HISTÓRIA DO JOÃO SOLDADO QUE
METEU O DIABO NUM SACO
João Soldado se criou
Na terra da Palestina
Ficou órfão logo cedo
Foi bem triste a sua sina
Mas porém foi coroado
Por uma estrela divina.
Na terra da Palestina
Ficou órfão logo cedo
Foi bem triste a sua sina
Mas porém foi coroado
Por uma estrela divina.
(Da versão em cordel de Antônio
Teodoro do Santos)
Uma das histórias de cordel mais
conhecidas no Brasil é o folheto de Antônio Teodoro dos Santos (1916 – 1981), “João
Soldado, o valente praça que meteu o diabo num saco”. Desde criança conheço
este folheto, publicado pela Editora Luzeiro, de São Paulo. (Para saber mais
sobre este folheto, consultar o blog CORDEL ATEMPORAL:
A versão em prosa, que nos chegou de
Portugal, só vim a conhecer muito tempo depois. É esta que se segue:
Era
uma vez um rapaz bem nascido, mas sem leira nem beira, a quem tocou a sorte de
ser soldado. Terminado o tempo de praça, que foram oito anos, alistou-se por
mais oito e, terminados estes, por mais oito.
Quando completou os últimos oito anos, já era
velho e como nem para andar com as marmitas servia, deram-lhe baixa e
entregaram-lhe tudo o que restava do soldo: um pão e quatro vinténs.
Era tudo isto que vos estou narrando no tempo
em que o dinheiro se contava por vinténs e por patacos, valendo cada pataco
dois vinténs, no tempo em que “ir à tropa” era “ir às sortes” e o soldado era
soldado porque recebia um soldo, mas tão pequeno que, como aconteceu ao nosso
herói, ao fim de tantos anos só lhe restavam quatro vinténs.
João Soldado pôs-se a caminho e ia dizendo
para consigo:
“Sempre
te declaro que tiraste um lucro de arregalar o olho! Depois de servires o Rei
durante vinte e quatro anos, ficas com um pão e quatro vinténs! Mas é andar com
Deus e nada ganhas em desesperar senão criares mau sangue.”
E
pôs-se a cantarolar:
Não há vida mais rendosa
Do que a vida de soldado.
É rancho, mochila e arma,
Era também esse o tempo em que Nosso Senhor
Jesus Cristo andava pelo mundo e trazia por moço a São Pedro. Encontrou-se com
eles João Soldado e São Pedro, que era o do saco, pediu-lhe esmola.
Aqueles dois mendicantes
Eram São Pedro e Jesus
Quando andavam neste mundo
Trazendo a divina luz
Provando os bons corações
Com sua pesada cruz.
(Antônio
Teodoro dos Santos)
-Eu que lhe hei-de dar – disse João Soldado –
se, ao fim de servir o Rei vinte e quatro anos, não fiquei com mais do que um
pão e quatro vinténs?
São Pedro era teimoso e insistiu.
-Enfim – disse João Soldado – ainda que,
depois de servir o Rei vinte e quatro anos só tenha por junto um pão e quatro
vinténs, repartirei o pão com vossemecês.
E puxando da navalha, cortou o pão em três
bocados, deu-lhes dois e ficou com um.
Daí a duas léguas, encontrou-se outra vez com
São Pedro que tornou a pedir-lhe esmola.
-Quer parecer-me – disse João Soldado – que lá
adiante vi vossemecês e que conheço essa calva. Mas enfim… é andar com Deus
ainda que, ao fim de servir o Rei vinte e quatro anos, só tenha um pão e quatro
vinténs e do pão não me reste senão este bocado que vou repartir com
vossemecês.
Assim o fez e, em seguida, comeu a sua parte
para que não tornassem a pedir-lha.
Ao pôr do sol, terceira vez se encontrou com o
Senhor e São Pedro, que lhe pediram esmola.
- Ia
jurar que já lha dei – disse João Soldado. – Mas enfim… é andar com Deus ainda
que, ao fim de servir o Rei vinte e quatro anos, me vi só com um pão e quatro
vinténs. E vou repartir com vossemecês estes quatro vinténs como já reparti o
pão.
