João Pernambuco (violonista)
INFLUÊNCIA
DO CANCIONEIRO POPULAR NORDESTINO
NA MÚSICA
POPULAR BRASILEIRA
Livro de Almirante "No tempo de Noel Rosa"
ANTECEDENTES
FOLCLÓRICOS
Por: Almirante
(Henrique Foréis Domingues)
Entusiasmado com as criações do violonista João Pernambuco,
Noel Rosa compôs sua primeira obra musical em versos, a embolada “Minha Viola”.
Quatro dias antes de morrer, Noel Rosa deixou seu derradeiro manuscrito, a
embolada “Chuva de Vento”.
Em 1897, Sílvio
Romero lançou seu volume Cantos Populares
do Brasil, em 1901, Melo Morais Filho, Festas
e Tradições Populares do Brasil, em 1903, Rodrigues de Carvalho, Cancioneiro do Norte, em 1908, Pereira
da Costa, Folclore Pernambucano, Alexina de Magalhães Pinto lançou, em 1909, Os Nossos Brinquedos e, em 1911, Cantigas das Crianças e do Povo —
valiosos subsídios do Norte e Nordeste. Estando em voga os temas do Nordeste,
em 1909, Osório Duque Estrada, autor dos versos do Hino Nacional Brasileiro,
publicou o livro O Norte (Impressões
de Viagem), um panorama do folclore nordestino.
O escritor, pesquisador e radialista Almirante
João Teixeira
Guimarães nasceu a 2 de novembro de 1883, em Jatobá, Pernambuco. Com 12 anos
foi para Salinas, em seguida para o Recife. Ainda garoto, nos centros dos
cantadores e nas feiras, ouvia e admirava Hugolino do Teixeira, Romano da Mãe D’Água, Inácio da Catingueira, Mané do Riachão e vários outros.
Ali recebeu as primeiras instruções violonísticas de Manoel Cabeceira, Cirino
de Guajurema, Bem-te-Vi, Madapolão, Serrador, cego Sinfrônio e Fabião das
Queimadas.
Em 1902 veio
para o Rio e daqui em diante tornou-se conhecido pela alcunha de João Pernambuco.
Aqui se fez amigo de Quincas Laranjeiras, Zé Rebelo, Mário Cavaquinho, Sátiro Bilhar,
Veloso e tantos outros.
Anos depois
conheceu o poeta Catulo da Paixão Cearense, que desde 1900 publicava livros de
versos e modinhas e, até 1912, não havia produzido nada absolutamente, em
poemas sertanejos, especialmente dos costumes nordestinos. Certa vez, João
Pernambuco pôs-se a cantar uma toadinha com os versos populares de sua terra,
mas compondo melodia inédita, exclusivamente de sua autoria:
Nega, você me dá (o tiá)
Nega, você não dá não
Nega, se você me dá
E tá na faca, na madeira e no quicé.
Cinco pataca,
Dois tostões,
Mil e quinhento
Minha casa mobiada
Gás aceso e o povo dento...etc.
Catullo, gravura de Pacheco
Catulo nasceu a
8 de outubro de 1863 em São Luís do Maranhão, seguiu para o Ceará e com 17 anos
de idade veio para o Rio. Da amizade com João Pernambuco, que lhe exibiu a sua
melodia, resultou a criação da primeira canção sertaneja de cunho folclórico.
Entusiasmado
com a novidade do coco-de-emboladas (2), Catulo anotou as expressões típicas e
saborosas do Nordeste, apontadas pelo violonista. Catulo já não se recordava
dos interessantes vocábulos e estranhava o próprio título que João Pernambuco
indicara — “Caboca do Caxangá”. Caxangá, o lugar em que tanto vivera...
Sobre a origem
dessa famosa cantiga servem como prova definitiva as palavras do poeta, em
entrevista do Diário de Notícias de Lisboa, de 30 de janeiro de 1935: “...
quando começava a minha obra poética mais importante apareceu-me o João
Pernambuco, que vinha do Norte e que, sabe tocar muito bem o violão, me trouxe
um vocabulário ainda não pervertido pela língua culta”.
Sem a menor
dúvida, Catulo aproveitou os principais elementos melódicos de João Pernambuco
para o estribilho citado pelo violonista:
Caboca de Caxangá
Minha caboca vem cá.
E veio, assim,
a versalhada repleta de vocábulos colhidos no repertório de João Pernambuco, como
Caxangá, Pajeú, Jaboatão, Santo Amaro (lugares e adjacências do Estado de Pernambuco);
indaiá, imbiçuru, oiticica, gameleira, taquara (árvores, madeiras do Nordeste);
urutau, chorão, jaçanã, quartau, quicé (aves, animais, expressões), usados na
nova canção:
Em Pajeú, em Caxangá,
Em Cariri, em Jaboatão,
Eu tenho a fama de cantô
I valentão... etc...
