Jean Baptiste Debret:
Arrecadação de esmolas para a festa do Rosário
O DIA DE REIS
NA FORTALEZA ANTIGA
No
livro ‘Scenas e Typos’ do escritor Rodolfo Teófilo há uma bela
crônica intitulada Através do passado, que fala de um ritual que
ocorria na Fortaleza antiga, antes da abolição dos escravos: a
coroação do rei e da rainha dos pretos na vetusta Igreja do
Rosário. Repasso, a seguir, os principais trechos da referida
crônica:
ATRAVÉS
DO PASSADO
Igreja do Rosário (Fortaleza Nobre)
Eu
ouvia missa dominical na igreja do Rosário, em que me batizaram,
havia mais de meio século. Este pequeno templo, antes de edificada a
Sé, servia de matriz.
Frequentavam-no
então o governador da capitania e a elite da cidade, composta de
portugueses.
Era
também a igreja dos escravos, mas isso uma vez no ano. Tinha
patrimônio e irmandade. Celebrava-se nela a festa da padroeira, com
missa cantada e assistência real. Ainda alcancei esse tempo, que já
vai longe. Era o dia dos cativos o dia 6 de janeiro, dia de Reis.
Em
seu dia, esses desgraçados eram livres, tanto que tinham pátria
como os seus imperantes.
À
hora da missa, seguiam para a igreja o rei, a rainha e a corte. O rei
era um preto já idoso, de manto, cetro e coroa. A rainha, uma
escrava, meio velha, acompanhada de suas damas de honor. Na
capela-mor estava armado o trono, em que se deviam sentar suas
majestades.
Logo
que chegava o rei com a sua corte, entrava a missa, que era cantada,
com repiques de sinos e foguetes. O casal de escravos sentava-se no
trono com ares de quem estava convencido da realidade da sena,
representada também pelos reis dos brancos, tão ou mais ridículos
de cetro e coroa do que ele. Acabada a missa, saia o cortejo real de
cidade à fora até o ‘palácio’, em que passava o resto do dia a
comer, a beber, a dançar, festejando as poucas horas de liberdade
que todos os anos lhe concediam os senhores da terra, que primeiro
libertou os seus escravos.
(...)
As
senhoras de distinção iam à missa em palanquim. Entre elas estava
a minha avó paterna, para quem o marido, o português Manoel José
Teófilo, negociante abastado, mandaram vir da terra um muito lindo.
Comprara
uma parelha de escravos, parecidos, como se fosse cavalos de sege,
atrelados, carregando a senhora para a igreja. Quando minha avó me
contava esta história, eu, que era tão abolicionista quanto ela
escravagista, condenava aquela barbaridade; a velhinha ria-se e
dizia-me que o escravo vinha do começo do mundo.
(...)”
(in 'Scenas e Typos', Rodolfo Teófilo - Fundação Waldemar Alcântara, edição fac-similar)
(in 'Scenas e Typos', Rodolfo Teófilo - Fundação Waldemar Alcântara, edição fac-similar)
HISTÓRIA
DA IGREJA DO ROSÁRIO
Em
Fortaleza, vila nascente onde estava instalada a administração da
Província do Ceará Grande, como em muitas outras cidades do Brasil,
os homens de cor, embora não fossem em grande número, procuraram,
desde cedo, ter o seu próprio templo, já que eram discriminados nas
igrejas construídas pelos brancos. E, assim como em outras partes,
sua devoção dirigia-se a Nossa Senhora do Rosário, considerada sua
Padroeira.
A
tradição diz que já em 1730, um preto africano construiu, no mesmo
local onde está a atual, uma capelinha, de taipa e palha, onde os
negros rezavam terços e novenas, na época bastante distante da
Vila, centralizada em redor da Matriz de São José.
Debret: Casamento de negros
A
Primeira Festa
A
primeira festa dedicada a Padroeira realizou-se ali no dia 27 de
outubro de 1747, cobrando os padres que funcionaram nos atos
religiosos a quantia de 10$000 pela missa e 7$000 pela música. A
partir de então, todos os anos, vinham os pretos, escravos ou
forros, nos bandos de congos dançarem na Noite de Natal em frente à
Igreja, para festejar a Virgem. Era grande o número de pessoas que
vinham prestigiar a solenidade, inclusive autoridades. Em certas
ocasiões a festa do Rosário alcançava raro esplendor. Como lembra
João Nogueira, em sua "Fortaleza Velha" era festa de
pretos, mas levada com grande pompa e luxo, as negras escravas
ostentando cordões de ouro, brincos e jóias de valia, que suas
bondosas senhoras lhes emprestavam para que se apresentassem como o
espavento e brilho exigido pela importância da missa e coroação
dos reis.
Assim,
era na igrejinha do Rosário, toda caiada de novo, que se procedia ao
ritual da coração do rei, do rei dos Congos, do rei do Rosário,
com sua rutilante coroa à cabeça, seu vistoso manto de tecido de
algodão aveludado, de um vermelho vivo, contrastando com colete
verde e calças azuis, e sempre acompanhado de sua corte, de onde se
destacavam as figuras do "príncipe" e do "secretário",
com seus chapéus de abas largas enfeitados de brilhantes conchas.E
pelas ruelas nascidas na beira do mar, rumo ao sul vinha o cortejo,
cantando e executando bailados e jogos de agilidade, simulando
combates, rumo ao Rosário.