Pegou nas duas moedas de pataco, deu uma a São
Pedro e ficou com a outra.
“Que
hei-de fazer com um pataco?” disse João Soldado para os seus botões. “O remédio
é deitar-me a trabalhar, se quero ter de comer.”
-Mestre!
– dizia entretanto São Pedro ao Senhor – Faça Vossa Majestade alguma coisa em
favor desse desgraçado que serviu vinte e quatro anos o Rei e não tirou outro
proveito mais do que um pão e quatro vinténs que repartiu conosco.
-Está
bem – concordou o Senhor. – Chama-o e pergunta-lhe o que quer ele.
Assim fez São Pedro, e João Soldado, depois de
muito pensar, respondeu que o que queria era que, no bornal que levava vazio,
se metesse tudo o que ele quisesse meter nele. Isso lhe foi concedido. E João
Soldado seguiu caminho.
Ao passar por uma aldeia, avistou numa tenda
umas broas de pão mais alvo que jasmins e umas linguiças que estavam mesmo a
dizer: comei-me.
-Salta para o bornal! – ordenou João Soldado
em voz de comando.
E era coisa de pasmar ver as broas dando
voltas como rodas de carreta e as linguiças arrastando-se como cobras a
encaminharem-se para o bornal.
João Soldado, que comia mais do que um cancro
e naquele dia tinha mais fome do que Deus tem paciência, apanhou um fartote,
daqueles de dizer “não posso mais”.
Ao
anoitecer chegou ele a outra aldeia. Como era soldado com baixa, tinha direito
a alojamento, a que lhe dessem boleto. Por isso se dirigiu ao regedor a quem
disse:
-Senhor,
eu sou um pobre soldado que, ao fim de ter servido o Rei 24 anos, achei-me só
com um pão e quatro vinténs que se gastaram no caminho.
O regedor respondeu-lhe que, se ele quisesse,
o alojaria numa herdade próxima, para onde ninguém queria ir habitar porque
nela havia morrido um condenado e, desde então, andava lá coisa ruim. Mas que
se ele era animoso e não tinha medo de coisas ruins, podia ir lá e encontraria
lá tudo do bom e do melhor pois o condenado tinha sido riquíssimo. Falou João
Soldado:
-Senhor!
João Soldado não deve nem teme e portanto posso encaixar-me lá enquanto o diabo
esfrega um olho.
Na tal herdade, achou-se João Soldado no
centro da abundância. A adega era das mais excelentes, a dispensa das mais providas
e os madureiros estavam atestados de fruta.
A primeira coisa que fez, como prevenção para
o que desse e viesse, foi encher uma cântara de vinho porque considerou que aos
bêbados costuma tapar-se a veia do medo. A seguir, acendeu uma vela e sentou-se
a fazer umas migas de toucinho.
Mal se tinha sentado, ouviu uma voz que vinha
pela chaminé abaixo e dizia:
-Caio?
-Pois cai, se tens vontade – respondeu João
Soldado que já estava meio pitosga com as emborcações daquele vinho precioso. –
Quem serviu vinte e quatro anos o Rei, não deve nem teme.
Ainda não tinha acabado de falar e já caía
pela chaminé abaixo a exacta perna de um homem. João Soldado sentiu tal arrepio
que se lhe eriçaram os cabelos como a um gato assanhado. Pegou na cântara e
bebeu um trago.
Mais animoso, perguntou à perna:
-Queres que te enterre?
A perna fez sinal de que não com o dedo gordo
do pé.
-Pois
apodrece para aí – disse João Soldado.
Daí a nada, tornou a ouvir a mesma voz, que
vinha da chaminé, a perguntar:
-Caio?
-Pois cai, se tens vontade – respondeu ele
dando outro beijo na cântara. – Quem serviu vinte e quatro anos o Rei, não teme
nem deve.
Caiu então a outra perna, ao lado da
companheira que já lá estava. Para rematar em poucas palavras: como caíram as
pernas, caíram os quatro quartos de um homem e, por último, a cabeça, que se
uniu aos quartos, e então se pôs em pé uma peça, não um cristão, mas um
assombroso espectro que parecia dever ser o próprio condenado em corpo e alma.