A cantiga
despertou interesse no povo, sendo publicada em 1913, no volume Lyra dos Salões
(Rio de Janeiro, edição Quaresma, 1913). Como testemunho de gratidão ao seu
indiscutível colaborador e parceiro, Catulo imprimiu com esta dedicatória:
“Ao Pernambuco,
o insigne violonista’’ (CABOCA DE CAXANGÁ, p. 232)
Lyra dos Salões - Livraria Quaresma (1923)
Era de grande
efervescência o movimento artístico daquela época e, em 1914, várias revistas
teatrais do ano referiam-se à nova moda musical. Nos três dias do carnaval,
animado conjunto, sob o título de Grupo do Caxangá, percorreu os principais
pontos da Avenida Rio Branco (3). Seus componentes, orientados por João
Pernambuco, usavam máscaras ou grandes barbas, empunhando seus instrumentos e
trajando vestimentas típicas, com nomes de guerra nas palas dobradas dos
chapéus, conforme foto no O Malho (4) de 28/02/1914: João Pernambuco
(Guajurema), Jacob Palmiéri (Zeca Lima), Donga (Zé Vicente), Caninhá (Mané do Riachão),
Pixinguinha (Chico Dunga), Henrique Manoel de Souza (Mané Francisco), Manoel da
Costa (Zé Porteira), Osmundo Pinto (Inácio da Catingueira). (Ver página 38)
No último dia
do carnaval, alguns préstitos exibiam, em carros especiais, letreiros sob o
título de “A Embolada do Norte”. Devido ao êxito de “Caboca de Caxangá”, no ano
seguinte João Pernambuco apresentou a Catulo outra melodia do mesmo tipo de
coco de embolada, a que o poeta pôs letra intitulando-a de “Luar do Sertão”. O
poeta editava as músicas, gravava-as em chapas de discos e cantava-as nas
festinhas caseiras, nos recitais e palcos, citando somente o seu nome, sem jamais
mencionar outros parceiros!
No teatro
persistiu o interesse pelos movimentos folclóricos e naquela ocasião representaram-se
as peças Ouro Sobre Azul, revista (5) de Maria Lina (Teatro Recreio) (6), e A Caboca de Caxangá, burleta (7) de Gastão Tojeiro, música de Carlos
Rodrigues e Luís Corrêa (Teatro São José (8), 07/12/1915).
Livros de 'MODINHAS' impressos pela Livraria Quaresma
Afonso Arinos,
no mesmo ano, realizou um ciclo de conferências sobre temas folclóricos, finalizando-o
em 28 de dezembro, com a conferência “Lendas e Tradições Brasileiras”, sob o patrocínio
da Sociedade de Cultura Artística, no Teatro Municipal de São Paulo, tendo sido
apresentados autos e danças dramáticas e tradicionais. Nas festas eram
convidadas as mais ilustres figuras da sociedade paulista e a imprensa
informava:
“Para essa parte veio do Rio um
grupo de exímios artistas nacionais, reunidos para esse fim pelo senhor João
Guimarães, conhecido pelo cognome de Pernambuco, sua terra natal, que ele honra
pelo seu talento artístico, exuberante e espontâneo. Foram companheiros de
Pernambuco, o grande tocador de viola e de violão, os nossos instrumentos
populares por excelência, os senhores Otávio Lessa, Luiz Pinto da Silva e José
Alves Lima” (9).
Em dezembro,
dia 30, e em janeiro de 1916, o espetáculo repetiu-se e João Pernambuco criou a
Trupe Sertaneja, que se exibiu em São Paulo e, em seguida, no Rio e em Porto
Alegre.
Crescia o
interesse pelas músicas populares de fundo folclórico. Os jornais dedicavam particular
atenção aos versos das canções brasileiras, especialmente as sertanejas. No
Rio, a 14 de fevereiro de 1916, representava-se a revuette (10), Carnaval no
Trianon, de autoria de Fábio Aarão Reis, com músicas de Luiz Moreira e Raul
Martins, com Abigail Maia cantando canções folclóricas. No Teatro São Pedro (24
de abril), apresentava-se a revista O Meu
Boi Morreu, de Raul Pederneiras e J. Praxedes, com melodias de Pascoal
Pereira e Adalberto Carvalho, e o maior sucesso do carnaval do ano, a toada
folclórica “O Meu Boi Morreu”.
Dois anos
atrás, Abigail Maia, considerada a “atriz da moda”, granjeara o justo título de
“a rainha da canção brasileira”, com repertório de modinhas brasileiras e
sertanejas como “Chico Mané Nicolau”, “Nhô Djuca”, “Inderê”, “Chora, Chora,
Chorado”, “Cambuco e Balaio”, “O Meu Boi Morreu”, “A Rolinha”, “Assim É que É”,
“Rolinha do Sertão” e outras. Era ainda relembrado o êxito em Santos, no Rinque
Miramar, e depois em várias cidades, do célebre trio Foca - Abigail-Moreira, de
José Batista Coelho (João Foca), teatrólogo e humorista; Abigail Maia, atriz e
cançonetista, e Luiz Moreira, compositor e maestro.