O
Secretário, então, perguntava: Os pretinhos dos congos, pra onde
vão?
O
coro respondia: Nós vamo pro Rosário. Festejá a Maria.
Secretário:
Oh! Festeja, oh festeja, oh festeja. Com muita alegria.
Coro:
Nós vamo pro Rosário, Festejá a Maria.
Secretário:
É de zambi a pumba. É de bambê.
Coro:
Miserere, miserere. Misere rê.
Secretário:
Papaconha, papaconha. Peneruê.
Coro:
É de zambi a ponga. E qui bambê.
Maria
Moreira e Joana Rodrigues, filhas de Jorge Rodrigues, atendendo ao
seu pai, fizeram doação à Santa, em 28 de novembro de 1748, de
terras na estrada que ia para Porangaba no rumo de Porangabuçu, com
mais ou menos um quarto de légua de comprimento, por três quartos
de largura. Esse patrimônio ainda existe, produzindo renda sob a
forma de fóros e laudêmios.
Havia
uma Irmandade, com dirigentes negros e um Juiz (Presidente) branco,
porém, no início, o grupo tinha dificuldades em manter o imóvel em
perfeitas condições, tanto que, em 1753 a igrejinha estava ameaçada
de cair e com a permissão das autoridades eclesiásticas,
iniciaram-se a reconstrução, em pedra e cal, que em 1755 ficou
pronta.
Em
1821, a Matriz de São José estava em ruínas, precisando ser
reconstruída. Tendo a vila crescido para o lado da Igreja do
Rosário, foram passadas para esta, em procissão, o Santíssimo
Sacramento e todas as imagens, passando ela a funcionar como Matriz
até 2 de abril de 1854, quando as imagens voltaram à Matriz.
Sendo
a Igreja unida ao Estado, os templos eram usados para realização de
atos públicos. Ocorrendo um conflito mais grave quando das eleições
realizadas em setembro de 1848, resultando em derramamento de sangue
dentro do próprio recinto sagrado, a capela foi interditada, sendo
posteriormente arrombada pelos líderes de um dos partidos.
Ao
tempo em que era presidente da Província o bacharel Francisco Xavier
Paes Barreto, o vice-presidente José Antônio Machado mandou
proceder nova reforma que terminou em 1855.
Em
1872 o capitão João Francisco dos Santos, procurador dos bens
patrimoniais ficou encarregado de limpar, assear e decorar o templo.
A Igreja do Rosário sempre foi mantida com recursos próprios,
advindo de grande terreno a ela doado em 1748, terrenos esses que se
estendiam desde o local da igreja até o sítio Damas. Em 1871,
entretanto, seus recursos se esgotaram e o então presidente José
Antônio Calazans Rodrigues (Barão de Taquary) encaminhou pedido que
só foi atendido na gestão seguinte, de João Wilkens de Mattos,
importando na quantia de 2.000$000 (dois contos de réis), da Lei Nº
1440 de 2 de outubro de l871. Mas a verba destinada ao trabalho no
templo era insuficiente e o presidente teve de complementar com
pagamento de férias por conta da verba "Obras Públicas",
ficando a obra concluída ainda em 1872.
O
cronista Mozart Soriano Aderaldo, em "Variações em torno da
Catedral", revela que a 16 de fevereiro de 1892, na revolta
contra o Presidente General José Clarindo de Queiroz, promovida por
Floriano Peixoto e executada pelos alunos da Escola Militar, uma bala
de canhão, de 11 quilos, das utilizadas no bombardeio do Palácio da
Luz - vizinho à igreja - foi arremessada contra a sua porta
principal e, penetrando por ali arrebentou o púlpito, 2 balaustres
da mesa de comunhão e a parede que dá para o corredor esquerdo;
depois, em ricochete, destruiu o altar de Nossa Senhora das Dores e
mais 3 balaustres. Outra bala dessas apeou o General Tibúrcio do seu
pedestal, em episódio mais conhecido, no qual salientou-se o caráter
daquele militar cearense: mesmo nessa hora, ele caiu em pé!
Mas
a igreja a que nos referimos até agora não é exatamente esta que
hoje lá está, há muito desvinculada dos devotos de cor,
relembrando um tempo bem recuado da nossa história. Várias reformas
nela foram processadas, além das já citadas. Em março de 1929
abriu-se novas janelas na altura do primeiro andar, em julho de 1935
foram construídos dois nichos, ao lado do sacrário, com Nossa
Senhora do Rosário e Santa Teresinha e, por último, em setembro de
1938, repetiu-se o episódio de 1821: a Matriz de São José foi
demolida para construção de uma nova e a Igreja do Rosário passou
a ter as honras de Catedral, embora muitos atos, mais solenes,
viessem a ser realizados na Igreja do Pequeno Grande. Foram
necessários, outra vez, trinta anos, para a construção da nossa
nova e esplêndida Catedral, durante os quais a Igreja do Rosário
funcionou como a principal de toda a Arquidiocese!
A
Igreja do Rosário é testemunha de fatos históricos
importantíssimos, dentre eles a deposição de Nogueira Accioli em
1912 e as trincheiras de 1914 feitas para receberem os jagunços da
"Sedição de Juazeiro".
Fonte:
http://irmandadedorosariofortaleza.blogspot.com.br/2011/05/blog-post.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário