sábado, 1 de fevereiro de 2020

"POMBA", PALAVRA PROIBIDA!



PORQUE O CEARENSE DEU O NOME DE “AVOANTE” À POMBA DE BANDO

Esta semana caiu-me às mãos um exemplar de um livreto assaz curioso, publicado em 1921, intitulado Curiosidades e Factos Notáveis do Ceará (128 páginas), da autoria do professor João Gonçalves Dias Sobreira, editado no Rio de Janeiro pela Typ. Desembargador Lima Drummond. Seu autor foi um professor primário e telegrafista*, nascido no Crato, em setembro de 1847, que cursou o seminário da Prainha, em Fortaleza, até a altura dos estudos teológicos.

É autor de várias obras didáticas, inclusive de uma Simplificação da Grammatica Portugueza, de 1885, aprovada pela Secretaria da Instrução Pública do Ceará e de uma Geographia Especial do Ceará, adotadas para servirem de compêndio pelas escolas do Estado.

Nesse opúsculo de 1921 encontra-se uma curiosa explicação para o termo “avoante”, nome pelo qual os cearenses e nordestinos em geral conhecem a pomba de bando (Zenaida Auriculata), ave de arribação oriunda do continente africano.

Segundo o professor J. G. Dias Sobreira, a Câmara Municipal de Quixeramobim, famosa por haver deposto o Imperador D. Pedro I e deflagrado a Confederação do Equador no distante ano de 1824, durante a grande seca de 1845 resolveu censurar o nome “pomba”, certamente por excesso de pudor, já que aqui no Nordeste é um dos muitos sinônimos pelo qual se conhece o órgão sexual masculino. Eis o que diz o texto do escritor cratense:

“Na grande seca de 1845, a Câmara Municipal de Quixeramobim, vendo o nome d'essas aves não lhe soava bem, entendeu de reunir-se em sessão especial, e determinou, sob pena de prisão, que d'ali em diante fossem chamadas “avoantes”, nome pelo qual são elas hoje conhecidas, em todo Ceará.” [p. 24]

Isso nos remete a uma estrofe do cantador Zé Porfírio, que tendo derrotado um repentista da cidade de Pombal, numa peleja realizada em solo cearense, recebeu do oponente uma "intimação" para uma revanche em Pombal, na Paraíba. Zé Porfírio, que não tinha nada de besta, respondeu nesses termos:

À cidade de Pombal?
Eu vou lá é uma pitomba...
O cantador que for lá
Com certeza se arromba;
Que eu não passo dez minutos
num lugar que só tem POMBA!


* NOTA - Segundo o Barão de Studart (Diccionário Bio-bibliográfico Cearense) foi professor do Liceu do Ceará. Em 1893, desgostoso com o magistério, transferiu-se para o Rio de Janeiro, então capital da República, onde prestou concurso e exerceu o ofício de telegrafista.



Por conta de tudo isso, recordei-me, então, de um texto que publiquei em junho de 2011 aqui mesmo, no blog “Acorda Cordel”. Postagem essa que bateu record de visitas e comentários, sendo ainda hoje uma das mais acessadas. Ei-la na íntegra, tal e qual foi postada em 21/06/2011:



AVES DE ARRIBAÇÃO

Hoje pela manhã, fazendo o trajeto Fortaleza – Caridade, vi pela janela do ônibus milhares e milhares de avoantes (cujo nome cientifico é Zenaida Auriculata) em migração. O espetáculo é belíssimo e impressiona pela solidariedade de alguns grupos que parecem voar em círculos esperando os retardatários.

Os caçadores, pressentido a sua chegada, que acontece no final da quadra invernosa nordestina entram imediatamente em ação abatendo-as sem piedade e, o que é pior, destruindo os pombais onde as mesmas depositam seus ovos.

