Juliana Paes como Gabriela (Remaker)
ALMA
BÁRBARA
Herman
Lima
A Leão de Vasconcelos
Pois
foi assim, meu amo. Nesse tempo, nós andávamos pelo sertão, a serviço do
coronel Feitosa, do Icó, por via de uns negócios de política. O Pedro, o patrão
deve estar lembrado dele. Negro famanaz, vivedor como trinta, baixo e grosso
como um toro de aroeira, com uns beiços revirados, e umas ventas rombudas, como
amassadas de murro. Contador de quantos casos de amor e de briga ouvi neste
mundo, toda cabocla ele dizia que podia possuir, não achava homem que o fizesse
voltar atrás. E, a propósito, deixe contar-lhe.
Uma
noite de lua, num forró de casamento, lá na Barreira Preta, no Aracati, quando
ainda era, a bem dizer, meninote, o Pedro, encontrando a Ritinha da Venância,
uma morena de papoco, falou pra cabeça dela, e foram os dois passear de bote,
escondidos, no lagamar confronte. No princípio, o negro ainda se lembrou dos
remos, e remou até o meio do rio. O rio estava uma prata. No brejal escuro das
margens, berrava a saparia do inverno, assim, zôôôm… Só de longe em longe, um
vulto de pescador aparecia, tarrafeando nos baixios. E a cabocla, na proa,
olhando o lume do luar tremer nas águas, cantava como uma sereia encantada,
dessas que tentam os marinheiros no alto mar. Depois, o negro pegou a se
queixar dos braços, descansou os remos atravessados na beirada do barco, e foi
sentar-se mais a moça. E tantas coisas fez e achou, meu amo, que quando sentiu
foram as pancadas do mar no casco da canoa. Num pulo, deixando a morena quase
desmaiada no fundo do bote, o Pedro atirou-se para os remos. Mas, qual. Logo
que o barco entrou nas ondas, os remos tinham rolado na água. De forma que o
preto botou as mãos na cabeça, assuntando, porque o caso estava mesmo feio.
Mirando o céu, ele viu, pelo Cruzeiro grande, que havia de ser meia-noite, pelo
menos. Nessa hora, naquelas alturas, só Deus com um gancho lhe podia valer.
Assim, não assuntou muito tempo, e tratou de espertar a mulata. Mandou que ela
se despisse e fizesse uma trouxa da roupa, que ele amarrou nas costas. E, tomando
a pobre nos braços, atirou-se ao mar, nadou até a praia. Como a moça não podia
voltar pro baile, por via da distância e das roupas ensopadas de água, o negro
achou melhor levá-la pra casa de uma tia, que morava ali perto, no Fortim. No
dia seguinte, toda a gente sabia do acontecido. O Pedro mesmo não negou o
passeio. E a Ritinha, assim, caiu na boca do mundo. Mas, daí a uns tempos, como
a mulata era mesmo um mimozinho deveras, não tardou em acender uma paixão de
louco no coração de um cabra fornido, passador de gado nos sertões do Limoeiro,
que andava há coisa de três semanas por ali. Quando o Pedro viu o cabra todo
derretido pela Ritinha, tratou de ajudar-lhe o xodó, enquanto preparava a
pobrezinha, dando de um tudo a ela. Até umas bichas de ouro, em forma de meia
lua, ele deu.
Rio Aracati
Mas,
aí, como sempre, não faltou um malvado, que foi contar o passeio do rio ao
boiadeiro. Mas o cabra, que estava mesmo de beiço pela morena, desprezou a
conversa, ainda disse o diabo ao intrigante. Pra encurtar a história, o homem
casou sempre com a Ritinha. Pois o Pedro, um dia, meteu na cabeça que devia
contar-lhe tudo, e contou.
— E
ele?