Catullo foi muito popular no seu tempo
Em 30 de abril
desse mesmo ano, os motivos populares do Nordeste deram origem à peça de
costumes sertanejos O Marroeiro,
original de Catulo da Paixão Cearense e Ignácio Raposo, com músicas do maestro
Paulino do Sacramento, incluindo o estribilho de maior sucesso, com diferentes
alterações melódicas em seus versos:
Olha a rolinha
Sindô, sindô
Mimosa flor
Sindô, sindô
Presa no laço
Do meu amô.
A respeito das
criações das melodias “Caboca de Caxangá” e “Luar do Sertão”, estampamos o
depoimento definitivo da carta do saudoso maestro Villa-Lobos (Documento A, ver
página 32). E acrescentamos mais declarações que atestam ter sido João
Pernambuco o autor das famosas canções, com as assinaturas de José Rebelo da
Silva, o Zé Cavaquinho (Documento B, ver página 33), Benjamim de Oliveira e
Alcebíades Carreiro (Documento C, ver página 34), o professor Sylvio Salema
Garção Ribeiro (Documento D, ver páginas 35 e 36), o musicólogo Mozart de
Araújo e a frase do ilustre crítico Andrade Murici, publicada na coluna “Pelo
Mundo da Música”, do Jornal do Brasil de 13 de agosto de 1941:
“... Luar do
Sertão, letra de Catulo da Paixão Cearense, para a qual esse modesto João Pernambuco
compôs música destinada a viver enquanto houver vida num coração de brasileiro”.
João Pernambuco
Declara Mozart
de Araújo:
João Pernambuco era homem simples,
modesto, de poucas letras. Não tinha ambições de glória e muito menos de
fortuna, tanto assim que, apesar do talento excepcional que possuía, morreu
pobre. Foi desse homem autêntico e verdadeiro que ouvi a declaração de haver
fornecido a Catulo Cearense muitas das suas cantigas trazidas do Norte, entre
estas a melodia “É do Humaitá”, que ele cantava ao violão ou à viola.
Catulo, apesar
de possuir um bom ouvido, não era um compositor, e também não era um bom
musicista, pois o seu violão era rudimentar. Em termos de criação musical, não
é possível compará-lo a Pernambuco, cuja obra é das melhores do repertório
violonístico do Brasil. Pessoalmente ouvi de Catulo que a melodia “É do
Humaitá” foi trazida do Norte por João Pernambuco.
“Modifiquei e
fiz o ‘Luar do Sertão’, que foi vendido ao Figner (11)”, declarou-me Catulo, em
1946, poucos meses antes de morrer. Conhecendo Catulo e Pernambuco, entendi que
a modificação da melodia consistiu simplesmente em adaptá-la à letra que, esta sim,
era de Catulo. Ademais, João Pernambuco nunca se cansou de exaltar o poema de Catulo,
que ele considerava um dos mais belos da nossa língua.
Conheço versões
folclóricas do coco “É do Humaitá” e nenhuma dessas versões coincide com a
melodia que Pernambuco cantava. Não hesito, pois, em afirmar que a melodia
fornecida a Catulo era criação própria de João Pernambuco, como eram as toadas
“Vancê”, “Tiá de Junqueira”, “Biro-biro-yaiá”, “Siricóia”, “Ajueia Chiquinha” e
tantas outras.
NOTAS
1 - Por Catulo nunca tê-lo mencionado como autor da melodia
de “Caboca de Caxangá” e “Luar do Sertão”, João Teixeira Guimarães, com
profunda mágoa, faleceu a 16 de outubro de 1947.
2. - O coco-de-embolada é um gênero musical muito popular na
região nordeste do Brasil, em que dois repentistas travam um desafio musical
através de improvisos. A letra é geralmente cômica ou satírica. (N.O.)
3. - A avenida Rio Branco corta o centro da cidade do Rio de
Janeiro.Antes chamada de Avenida Central, é uma das principais ruas do centro e
foi um marco da reforma urbanística de Pereira Passos no início do século XX.
(N.O.)
4. - O Malho foi uma revista brasileira criada em 1902, cuja
especialidade era satirizar as notícias políticas da época. (N.O.)
5. - Redução da expressão teatro de revista, que consiste num
tipo de espetáculo teatral, composto de números falados, musicais e humorismo.
(N.O.)
6. - Surgido ainda no século XIX e inicialmente chamado de
Recreio Dramático, esse teatro ficava em frente à Praça da Constituição, no
centro do Rio de Janeiro. Foi demolido em 1968. (N.O.)
7. - Tipo de peça teatral cômica, que teve origem na Itália
do século XVIII. (N.O.)
8. - O teatro São José localizava-se na praça Tiradentes, no
centro do Rio de Janeiro, e funcionou de 1903 a 1926. (N.O.)
09. - “Lendas e Tradições Brasileiras”, Afonso Arinos. (N.A.)
10. - Tipo de ato teatral surgido no início no século XIX que
mistura dança, esquetes e música. (N.O.)
11. - Fred Figner foi dono da Casa Edison, o primeiro estúdio
de gravação de disco do Brasil. (N.O.)
Esse texto é o primeiro capítulo do livro NO TEMPO DE
NOEL ROSA – Almirante.
Copyright © 1963 Almirante (Henrique Foréis Domingues)
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