobreira, editado no Rio
de Janeiro pela Typ. Desembargador Lima Drummond. Seu autor foi um professor
primário e telegrafista*, nascido no Crato, em setembro de 1847, que cursou o
seminário da Prainha, em Fortaleza, até a altura dos estudos teológicos.
É autor de várias obras didáticas,
inclusive de uma Simplificação da Grammatica Portugueza, de 1885, aprovada pela
Secretaria da Instrução Pública do Ceará e de uma Geographia Especial do Ceará,
adotadas para servirem de compêndio pelas escolas do Estado.
Nesse opúsculo de 1921 encontra-se
uma curiosa explicação para o termo “avoante”, nome pelo qual os cearenses e
nordestinos em geral conhecem a pomba de bando (Zenaida Auriculata), ave de
arribação oriunda do continente africano.
Segundo o professor J. G. Dias
Sobreira, a Câmara Municipal de Quixeramobim, famosa por haver deposto o
Imperador D. Pedro I e deflagrado a Confederação do Equador no distante ano de
1824, durante a grande seca de 1845 resolveu censurar o nome “pomba”, certamente por
excesso de pudor, já que aqui no Nordeste é um dos muitos sinônimos pelo qual
se conhece o órgão sexual masculino. Eis o que diz o texto do escritor
cratense:
“Na grande seca de 1845, a Câmara Municipal de Quixeramobim, vendo o nome
d'essas aves não lhe soava bem, entendeu de reunir-se em sessão especial, e
determinou, sob pena de prisão, que d'ali em diante fossem chamadas “avoantes”,
nome pelo qual são elas hoje conhecidas, em todo Ceará.” [p. 24]
Isso nos remete a uma estrofe do
cantador Zé Porfírio, que tendo derrotado um repentista da cidade de Pombal, numa
peleja realizada em solo cearense, recebeu do oponente uma "intimação" para uma
revanche em Pombal, na Paraíba. Zé Porfírio, que não tinha nada de besta,
respondeu nesses termos:
À cidade de Pombal?
Eu vou lá é uma pitomba...
O cantador que for lá
Com certeza se arromba;
Que eu não passo dez minutos
num lugar que só tem POMBA!
* NOTA - Segundo o Barão de Studart (Diccionário Bio-bibliográfico Cearense)
foi professor do Liceu do Ceará. Em 1893, desgostoso com o magistério,
transferiu-se para o Rio de Janeiro, então capital da República, onde prestou
concurso e exerceu o ofício de telegrafista.
Por conta de tudo isso, recordei-me,
então, de um texto que publiquei em junho de 2011 aqui mesmo, no blog “Acorda
Cordel”. Postagem essa que bateu record de visitas e comentários, sendo ainda
hoje uma das mais acessadas. Ei-la na íntegra, tal e qual foi postada em
21/06/2011:
AVES DE ARRIBAÇÃO
Hoje pela manhã, fazendo o trajeto
Fortaleza – Caridade, vi pela janela do ônibus milhares e milhares de avoantes
(cujo nome cientifico é Zenaida Auriculata) em migração. O espetáculo é
belíssimo e impressiona pela solidariedade de alguns grupos que parecem voar em
círculos esperando os retardatários.
Os caçadores, pressentido a sua
chegada, que acontece no final da quadra invernosa nordestina entram
imediatamente em ação abatendo-as sem piedade e, o que é pior, destruindo os
pombais onde as mesmas depositam seus ovos.
Na Revista Brasileira de Zoologia,
Vol. 3. Número 7, Curitiba, 1986, encontramos essa informação sobre a presença
dessas aves na Caatinga Nordestina:
“Na região da caatinga brasileira, a avoante é novamente encontrada em
grandes números, referindo-se a ela vários cronistas do século passado e início
deste como um auxílio divino às populações humanas carentes, sempre nidificando
no solo em colônias. Somente em meados desse século aparecem os primeiros
relatos científicos sobre sua nidificação no solo de caatinga (Ihering, 1935).
O primeiro autor a se preocupar mais profundamente com o assunto foi Álvaro
Aguirre, produzindo vasta bibliografia sobre as colônias de reprodução e
hábitos alimentares. Seu trabalho mais completo foi publicado em 1976,
dissecando os conhecimentos existentes sobre a biologia, ecologia e utilização
desse recurso natural renovável pelo nordestino (Aguirre, 1976).
Todos esses autores referem-se à população nordestina de Zenaida
aureculata como a única a nidificar colonialmente no chão, considerada
característica peculiar à subespécie da região (Z. a. noronha). Fora do
Nordeste, há notas sobre ninhos isolados no solo no Estado de São Paulo
(Aguirre, 1972) e em pequenas colônias no Equador (Marchant in Goodwin, 1970)
Desde 1979, o problema do abate ilegal de avoantes na região Nordeste
vem preocupando de perto o Departamento de Parques Nacional do IBDF. A partir
daquele ano tem início uma série de trabalhos de campo melhor compreensão do
fenômeno e para a conservação desse recurso natural renovável, sobre-explorado
e colocado em risco de extinção pela exploração irracional para comércio da
carne de avoante salgada. A partir de 1982, o trabalho, que visa principalmente
compreender, através de anilhamento, os movimentos da espécie na região conta
com o apoio do CNPq.”