— Pra
lhe falar verdade, meu amo, eu não acreditei muito no que o negro me disse a
respeito. Mas ele jurou pela fé em Deus, fazendo cruz na boca, que o outro não
fez coisíssima nenhuma. O certo é que uma feita, conversando muito distraído, o
preto me falou numa sentença sofrida na cadeia do Aracati; e, num domingo,
quando nos banhávamos no açude do João Lopes, na Fortaleza, descobri, lá nele,
aqui, embaixo da pá, um risco de faca de dois palmos. Quando lhe mostrei
aquilo, o Pedro fechou a cara, disse de mau modo que não era nada, tinha sido
uma chifrada de marruá, no tempo dele menino. Deus me perdoe, patrão, mas só me
parece que ali andava obra do cabra da Ritinha, e ninguém me tira da ideia que
o Pedro tenha feito alguma a ele.
Mas,
bom. Como ia dizendo, o caso foi assim. Nós tínhamos chegado no Crato, numa
quinta-feira, devendo voltar na outra semana. Quando foi no domingo, como não
tivesse serviço, arreamos os cavalos de manhãzinha e nos atiramos no mundo,
cada qual no seu rumo. Eu tombei pra venda do Zé Bacurau, onde fiquei até a
boca da noite, mais uns freteiros de folga, numa partida de – vinte-e-um, que
me limpou os cobres. Na volta, chegando em casa, já com a lua de fora,
encontrei o Pedro estirado na tipoia, com uma ponta de mata-rato no queixo.
Quando me viu, o preto fez ar de alegria, foi logo dizendo que tinha uma
história pra contar. Aí, eu fui coar um gole de café com rapadura, e bebi pelo
pires, soprando, danado, pra ouvir o negro. Porque o diabo do homem, patrão,
sabia mesmo enrabichar a gente com as falas. Com pouco, eu estava outra vez
junto dele, na minha rede, mascando minha felpa de mapinguim. E, metido na
tipoia, com um pé no chão pra dar o balanço, o Pedro contou que tinha ido pras
bandas do Salgado, chegando num ponto em que foi preciso romper o mato, pra
alcançar o rio. A manhã estava bonita, não havia hora melhor para um banho. E
já ele tinha desapeado, quando avistou, mais pra cima um pedaço, uma cabocla
novinha, nuazinha, trepada numa pedra, mirando-se na água serena que passava.
Vendo que a mulatinha não tinha dado por ele, o negro, muito de manso, prendeu
o cavalo num buritizeiro, e foi rastejando, rastejando, pelo mato, num piso de
sussuarana, até que topou com as roupas da moça escondidas numas moitas. O
preto logo assentou um plano. Mais que depressa, agarrou nos vestidos e de
repente apareceu à morena. A pobrezinha, como se tivesse visto o Maligno,
soltou um grito tamanho, e mergulhou como pecapara assustada. O rio aí já era
de nado. Com pouco mais, adiante, ela botou a cabecinha de fora, olhando muito
agoniada, sem saber o que fazer. Enquanto o Pedro, muito bem sentado na
ribanceira, mostrava-lhe as roupas, rindo para ela, e chamando-lhe quantos
nomes de amor sabia. E disse que não tivesse medo, viesse buscar os paninhos,
que ele não lhe fazia mal, queria só um beijo dela dado assim nua como estava.
Isso ele dizia, meu amo, mas só dos dentes pra fora. Deus me perdoe. Pois
alguém acredita que o negro não tivesse má tenção, armando aquele mundéu à
coitadinha? No mais, o patrão faça de contas que era ele numa hora dessas, e
veja lá se tinha coragem de resistir… Pois a verdade é que a mulatinha pareceu
adivinhar os desejos do preto, e desatou a chorar, disposta a morrer, mais
antes do que se apresentar despida a ele. Nessa ideia, fez o pelo-sinal, e se
soltou no rio. Aí, o Pedro mediu toda a ruindade da ação que estava praticando,
e sentiu os olhos cheios de água, com pena e dó da criança. Atirando as roupas
no chão, despiu a camisa, e jogou-se na correnteza. A moça, nesse tempo, já ia
longe, enrolada nos cabelos, arrastada pelo rio. O negro mergulhou, e nadando
por baixo da água, como um peixe, foi tomar fôlego já nos calcanhares da
cabocla. Com duas braçadas mais, emparelhou com ela, e, agarrando-a pela
cintura, nadou com força pra terra, como tinha feito com a outra, lá no
Aracati.