-João
Soldado – disse ele com um vozeirão capaz de gelar o sangue nas veias – vejo
que és um valente.
-Sim,
senhor. Sou um valente, não há dúvida. Pela vida de Cristo, nunca João Soldado
conheceu nem fartura nem medo. Apesar disso, saberá Vossa mercê que, ao fim de
ter servido vinte e quatro anos o Rei, o proveito que tirei foi um pão e quatro
vinténs.
-Não
te entristeças por isso. Porque se fizeres o que eu te vou dizer, salvarás a
minha alma e serás feliz. Aceitas fazê-lo?
-Sim senhor, sim senhor.
-O pior – observou o espectro – é que me
parece que tu estás bêbedo…
-Não
senhor, não senhor. Estou assim “tem-te não caias”. Pois saberá Vossa Mercê que
há três classes de bebedeira. A primeira é “tem-te não caias”, a segunda é de
fazer SS e RR e a terceira é de cair. Ora eu, senhor, não passei do “tem-te não
caias”.
-Se
assim é, vem comigo.
João Soldado levantou-se. Ficou a balouçar
como um santo num andor. Mas lá conseguiu pegar na vela. O espectro, porém,
estendeu o braço como uma garrocha e apagou a luz. Não era precisa porque os
olhos dele alumiavam como duas forjas acesas.
Quando
chegaram à adega disse o espectro:
João Soldado, pega numa enxada e abre aqui uma
cova.
-Abra-a
Vossa Mercê com toda a força que tem, se faz gosto nisso. Eu não servi o Rei
vinte e quatro anos, sem outro proveito que um pão e quatro vinténs, para me
pôr agora a servir outro amo que pode ser que nem isso me dê.
O espectro pegou na enxada, cavou e tirou três
talhas. Disse a João Soldado:
- Esta
primeira talha está cheia de cobre, que repartirás pelos pobres. Esta segunda
talha está cheia de prata, que empregarás em mandar rezar missas pela minha
alma. E esta terceira talha está cheia de ouro, que será para ti se me
prometeres entregar as outras conforme acabo de dispor.
- Fique
Vossa Mercê descansado – afirmou João Soldado. – Vinte e quatro anos passei
cumprindo as ordens que me davam sem tirar outro proveito que um pão e quatro
vinténs. Já vê Vossa Mercê se o não farei agora que tão boa recompensa me
promete.
E na verdade, João Soldado cumpriu tudo o que
lhe recomendou o espectro e, de contente, ficou metido num sino. Quem não ficou
nada contente foi o Diabo-Mor, Lúcifer, o qual perdeu a alma do condenado pelo
muito que por ela rezaram a igreja e os pobres. Mas não sabia como vingar-se de
João Soldado.
Ora havia no Inferno um Satanás pequeno,
astuto e ladino, que garantiu a Lúcifer ser capaz de lhe trazer João Soldado.
Causou isto muita alegria ao Diabo-Mor. E prometeu ao diabinho que, se ele
conseguisse fazer o que dizia, o presentearia com um molho de enfeites e de
ditos para seduzir e perder as filhas de Eva e com uma porção de baralhos de
cartas e garrafas de vinho para tentar e perder os filhos de Adão.
Estava João Soldado sentado no seu quintal,
quando vê chegar junto de si, todo lépido, o diabinho, que o saúda:
-Bons
dias, Senhor Dom João!
-Estimo
ver-te macaquinho. Que feio que tu és! Queres uma fumaça?
-Não
fumo, Dom João, senão palhas.
-Vai um copo?
-Não
bebo senão água-forte.
-Pois,
então, que vens tu cá fazer?
-Venho
levar Vossa Mercê comigo.
-Em
boa hora seja. Não servi vinte e quatro anos o Rei, para bater em retirada
diante de um macaquito de má morte como tu. João Soldado não deve nem teme,
percebes? Olha, sobe a essa figueira que está cheia de belos figos, enquanto eu
vou pelos alforjes porque me parece que a o caminho que temos a andar é
comprido.