Como já foi dito, a avoante é uma ave
de imigração que aparece em determinada época do ano no sertão nordestino. A
avoante chega na quadra de fins d’água, em bandos, nas caatingas, passando nos
lugares onde encontra o capim-milhã, que é a alimentação que prefere. Os
caçadores, apesar da forte vigilância do IBAMA, entram em ação e abatem uma
quantidade enorme, que são vendidas nas feiras. É um massacre injustificado que
ameaça a preservação dessa espécie. O que mais impressiona é a crueldade dos
caçadores que, não satisfeitos em abater milhares de aves, ainda se comprazem
em pisotear os ninhos (feitos geralmente no chão) pelo simples prazer de
destruir os ovos. No nordeste brasileiro a pomba-avoante (“avoante”) parece ter
o seu padrão de migração em função ao regime de precipitação pluviométrica.
* * *
Aproveito o ensejo para
publicar também, na íntegra, o texto de J.G. Dias Sobreira, publicado em “Curiosidades
e Factos Notáveis do Ceará” (páginas 22 a 24). Nesse trabalho ele descreve
minuciosamente o processo de captura e abate das aves, tal e qual meu avô me
contava nos primórdios da minha infância.
AVES DE ARRIBAÇÃO
Um fenômeno, que se manifesta, nas
grandes secas, é o número prodigioso de aves de arribação. Nos anos comuns,
ninguém dá noticia d'essas aves. Não se sabe de onde procedem; o certo é que elas
se aglomeram em tamanhos bandos, que ao passarem voando, não se enxerga o ar do
lado oposto, que elas atravessam! Estando pousadas e espantando-se, voam todas
a um só tempo, produzindo um forte ruído ou estrondo, como de um trovão longínquo.
Alguns meses, depois do seu aparecimento,
chega o tempo da postura. Então afluem todas para um ponto da mata e a esta
reunião dão-lhe o nome de pombal. Cada uma põe somente dois ovos, mas a
quantidade delas é tamanha que, uma semana depois, juntam-se cargas e mais
cargas de ovos, que elas põem a granel, espalhados em toda a extensão ocupada
pelo pombal! Juntam-nos e os cozinham duros para não se machucarem e os levam
aos mercados. É alimento saborosíssimo e tem o gosto do ovo de galinha.
Só vendo-se (parece fábula) a reunião
daquela multidão sem conta, e apesar da destruição, por todos os meios, elas
reproduzem-se consideravelmente, nesses pombais! Havendo secado as aguas, elas
procuram onde beber, e só a podem encontrar em algum açude. Para lá dirige-se
toda aquela imensa quantidade de pombas sequiosas, a beber com grande avidez.
Os moradores julgam-se, então, com a
vida ganha; porque não lhes faltará, tão cedo, carne nem dinheiro. Armam
barracas ou esperas de ramos bem tapadas, dispondo uma travessa encostada
n'agua, sobre a qual as incautas e sequiosas pombas vão pousar afim de saciar a
sede. Pousam ali aos montões, aos milhões! Introduzem n'agua o bico até acima
dos olhos; tal é o afã, a ansiedade com que elas pousam para beber!
Aquela turba multa não se apercebe
que as suas companheiras estão desaparecendo, logo após! O homem, que está
escondido na espera ou barraca, metido n'agua, que as pombas vão beber, vai
puxando-as pelo bico e estrangulando-as, em tamanha quantidade, que, em um
quarto de hora, já tem juntas mais de um milheiro!
Quando julgam já ser bastante, saem
do esconderijo e vão prepara-las para o seu sustento e da família; mas, como
sobra, em demasia, depois de salgadas, expõem-nas ao secar ao sol. Depois de
bem enxutas, levam-nas em cargas e mais cargas aos mercados para vende-las. Negociantes
ha que as compram em tanta quantidade, ao ponto de encherem armazéns até ao teto.
É o refrigério da pobreza, é o maná, que Deus envia para sustento d'aquela onda
sem conta de flagelados, que a grande seca os reduziu à miséria!
Na grande seca de 1845, a Câmara
Municipal de Quixeramobim, vendo o nome d'essas aves não lhe soava bem,
entendeu de reunir-se em sessão especial, e determinou, sob pena de prisão, que
d'ali em diante fossem chamadas “avoantes”, nome pelo qual são elas hoje
conhecidas, em todo Ceará.
( Curiosidades e Factos Notáveis do Ceará, págs. 22 a 24)