Garanto,
meu amo, que o negro, me contando isso, ficava ainda com os olhos afogados de pranto,
como quem atravessa a fumaça de um incêndio… Coisas do coração, moço, mas não
é? Pois, quando vinha trazendo a moça pro seco, apertando contra o peito aquele
corpinho novo, macio e cheiroso, que nem uma fruta do mato, o preto me disse
que só sentia uma bondade tão grande, uma pena tão esquisita, como se fosse
Nossa Senhora que ele tivesse salvado das águas. Acredite se quiser, meu
patrão, mas o negro botou a caboclinha na beira do rio, com o mesmo amor de uma
mãe, deitando o filhinho na rede. Quando viu que ele não lhe fazia maldade, a
mulata descruzou os braços que escondiam o peito tentador, e num jeito de onça
enrolou-se toda nas roupas. Aí, o Pedro enfiou a camisa, e foi-s’embora, sem
mesmo olhar pra trás.
No
fim da semana, estávamos de viagem. Tínhamos deixado o Crato de madrugada, no
segundo canto do galo. Os cavalos eram bons, bralhadores famosos, de forma que
às onze horas tínhamos tirado oito léguas. Aí, fizemos uma parada, pro almoço,
na sombra de uma oiticica verde, que ficava mesmo cobrindo a picada. Os animais
ali por perto babujavam o capinzinho da vereda. Acabando de comer meu bocado de
paçoca e rapadura, fiz da carona travesseiro, e me deitei no chão, disposto a
dormir um minutozinho. A mata, nessa hora, estava quieta, que nem capela vazia.
Só se ouvia o chio-chio de uma cigarra cantadeira nas folhas e um ou outro
sopro de venta dos cavalos cansados, roendo a erva. Ainda me lembro que estava
dorme-não-dorme, quando o Pedro, que também tinha acabado de almoçar,
levantou-se bocejando e se afastou pela estrada. Não sei dizer se tive tempo de
dormir um cochilo, quando de repente um berro medonho encheu todo o mato. Num
instante, me vi de pé, correndo como um doido, no rastro do negro, que fui
achar pouco adiante, agarrado com um cabra moço e entroncado, como um mourão.
Pelos modos, meu camarada tinha sido atacado de surpresa, nem teve tempo de se
defender. E, antes de sair de meu assombro, o curiboca recuou num pulo, com os
olhos relampeando, como uma onça acuada, e uma faca que era isto, encarnada de
sangue, no punho. O Pedro se bambeou, com as mãos na barriga, como quem sofria
uma grande dor. Aí, acudi com meu punhal desembainhado, e avistei uma coisa,
patrão, que me tirou o sono muitas noites. O negro tinha levado uma estocada no
vão do umbigo, que era mesmo uma barbaridade, as tripas tinham espocado, pois
assim mesmo, quase de cócoras, procurando aguentar os bofes que escorriam para
o chão, o preto arrancou a garrucha do quarto, e – ah! negro bom mesmo na hora!
– levou um pé adiante, fazendo mira no assassino. Quando viu a arma alumiando,
o cabra atirou-se pra cima dele, batendo o queixo que nem caititu furioso, mas
já o tiro tinha estrondado por aquele sertão a fora. Aí, o homem deu um salto
para o ar, como cabrito assustado, e caiu de bruços na estrada, sem bulir.