Na Revista Brasileira de Zoologia, Vol. 3. Número 7, Curitiba, 1986, encontramos essa informação sobre a presença dessas aves na Caatinga Nordestina:

“Na região da caatinga brasileira, a avoante é novamente encontrada em grandes números, referindo-se a ela vários cronistas do século passado e início deste como um auxílio divino às populações humanas carentes, sempre nidificando no solo em colônias. Somente em meados desse século aparecem os primeiros relatos científicos sobre sua nidificação no solo de caatinga (Ihering, 1935). O primeiro autor a se preocupar mais profundamente com o assunto foi Álvaro Aguirre, produzindo vasta bibliografia sobre as colônias de reprodução e hábitos alimentares. Seu trabalho mais completo foi publicado em 1976, dissecando os conhecimentos existentes sobre a biologia, ecologia e utilização desse recurso natural renovável pelo nordestino (Aguirre, 1976).
Todos esses autores referem-se à população nordestina de Zenaida aureculata como a única a nidificar colonialmente no chão, considerada característica peculiar à subespécie da região (Z. a. noronha). Fora do Nordeste, há notas sobre ninhos isolados no solo no Estado de São Paulo (Aguirre, 1972) e em pequenas colônias no Equador (Marchant in Goodwin, 1970)
Desde 1979, o problema do abate ilegal de avoantes na região Nordeste vem preocupando de perto o Departamento de Parques Nacional do IBDF. A partir daquele ano tem início uma série de trabalhos de campo melhor compreensão do fenômeno e para a conservação desse recurso natural renovável, sobre-explorado e colocado em risco de extinção pela exploração irracional para comércio da carne de avoante salgada. A partir de 1982, o trabalho, que visa principalmente compreender, através de anilhamento, os movimentos da espécie na região conta com o apoio do CNPq.”

Como já foi dito, a avoante é uma ave de imigração que aparece em determinada época do ano no sertão nordestino. A avoante chega na quadra de fins d’água, em bandos, nas caatingas, passando nos lugares onde encontra o capim-milhã, que é a alimentação que prefere. Os caçadores, apesar da forte vigilância do IBAMA, entram em ação e abatem uma quantidade enorme, que são vendidas nas feiras. É um massacre injustificado que ameaça a preservação dessa espécie. O que mais impressiona é a crueldade dos caçadores que, não satisfeitos em abater milhares de aves, ainda se comprazem em pisotear os ninhos (feitos geralmente no chão) pelo simples prazer de destruir os ovos. No nordeste brasileiro a pomba-avoante (“avoante”) parece ter o seu padrão de migração em função ao regime de precipitação pluviométrica. 


* * *
Aproveito o ensejo para publicar também, na íntegra, o texto de J.G. Dias Sobreira, publicado em “Curiosidades e Factos Notáveis do Ceará” (páginas 22 a 24). Nesse trabalho ele descreve minuciosamente o processo de captura e abate das aves, tal e qual meu avô me contava nos primórdios da minha infância.


AVES DE ARRIBAÇÃO

Um fenômeno, que se manifesta, nas grandes secas, é o número prodigioso de aves de arribação. Nos anos comuns, ninguém dá noticia d'essas aves. Não se sabe de onde procedem; o certo é que elas se aglomeram em tamanhos bandos, que ao passarem voando, não se enxerga o ar do lado oposto, que elas atravessam! Estando pousadas e espantando-se, voam todas a um só tempo, produzindo um forte ruído ou estrondo, como de um trovão longínquo.

Alguns meses, depois do seu aparecimento, chega o tempo da postura. Então afluem todas para um ponto da mata e a esta reunião dão-lhe o nome de pombal. Cada uma põe somente dois ovos, mas a quantidade delas é tamanha que, uma semana depois, juntam-se cargas e mais cargas de ovos, que elas põem a granel, espalhados em toda a extensão ocupada pelo pombal! Juntam-nos e os cozinham duros para não se machucarem e os levam aos mercados. É alimento saborosíssimo e tem o gosto do ovo de galinha.

Só vendo-se (parece fábula) a reunião daquela multidão sem conta, e apesar da destruição, por todos os meios, elas reproduzem-se consideravelmente, nesses pombais! Havendo secado as aguas, elas procuram onde beber, e só a podem encontrar em algum açude. Para lá dirige-se toda aquela imensa quantidade de pombas sequiosas, a beber com grande avidez.

Os moradores julgam-se, então, com a vida ganha; porque não lhes faltará, tão cedo, carne nem dinheiro. Armam barracas ou esperas de ramos bem tapadas, dispondo uma travessa encostada n'agua, sobre a qual as incautas e sequiosas pombas vão pousar afim de saciar a sede. Pousam ali aos montões, aos milhões! Introduzem n'agua o bico até acima dos olhos; tal é o afã, a ansiedade com que elas pousam para beber!

