Essa
história de FIM DO MUNDO é tão antiga quanto a própria história da
humanidade. Em 1900 não se falava noutra
coisa. Em 1999 também. É próprio do ser humano alimentar temores, receios e
fascínio pelo desconhecido. O dilúvio bíblico, por exemplo, é descrito por quase
todas as civilizações. Pode mesmo ter havido um tsunami no Crescente Fértil que
dizimou as civilizações então existentes. Os cientistas (que são criaturas preclaras, entendidas e superiores) não duvidam disso.
Leandro Gomes de Barros, o primeiro
sem segundo da Literatura de Cordel, riu a bandeiras despregadas quando lhe
disseram que o Cometa de Halley iria exterminar a vida na terra em 1910. A sátira
do velho poeta de Pombal continua atualíssima, pelo visto.
* * *
O Cometa
de Halley, um dos corpos celestes mais famosos na história da astronomia,
sempre visto com medo e desconfiança pelas pessoas simplórias do mundo inteiro,
passou a ser mais temido a partir de 1881. Não era exatamente o medo de que ele
viesse a se chocar com a Terra. O que aconteceu é que um astrônomo descobriu
que a cauda de todos os cometas contém um gás letal chamado cianogênio. Essa onda de pânico,
alimentada pela imprensa sensacionalista da época, aumentou ainda mais depois
que descobriram que o Halley passaria
pertinho da Terra em 1910 – o cometa passa a cada 76 anos e cruzou a órbita
terrestre novamente em 1986. Até jornais
importantes, como o New York Times,
lançaram teorias que toda a humanidade morreria envenenada pelo gás. Foi
preciso que cientistas de bom senso analisassem a questão com mais clareza, a
fim de acalmar as pessoas, garantindo que a cauda dos cometas, na verdade, é
formada por vapor d’água e um pouquinho de hélio e amoníaco, e que nessas
quantidades não fazem mal a ninguém. E, de fato, nenhuma tragédia aconteceu
quando da passagem do famoso viajante espacial.
Como
se vê, o pânico se instaurou em todo o planeta e foi alimentado pela imprensa
sensacionalista. Não se tratava, portanto, de um ataque de histeria coletiva
das populações do Nordeste, sempre vistas como atrasadas e supersticiosas. O
poeta Leandro Gomes de Barros estava a par do assunto desde sempre. Ele viajava
constantemente nos trens da Great Western,
participava das rodas de conversas no Largo das Cinco Pontas e no Mercado São
José, lia também os jornais, revistas e almanaques que circulavam no seu tempo.
Em suma, viu nesse episódio um tema para uma deliciosa sátira, onde esbanja a
sua finíssima ironia e sarcasmo:
Eu andava aos meus negócios,
Na cidade de Natal,
No hotel que hospedei-me
Apareceu um jornal,
Que dizia que no céu
Se divulgava um sinal.
O sinal era o cometa
Que devia aparecer,
Em Maio, no dia 18
Tudo havia de morrer,
Aí sentei-me no banco,
Principiei a gemer.
Gemi até ficar rouco
Fiquei logo descorado,
Depois o sangue subiu-me
Que fiquei quase encarnado,
Imaginando n’um livro
Que um freguês levou fiado.
Encontramos numa tese acadêmica da PUC/RJ,
intitulada “O cometa do fim do mundo: Ciência
e superstição na imprensa carioca de 1910”, de Maria Elisa Bezerra de Araujo, algumas considerações do astrônomo Ronaldo Rogério de
Freitas Mourão sobre a passagem do famoso cometa no início do Século XX. Na sua
análise, as expectativas dos cientistas no início do século com relação à
aparição do Halley era de que não houvesse mais reações de medo. Segundo o
autor, depois que Edmund Halley, em 1695, descobriu que os cometas obedeciam a
leis da física e estabeleceu o ciclo do cometa que leva seu nome, “acreditou-se
que todo o temor em relação aos cometas deveria cessar numa civilização
racional e tecnologicamente desenvolvida”. No entanto, prossegue Mourão, o que
se constatou foi que por todo o mundo surgiam manifestações de pânico. O
astrônomo afirma ainda que “a despeito de todo o avanço científico, o homem
ainda mantém todo um universo de sentimentos e expectativas onde os cometas
continuam a ser mais que astros catalogados astronomicamente, pressagiando
desgraças ou renovando esperanças”.