Vendo-o derrubado, corri para o Pedro, que também tinha rolado na areia. Tomei
a cabeça dele nas mãos, quis ver se ainda o levantava. Mas o pobre pegou a
revirar os olhos, gemendo como doente de “puxado” no inverno. Só teve tempo de
chegar a boca no meu ouvido, e disse, apontando o outro: – “É o irmão daquela
diaba!”. – A cabeça pendeu pra trás, o corpo amoleceu nos meus braços. Estava
morto, meu patrão!
Por
causa disto, tive de andar no mato, fugido como cangaceiro, dois anos e tanto.
Hoje, ninguém fala mais no caso, posso estar por aqui, sem medo. Mas, pra
acabar a história direito, voltando uma vez no Crato, todo barbado e diferente,
pra não me conhecerem, soube que o assassino do Pedro era um irmão da mulatinha
do rio. Um comboieiro tinha encontrado os dois corpos na estrada, galopou como
um doido até a cidade, e tudo se descobriu.
— Já
vê, meu amo, que não serviu de nada a boa ação do preto, não tocando num cabelo
da morena. Se ele tivesse feito mal a ela, talvez que nem a descarada contasse
o caso aos parentes. Como o pobre a tratou como uma santa do altar, achou bom
vingar-se.
— Mulheres?!… Pode crer, patrão. Uma tira pelas
outras. E é tudo uma pouca vergonha.
(Herman Lima, Tigipió, 7ª ed. Rio de Janeiro,
J. Olympio, 1976)
Fonte:
MACIEL,
Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE:
Imprece, 2008.
Herman de Castro Lima - (Fortaleza, 11 de maio de 1897 — Rio de Janeiro, 21 de julho de 1981) foi um contista, memorialista e crítico de arte brasileiro.
Seu pai, Antônio da Silva Lima, era de família sertaneja da região do Aracati; e sua mãe, Julieta Demarteau de Castro Lima, belga. Inicialmente, trabalhou como auxiliar de fotógrafo e, posteriormente, como feitor da rodovia em construção, que ligava o porto de Aracati aos sertões do Jaguaribe. De volta a Fortaleza, foi funcionário da Delegacia Fiscal. Neste posto, em 1922, transferiu-se para Salvador, onde diplomou-se em medicina e seguiu para clinicar no distrito diamantino de Lençóis, interior da Bahia. De suas experiências em Lençóis, escreveu Garimpos (1930), coletânea de contos, que posteriormente foi traduzida para o espanhol por Benjamin Garay.[1]
Em seguida, rumou para o Rio de Janeiro, então capital federal. Ali, foi auxiliar da Presidência da República entre 1933 e 1937, assumindo logo em seguida a Delegacia do Tesouro Brasileiro em Londres.[1] De volta ao Rio, em 1940, dedicou-se com afinco ao estudo da caricatura no Brasil, da qual já era meticuloso colecionador desde tenra idade. Dessa pesquisa resultou uma obra em quatro volumes que é até hoje uma referência-chave no assunto.[2] Foi um dos principais biógrafos de Cândido Aragonez de Faria.[3]
Lima traduziu vários autores, predominantemente do francês e do inglês. Também publicou livros de memória que, em geral, evocam seus tempos de juventude no Ceará e são marcados por um profundo senso de paisagem, nostalgia, aspectos etnológicos e certo pendor para a anedota.
Na literatura, começou a publicar artigos e charges na imprensa de Fortaleza sob o incentivo de Gustavo Barroso, ao final da década de 1910. Entre suas obras mais conhecidas, figuram Tigipió (1924), contos, seu livro de estréia, que mereceu menção honrosa da Academia Brasileira de Letras e teve o conto título adaptado para o cinema em 1986;[4]Variações Sobre o Conto (1952), crítica literária; Imagens do Ceará (1958) e Poeira do Tempo (1967), memórias; e História da Caricatura no Brasil (em 4 vols.), história e crítica de arte.
FONTE: Wikipedia
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