Aquela turba multa não se apercebe que as suas companheiras estão desaparecendo, logo após! O homem, que está escondido na espera ou barraca, metido n'agua, que as pombas vão beber, vai puxando-as pelo bico e estrangulando-as, em tamanha quantidade, que, em um quarto de hora, já tem juntas mais de um milheiro!

Quando julgam já ser bastante, saem do esconderijo e vão prepara-las para o seu sustento e da família; mas, como sobra, em demasia, depois de salgadas, expõem-nas ao secar ao sol. Depois de bem enxutas, levam-nas em cargas e mais cargas aos mercados para vende-las. Negociantes ha que as compram em tanta quantidade, ao ponto de encherem armazéns até ao teto. É o refrigério da pobreza, é o maná, que Deus envia para sustento d'aquela onda sem conta de flagelados, que a grande seca os reduziu à miséria!

Na grande seca de 1845, a Câmara Municipal de Quixeramobim, vendo o nome d'essas aves não lhe soava bem, entendeu de reunir-se em sessão especial, e determinou, sob pena de prisão, que d'ali em diante fossem chamadas “avoantes”, nome pelo qual são elas hoje conhecidas, em todo Ceará. 

(Curiosidades e Factos Notáveis do Ceará, págs. 22 a 24)


quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

HISTÓRIA EXTRAORDINÁRIA



O Super-Homem de Quixeramobim

No distante ano de 1921 foi publicado um interessante opúsculo intitulado Curiosidades e Factos Notáveis do Ceará (128 páginas numeradas), da autoria do  Professor João Gonçalves Dias Sobreira, editado no Rio de Janeiro pela Typographia Desembargador Lima Drummond. Seu autor foi um professor primário e telegrafista, nascido no Crato, que cursou o seminário da Prainha, em Fortaleza, até a altura dos estudos teológicos. Segundo o Barão de Studart (Diccionário Bio-bibliográfico Cearense) foi professor do Liceu do Ceará. Em 1893, desgostoso com o magistério, transferiu-se para o Rio de Janeiro, então capital da República, onde prestou concurso e exerceu o ofício de telegrafista.



É autor de várias obras didáticas, inclusive de uma Simplificação da Grammatica Portugueza, de 1885, aprovada pela Secretaria da Instrução Pública do Ceará e de uma Geographia Especial do Ceará, adotadas para servirem de compêndio pelas escolas do Estado. Nesse livreto de 1921 encontra-se essa história impressionante (páginas 15 a 19), a respeito de um homem que tinha uma força descomunal e quebrava metais com os dentes. Quando menino ouvi referências a essa história, nas conversas narradas por meu avô Mané Lima... Vejamos:


FORÇA PRODIGIOSA

Na comarca de Quixeramobim vivia uma família meio abastada, cujo chefe chamava-se Borges Gomes, casado e tendo três filhos varões.
Uma noite o velho chamou os seus dois filhos mais velhos e ordenou que, no dia seguinte, pela manhã, levassem uma junta de bois a um certo lugar e de lá trouxessem um pau, afim de fazer d'ele um coxo para a casa de farinha.
Com efeito, pela manhã, os dois rapazes pegaram os bois, meteram-nos em um carretão e seguiram para o lugar indicado. Lá estava o tronco, tão grosso e pesado que os bois não o puderam arrastar. Depois de empregarem todos os esforços, desligaram-no do carretão e voltaram sem o levar, dizendo que os bois não puderam com ele.
O filho mais moço, que se achava presente, na ocasião, disse:
Deixem que eu vou buscar o pau. E saiu.
Todos tomaram aquele dito por mera brincadeira.
Mas, qual não foi o assombro e pasmo de todos, quando, algumas horas depois, voltava Bernardo  (assim chamava-se ele) com o pau ao ombro e o lançara ao terreiro da casa, dizendo:
Está aqui o pau.
Todos acorreram a ver o que se passava, exclamando:
Isto é arte do diabo! Não é possível que um menino tenha mais força do que dois bois!
É o diabo!
Gritavam todos! É o diabo!
O velho, tomado de terror, disse com voz espavorida:
Ponha-se fora de minha casa! Eu não quero o diabo aqui!
O pobre mocinho sem culpa, mas obediente, saiu sem destino. Corria o ano de 1872. Algum tempo depois chegou ele a Fortaleza e uma vez ali, divertia-se em praticar algumas proezas admiráveis, que lhe mereceram a alcunha de mandingueiro ou feiticeiro.
Partia ele com os dentes uma moeda de cobre, tirando dela quantos pedaços quisesse. Um dia dirigiu-se ele à loja do Sr. Antônio Gonçalves da Justa e perguntou se tinha machados “Califórnia”.
Eram uns machados americanos, conhecidos por este nome, cujo aço era tão polido que podia servir de espelho. O caixeiro afirmou que sim.
O moço disse: Quero ver e quero bom.
O caixeiro apresentando-lhe o machado, respondeu-lhe o freguês:
Ah! Este não presta: é de cera.
Disse o caixeiro:
Qual de cera! Você não encontra melhores.
O sertanejo continuando a afirmar que era de cera, interviu o patrão e disse que o machado era verdadeiro Califórnia, não existiam melhores.
Afirmo que este machado é de cera; e, si o senhor duvida eu tiro um pedaço com os dentes.
Tire lá, disse o patrão.
O nosso desconhecido, levou o machado á boca e arrancou dele um grande pedaço, deixando-o inutilizado e o patrão e caixeiro pasmados pelo que acabavam de presenciar!
O rapaz saiu deixando-os atônitos, a se olharem sem dizer uma palavra!
O nosso mandingueiro vagou algum tempo pela capital e seus arredores e desapareceu.
Passaram-se os anos, quando manifestou-se a grande e terrível seca de 1877 a 1879. Começa a capital a encher-se de emigrantes famintos e o nosso Bernardo fazendo parte deles, a exibir as suas mandingas, que o povo as tinha como sendo arte do maldito! Arte diabólica!
Já para o fim da seca, o governo que fornecia gêneros em abundancia, começou a escassear; e, para diminuir a população de emigrantes na capital, o Presidente os mandou acampar em Parangaba, oito quilômetros distante dali. Lá estavam eles debaixo do cajueiral, abrigados por palhoças de ramos das arvores.
Uma tarde ouviu-se o apito da locomotiva, que ia da capital.
O povo, na esperança que o trem conduzisse gêneros, acorreu para a estação.
Chegou o trem e nada levou.
Este facto desagradou os emigrantes; e o nosso mandingueiro, que se achava entre eles, disse, referindo-se ao trem:
Pois este diabo não sai daqui, que eu não quero; e aproximou-se da traseira do ultimo vagão.
Alguns minutos depois, a sineta deu sinal de partida. A locomotiva apitou, dando assim o ultimo sinal. Os emigrantes, que esperavam um fiasco da parte do Bernardo, ficaram atentos ao lado do mandingueiro.
Ao terminar o segundo apito, o maquinista deu movimento e as rodas entraram a mover-se, mas como um motor fixo!
Isto causou grande surpresa em todos: ao maquinista, passageiros e aos circunstantes. Parado o movimento estático da locomotiva, todos deixaram seus lugares, ansiosos por saber a causa.
Tudo examinado, nada encontrou de anormal o maquinista. Segunda tentativa, o mesmo fenômeno reproduziu-se. Os emigrantes, vendo que o trem não andava, disseram:
Bernardo, deixa o trem ir embora!
Bem, respondeu ele: Vai-te, diabo!
E, soltando a traseira do último vagão, que ele segurava com uma das mãos, o trem deslizou sobre os trilhos e desapareceu na linha, no meio de uma quantidade, sem conta, de palmas e gritarias dos emigrantes!!
E diziam:
É danado mesmo o diabo deste mandingueiro!!
Nunca pensei que ele fizesse isto! Dizia outro.
Esse excepcional sertanejo, dotado, pela natureza, de um dom tão prodigioso e extraordinário, nunca se utilizou dele, em proveito próprio, senão para se divertir e atrair sobre si o mau pensar dos ignorantes, supondo ser arte diabólica aquele dom natural, do qual nunca se aproveitou, podendo ter-se locupletado e enriquecido!
Morreu pobre e miserável, levando para a sepultura somente a alcunha de mandingueiro, que o povo lhe dera.

"E digam os sábios da Escritura,
Que segredos são esses da Natura".

In SOBREIRA, J. G. Dias. Curiosidades e factos notáveis do Ceará. Rio de Janeiro: Tipografia Desembargador Lima Drummond, 1921.