Leandro
não embarca nessa onda de histeria coletiva. Além de não levar a sério esse
temor infundado, vale-se de sua irreverência e bom humor para criticar a usura
dos ingleses e comerciantes, que se apressam em cobrar as dívidas dos seus
fregueses antes do “fim do mundo”. É salvo, com toda família, graças a uma
poderosa oração, recitada em prosa no final do poema, e o providencial auxílio
de uma bendita panelada e um garrafão de sua bebida predileta, a famosa
“aguardente Imaculada”, do engenho do Sr. Láu. Trata-se, evidentemente, de um
dos melhores folhetos “jornalísticos” do mestre de Pombal-PB.
A
esse respeito é importante observar o que escreveu o pesquisador cearense
Francisco Cláudio Alves Marques em seu livro “Um pau com formigas ou o Mundo às
avessas” (Edusp, 2014): “Geralmente, na
literatura de cordel, as histórias em torno do tema da cachaça têm valor como
comentário sobre a moralidade do álcool e os costumes da sociedade. Contudo, em
Leandro Gomes de Barros, a bebida é concebida como um dos prazeres da vida e
não como um vício; válvula de escape e pretexto para que se digam as verdades
mais contundentes sobre o sistema e seus representantes”. O autor enxerga
neste e noutros poemas de Leandro traços de uma “festa dionisíaca”.
(Arievaldo Vianna)
O COMETA
Leandro Gomes de Barros (escrito em
1910)
Caro
leitor vou contar-lhe
O que foi
que sucedeu-me,
O medo
enorme que tive,
Que todo
corpo tremeu-me,
Para
falar a verdade
Digo que
o medo venceu-me.
Eu andava
aos meus negócios,
Na cidade
de Natal,
No hotel
que hospedei-me
Apareceu
um jornal,
Que dizia
que no céu
Se
divulgava um sinal.
O sinal
era o cometa
Que devia
aparecer,
Em Maio,
no dia 18
Tudo
havia de morrer,
Aí
sentei-me no banco,
Principiei
a gemer.
Gemi até
ficar rouco
Fiquei
logo descorado,
Depois o
sangue subiu-me
Que
fiquei quase encarnado,
Imaginando
n’um livro
Que um
freguês levou fiado.
Disse ao
dono do hotel:
Senhor eu
estou resolvido,
Antes de
20 de Maio,
Nosso
mundo é destruído,
Visto não
durar um mês,
Não pago
o que tenho comido.
A dona da
casa disse-me:
O senhor
está enganado,
Se eu for
para o outro mundo,
O cobre
vai embolsado,
Eu subo,
porém em baixo
Não deixo
nada fiado.
Me
resolvi a pagar,
Foi
danado esse processo,
Não
paguei, tomaram à força,
O que é
verdade, confesso,
Se havia
de morrer de desgraça
Antes
morrer de sucesso.
Tratei de
tomar o trem
E seguir
minha viagem
Disse: -
Vai tudo morrer
Para que
comprar passagem?
Inglês
vai perder a vida,
Perca
logo essa bobagem.
O
condutor perguntou-me:
- Sua
passagem, onde está?
Eu disse:
- Na bilheteira,
Quando eu
vim, deixei-a lá.
Não
comprou? – perguntou ele,
Pois paga
o excesso cá!
Eu lhe
disse: - Condutor,
O mundo
vai se acabar,
Para que
quer mais dinheiro,
É para
lhe atrapalhar?
A
mortalha não tem bolso,
Onde é
que o pode levar?
Chego em
casa muito triste,
Achei a
mulher trombuda,
Perguntei:
- Filha, o que tem?
Respondeu-me,
carrancuda:
- Ora, a
18 de maio
O mundo
velho se muda!
Perguntei:
- Tem jantar pronto?
Venho com
fome e cansado,
Desde
ontem, respondeu-me,
Que o
fogão está apagado,
Devido a
esse cometa
Não
querem vender fiado.
Eu estava
tirando as botas
Quando
chegou um caixeiro,
Esse
vinha com a conta,
Que eu
devia ao marinheiro,
Eu disse:
- Vai morrer tudo,
Seu
patrão quer mais dinheiro?