O Satanás pequeno, que era guloso, subiu à
figueira e pôs-se a comer figos. João Soldado foi buscar o bornal que deitou às
costas, voltou para junto do diabrete e gritou-lhe:
-Salta para o bornal!
Dando gritos de assombrar o diabrete não teve
outro remédio senão enfiar-se dentro do bornal.
João Soldado fechou o saco, e pôs-se a
desancar o diabrete até lhe deixar os ossos num feixe. Depois, mandou-o ir-se
embora. Quando, chegado ele à sua presença, o Diabo-Mor viu o seu benjamim
naquele estado, e partido, pôs-se vermelho de fúria e desatou aos gritos:
-Irra!
Três mil vezes irra! Juro que esse descarado do João Soldado mas há-de pagar
todas de uma vez! Eu mesmo lá vou em pessoa!
João Soldado já esperava esta visita. Estava
prevenido e tinha o bornal às costas. Logo que Lúcifer se apresentou, deitando
lume pelos olhos e foguetes pela boca, avançou para ele muito tranquilo e
disse-lhe:
-Compadre
Lúcifer! Fizeste bem em vir. Mas é preciso que saibas que João Soldado não deve
nem teme!
-Tu,
meu fanfarrão das dúzias é que vais saber. Meto-te no inferno num abrir e
fechar de olhos.
-Tu
a mim? Tu, Lúcifer, a João Soldado? Não há-de ser fácil … tem cuidado.
O Diabo bufava: “Vil guzano terrestre!”
E
João Soldado a rir-se:
-Grande estafermo! Vou enfiar-te no meu
bornal. A ti, ao teu rabo e aos teus cornos.
-Basta de bravatas! – rugiu o Diabo,
estendendo o enorme braço e mostrando as unhas tremendas e negras.
-Salta para o bornal! – ordenou João Soldado
na voz de comando que aprendera na tropa.
E por mais que Lúcifer se torcesse, por mais
que se arrepelasse e pusesse num novelo, foi direitinho de cabeça para dentro
do bornal.
João Soldado fechou o saco e foi buscar um
masso. Pôs-se a descarregar cada pancada que onde batia fazia uma cova. Lúcifer
ficou mais chato que uma folha de papel.
Quando sentiu os braços cansados abriu o
bornal, deixou cair o miserável e disse-lhe:
- Por
agora contento-me com isto. Mas se te atreves a voltar a aparecer diante de
mim, grande desavergonhado, arranco-te o rabo, os cornos e as unhas, e nunca
mais metes medo a ninguém.
O Diabo lá se arrastou como pôde até ao
Inferno. Quando a corte infernal o viu chegar naquele estado, derrubado,
encolhido, transparente, com o rabo entre as pernas, todos aqueles farricocos
se puseram a vomitar sapos e cobras.
-Que havemos de fazer depois disto, Senhor? –
perguntavam eles.
-Mandar
vir serralheiros para que façam ferrolhos para as portas, mandar vir pedreiros
para taparem todos os buracos e fendas das paredes, a fim de que não entre, não
surja, nem aporte ao Inferno o grande insolente do João Soldado!
E assim se fez com toda a pontualidade.
Quando João Soldado viu aproximar-se a hora da
sua morte, pegou no bornal e encaminhou-se para o céu. À porta encontrou São
Pedro.
-Ora viva! Seja benvindo! – disse-lhe São
Pedro – Onde é a ida, amigo?
-Aonde
vê – respondeu João Soldado muito ancho e emproado.
E ia entrando.
-Alto
lá, compadre! No céu não entra assim qualquer um como se entrasse em sua casa.
Vejamos. Que merecimentos traz Vocemecê?
-Pois
diga-me, Senhor São Pedro… Pois diga-me se lhe parece regular que eu, depois de
lá em baixo ter servido o Rei vinte e quatro anos sem tirar outro proveito mais
do que um pão e quatro vinténs, diga-me se, depois disso, não há no céu um
lugar para mim?
São Pedro sorriu e João Soldado entrou.