A pedido do poeta-editor Paiva Neves, da Cordelaria Flor da Serra, escrevi esse depoimento sobre a importância da Literatura de Cordel durante a minha alfabetização e como os folhetos contribuíram para despertar em mim o gosto pela escrita e a leitura:
O CORDEL COMO FERRAMENTA
AUXILIAR NA SALA DE AULA
Nasci em setembro de 1967, na fazenda
Ouro Preto, pequena propriedade rural de meus avós, situada na divisa dos
municípios de Quixeramobim e Canindé (hoje a região pertence ao município de
Madalena). Vivi ali até os dez anos de idade, sob a luz da lamparina,
obedecendo aos velhos costumes sertanejos, herdados de meus ancestrais.
A única escola que havia na região,
distava quase uma légua e ainda utilizava a velha palmatória. Por conta disso,
minha avó resolveu me alfabetizar em casa. Uma das ferramentas que utilizei
durante esse processo de alfabetização foi a Literatura de Cordel. E por uma
razão muito simples, além de ser uma leitura prazerosa, minha avó possuía uma
coleção de folhetos que costumava ler em voz alta, para uma roda de ouvintes
maravilhados com a narrativa dos cordéis. Eu tinha os meus prediletos: Proezas de João Grilo, Cancão de Fogo,
Príncipe do Barro Branco, Batalha de Oliveiros com Ferrabrás e vivia
pedindo, insistentemente, para que ela os relesse.
Percebendo o meu gosto pelos folhetos
e sabendo que eu já tinha idade suficiente para ser alfabetizado, minha avó
comprou uma Carta de ABC e começou a me familiarizar com as letras. Assim que
aprendi a juntar as sílabas, pegava os folhetos e tentava decifrar o seu
conteúdo. Alguns eu já conhecia de cor e salteado, o que certamente facilitou o
meu aprendizado. Aos sete anos eu já lia desembaraçadamente e virei uma atração
na bodega de meu avô. Às vezes ele me sentava no balcão e pedia que lesse um
folheto para os seus fregueses. O público, formado por pessoas simples e
analfabetas, em sua maioria, sertanejos rudes, acostumados com as lides do
roçado, ficava encantado com aquela novidade.
Os autores que eu mais gostava eram
Leandro Gomes de Barros e José Pacheco. Do primeiro eu absorvi o gosto por
histórias de encantamento e romances de fôlego como o Cachorro dos Mortos e
Juvenal e o Dragão. Com José Pacheco, aprendi a métrica perfeita e o gracejo,
tanto que aos oito anos eu já fazia algumas estrofes nos meus cadernos
escolares. Meu pai, um amante da poesia, que sonhava em ser cantador na
juventude, incentivava o meu estro e até me ajudava a corrigir as rimas. De
métrica não havia necessidade porque sempre tive um ouvido privilegiado para o
ritmo, fã que sempre fui de Jackson do Pandeiro. Então o domínio das
redondilhas (maior e menor) eu aprendi muito cedo e depois, com o tempo,
observando os cantadores, aprendi também o decassílabo e até mesmo os
alexandrinos, lendo sonetos de Bilac e Augusto dos Anjos. Sempre gostei de
folhetos de pelejas: Cego Aderaldo e Zé Pretinho, Riachão com o Diabo, Pinto e
Milanês, justamente porque ofereciam a possibilidade de aprender novos estilos,
não ficavam naquela mesmice da sextilha.
Prossegui nesse aprendizado, sempre
em escolas informais, até os dez anos de idade. Somente em 1978 é que fui
matriculado no Instituto São José, em Maracanaú e para ser admitido na quinta
série fui submetido a uma prova, pois até ali eu não tinha boletins nem
histórico escolar. Dona Mazé, a diretora do Instituto, ficou impressionada com
a minha desenvoltura, um menino sertanejo, criado num ambiente rural, já tinha
uma bagagem razoável de conhecimento. Isso porque sempre fui um leitor
compulsivo, inclusive da Bíblia Sagrada. De modo que tirei nota máxima nesse
teste preliminar e ingressei na série desejada sem qualquer embaraço.
Sabedor da importância do CORDEL no
meu aprendizado, resolvi criar, em 2001, o projeto ACORDA CORDEL NA SALA DE
AULA a fim de incentivar o uso do folheto como ferramenta paradidática nas
escolas. Tempos depois conheci o pesquisador Ribamar Lopes, outro que também
teve a influência do cordel no seu processo de alfabetização. Segundo ele, lá
em Pedreiras-MA, terra de João do Vale, era comum que os alunos lessem em voz
alta, nas aulas de sexta-feira e o professor deixava que o próprio aluno
escolhesse o texto. Ele resolveu levar “A intriga do cachorro com o gato” e foi
criticado por algumas pessoas da escola, que diziam não haver “literatura”
naqueles folhetos de feira. Porém o velho Riba foi persistente e acabou
despertando nos colegas o interesse pelos folhetos, tornando-se um hábito a
leitura desses textos nas aulas seguintes.
No Maracanaú eu pegava folhetos
emprestados com um colega que morava na Pajuçara, cujo nome não me vem à
memória, mas eram folhetos diferentes, de capa colorida. O primeiro que o rapaz
me emprestou foi “Vicente, o Rei dos Ladrões”, de Manoel D’Almeida Filho.
Depois emprestou também “A marca do Zorro” e outros títulos publicados pela
Luzeiro. Ele considerava Manoel D’Almeida Filho um dos maiores poetas do
gênero. Em contrapartida, eu lhe emprestava folhetos tradicionais, da Lira
Nordestina e do editor Manoel Caboclo e Silva, que comprava no Mercado Público
de Maranguape. Não sei se os professores viam com bons olhos aquele
intercâmbio... Os demais alunos se interessavam por quadrinhos e bolsilivros de
faroeste. Ou simplesmente não liam nada, além dos livros escolares.
Tomando por base o meu exemplo e de
outros poetas como Rouxinol do Rinaré, Evaristo Geraldo, Marco Haurélio,
Klévisson Viana, dentre outros, não tenho dúvidas em afirmar que o cordel é uma
ferramenta poderosíssima na formação de novos leitores. A sua narrativa é
contagiante e o “professor folheto”, como chamava o saudoso poeta Manoel
Monteiro, deve ser trabalhado em classe, de preferência em leituras coletivas,
em voz alta.
Arievaldo Vianna
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