O Super-Homem
de Quixeramobim
No
distante ano de 1921 foi publicado um interessante opúsculo intitulado Curiosidades e Factos Notáveis do Ceará (128 páginas numeradas), da autoria do
Professor João Gonçalves Dias Sobreira, editado
no Rio de Janeiro pela Typographia Desembargador Lima Drummond. Seu autor foi
um professor primário e telegrafista, nascido no Crato, que cursou o seminário
da Prainha, em Fortaleza, até a altura dos estudos teológicos. Segundo
o Barão de Studart (Diccionário Bio-bibliográfico Cearense) foi professor do Liceu do Ceará. Em 1893, desgostoso com o
magistério, transferiu-se para o Rio de Janeiro, então capital da República,
onde prestou concurso e exerceu o ofício de telegrafista.
É
autor de várias obras didáticas, inclusive de uma Simplificação da Grammatica Portugueza, de 1885, aprovada pela
Secretaria da Instrução Pública do Ceará e de uma Geographia Especial do Ceará, adotadas para servirem de compêndio
pelas escolas do Estado. Nesse livreto de 1921 encontra-se essa história
impressionante (páginas 15 a 19), a respeito de um homem que tinha uma força
descomunal e quebrava metais com os dentes. Quando menino ouvi referências a essa história, nas conversas narradas por meu avô Mané Lima... Vejamos:
FORÇA
PRODIGIOSA
Na
comarca de Quixeramobim vivia uma família meio abastada, cujo chefe chamava-se
Borges Gomes, casado e tendo três filhos varões.
Uma
noite o velho chamou os seus dois filhos mais velhos e ordenou que, no dia
seguinte, pela manhã, levassem uma junta de bois a um certo lugar e de lá
trouxessem um pau, afim de fazer d'ele um coxo para a casa de farinha.
Com
efeito, pela manhã, os dois rapazes pegaram os bois, meteram-nos em um carretão
e seguiram para o lugar indicado. Lá estava o tronco, tão grosso e pesado que
os bois não o puderam arrastar. Depois de empregarem todos os esforços,
desligaram-no do carretão e voltaram sem o levar, dizendo que os bois não puderam
com ele.
O
filho mais moço, que se achava presente, na ocasião, disse:
— Deixem que eu vou buscar o pau. E saiu.
Todos
tomaram aquele dito por mera brincadeira.
Mas,
qual não foi o assombro e pasmo de todos, quando, algumas horas depois, voltava
Bernardo (assim chamava-se ele) com o
pau ao ombro e o lançara ao terreiro da casa, dizendo:
— Está aqui o pau.
Todos
acorreram a ver o que se passava, exclamando:
— Isto é arte do diabo! Não é possível que um menino tenha mais força do
que dois bois!
— É o diabo!
Gritavam
todos! — É
o diabo!
O
velho, tomado de terror, disse com voz espavorida:
— Ponha-se fora de minha casa! Eu não quero o diabo aqui!
O
pobre mocinho sem culpa, mas obediente, saiu sem destino. Corria o ano de 1872.
Algum tempo depois chegou ele a Fortaleza e uma vez ali, divertia-se em
praticar algumas proezas admiráveis, que lhe mereceram a alcunha de
mandingueiro ou feiticeiro.
Partia
ele com os dentes uma moeda de cobre, tirando dela quantos pedaços quisesse. Um
dia dirigiu-se ele à loja do Sr. Antônio Gonçalves da Justa e perguntou se tinha
machados “Califórnia”.
Eram
uns machados americanos, conhecidos por este nome, cujo aço era tão polido que
podia servir de espelho. O caixeiro afirmou que sim.
O
moço disse: Quero ver e quero bom.
O
caixeiro apresentando-lhe o machado, respondeu-lhe o freguês:
— Ah! Este não presta: é de cera.
Disse
o caixeiro:
— Qual de cera! Você não encontra melhores.
O
sertanejo continuando a afirmar que era de cera, interviu o patrão e disse que
o machado era verdadeiro Califórnia, não existiam melhores.
— Afirmo que este machado é de cera; e, si o senhor duvida eu tiro um
pedaço com os dentes.
— Tire lá, disse o patrão.
O
nosso desconhecido, levou o machado á boca e arrancou dele um grande pedaço,
deixando-o inutilizado e o patrão e caixeiro pasmados pelo que acabavam de
presenciar!
O
rapaz saiu deixando-os atônitos, a se olharem sem dizer uma palavra!
O
nosso mandingueiro vagou algum tempo pela capital e seus arredores e
desapareceu.
Passaram-se
os anos, quando manifestou-se a grande e terrível seca de 1877 a 1879. Começa a
capital a encher-se de emigrantes famintos e o nosso Bernardo fazendo parte deles,
a exibir as suas mandingas, que o povo as tinha como sendo arte do maldito!
Arte diabólica!
Já
para o fim da seca, o governo que fornecia gêneros em abundancia, começou a escassear;
e, para diminuir a população de emigrantes na capital, o Presidente os mandou
acampar em Parangaba, oito quilômetros distante dali. Lá estavam eles debaixo
do cajueiral, abrigados por palhoças de ramos das arvores.
Uma
tarde ouviu-se o apito da locomotiva, que ia da capital.
O
povo, na esperança que o trem conduzisse gêneros, acorreu para a estação.
Chegou
o trem e nada levou.
Este
facto desagradou os emigrantes; e o nosso mandingueiro, que se achava entre
eles, disse, referindo-se ao trem:
— Pois este diabo não sai daqui, que eu não quero; e aproximou-se da traseira
do ultimo vagão.
Alguns
minutos depois, a sineta deu sinal de partida. A locomotiva apitou, dando assim
o ultimo sinal. Os emigrantes, que esperavam um fiasco da parte do Bernardo,
ficaram atentos ao lado do mandingueiro.
Ao
terminar o segundo apito, o maquinista deu movimento e as rodas entraram a
mover-se, mas como um motor fixo!
Isto
causou grande surpresa em todos: ao maquinista, passageiros e aos circunstantes.
Parado o movimento estático da locomotiva, todos deixaram seus lugares, ansiosos
por saber a causa.
Tudo
examinado, nada encontrou de anormal o maquinista. Segunda tentativa, o mesmo
fenômeno reproduziu-se. Os emigrantes, vendo que o trem não andava, disseram:
— Bernardo, deixa o trem ir embora!
— Bem, respondeu ele: — Vai-te, diabo!
E,
soltando a traseira do último vagão, que ele segurava com uma das mãos, o trem
deslizou sobre os trilhos e desapareceu na linha, no meio de uma quantidade,
sem conta, de palmas e gritarias dos emigrantes!!
E
diziam:
— É danado mesmo o diabo deste mandingueiro!!
— Nunca pensei que ele fizesse isto! Dizia outro.
Esse
excepcional sertanejo, dotado, pela natureza, de um dom tão prodigioso e
extraordinário, nunca se utilizou dele, em proveito próprio, senão para se
divertir e atrair sobre si o mau pensar dos ignorantes, supondo ser arte diabólica
aquele dom natural, do qual nunca se aproveitou, podendo ter-se locupletado e
enriquecido!
Morreu
pobre e miserável, levando para a sepultura somente a alcunha de mandingueiro,
que o povo lhe dera.
"E
digam os sábios da Escritura,
Que
segredos são esses da Natura".
In SOBREIRA, J. G.
Dias. Curiosidades e factos notáveis do
Ceará. Rio de Janeiro: Tipografia Desembargador Lima Drummond, 1921.
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