Fui falar
um fiadinho,
Que eu
estava de olho fundo,
O
marinheiro me disse:
- Já por
ali, vagabundo!
Eu disse:
- Venda Seu Zé,
Que eu
pago no outro mundo!
A 19 de
maio,
Quando
acabar-se o barulho,
Eu hei de
ver vosmecê
Que o
senhor vai no embrulho,
Só se
esconder-se aqui
Debaixo
de algum basculho.
Quero 10
quilos de carne,
Uma caixa
de sabão,
Quatro
cuias de farinha,
Doze
litros de feijão,
Quero um
barril de aguardente,
Açúcar,
café e pão.
Manteiga,
azeite e toucinho,
Bacalhau
e bolachinhas,
Vinagre,
cebola e alho,
Vinte
latas de sardinhas,
Duas
latas de azeitonas,
Umas
dezoito tainhas.
O
marinheiro me olhou,
E
exclamou: - Oh! Desgraçado!
Então
inda achas pouco
Os que já
tens enganado,
Queres
chegar no inferno,
Com isso
mais no costado?
Eu disse:
- Meu camarada,
Isso é
questão de dinheiro,
Ganha
quem for mais esperto,
Perde
quem for mais ronceiro,
Aonde
foram duzentos
Que tem
que vá um milheiro?
Perguntei
ao marinheiro:
— Não faz
o fiado agora?
O
marinheiro me disse:
—
Vagabundo vá embora!
Eu lhe
disse: — Pé de chubo,
Você
morre e está na hora.
Voltei e
disse à mulher:
— Minha
velha, está danado.
O cometa
vem aí,
De chapéu
de sol armado,
Creio que
no dia 18,
Lá vai o
mundo equipado.
Deixe ir
lá como quiser,
A cousa
vai a capricho,
Comer,
nem se trata nel,
Nossa
roupa foi ao lixo,
Vamos ver
se lá no céu
Tem onde
matar-se o bicho.
Fui onde
vendiam fato,
Comprei
uma panelada,
Comprei
mais um garrafão
De
aguardente imaculada,
Disse a
mulher: - Felizmente,
Já estou
de mala arrumada.
A 17 de
maio,
A
fortaleza salvou,
Eu
comendo a panelada
Que a
velhinha cozinhou,
Quando um
menino me disse:
- Papai,
o bicho estourou!
Aí eu
juntei os pratos,
Embolei
todo o pirão,
Botei o
caldo num pote,
Peguei-me
com o garrafão,
Me
ajoelhei, rezei logo,
O ato de
contrição.
A mulher
disse chorando:
- Meu
Deus, fica a panelada.
Disse o
menino: - Papai,
Onde está
a imaculada?
Eu disse:
- Filho sossega,
Aqui não
me fica nada.
E me
ajoelhando aí,
Tratei
logo de rezar
O ato de
confissão,
Senti um
anjo chegar
Dizendo
reze com fé
Ainda
pode escapar.
Aí disse eu:
— Eu beberrão me confesso a pipa, a
bem-aventurada imaculada de Serra Grande, ao bem-aventurado vinho de caju, a
bem-aventurada genebra de Holanda, vinhos de frutas, apóstolos de deus Baccho,
e a vós, oh caxixi que estais à direita de todas as bebidas na prateleira do
marinheiro.
Amém.
Quando eu
acabei de orar,
Olhei
para amplidão,
Ouvia
dançar mazurca,
Cantar,
tocar violão,
Era um
anjo que dizia:
- Bravos
de tua oração!
Aí um
anjo chegou,
Com uma
túnica encarnada,
Disse: -
Sou de Serra-Grande,
De uma
fazenda falada,
Eu sou o
que cerca o trono
Da
gostosa imaculada.
Sr. Láu,
o proprietário,
Do reino
onde ela mora,
Me mandou
agradecer-lhe,
A súplica
que fez agora,
Aí
apertou-me a mão
E lá foi
o anjo embora.
Aí eu
disse: Mulher,
Visto
termos nos salvado,
Desmanchemos
nossas trouxas,
Já estava
tudo arrumado,
Toca
comer e beber,
Foi um
bacafu danado.
FIM