sexta-feira, 19 de abril de 2013

NOBREZA DO CORDEL


 
ENTREVISTA – Diário de Pernambuco / 30-04-2008 
Caderno Especial ‘Nobreza do Cordel’ (8 páginas)

Arievaldo Viana é um ardoroso militante da causa do cordel. Nascido em 1967 numa fazenda nas proximidades de Quixeramobim (CE), ele exercita a arte da poesia popular desde a infância. Hoje, com cerca de 50 folhetos e três livros publicados, ocupa a  cadeira de número 40 da Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Seu currículo, traz, ainda, prêmios na categoria e um projeto, Acorda Cordel na Sala de Aula, utilizado para alfabetizar jovens e adultos. Há mais de 10 anos, ele reúne material sobre a vida e a obra de Leandro Gomes de Barros. O esforço gerou uma biografia do poeta paraibano que será lançada ainda este semestre pela Editora Global*. A seguir, entrevista realizada por e-mail:
 

 

ENTREVISTA (ARIEVALDO VIANA)

“Leandro foi gênio em todos os estilos”


1) O que faz de Leandro um artista autêntico, original, no vasto universo do cordel?

ARIEVALDO – O pioneirismo de Leandro Gomes de Barros e os mecanismos que ele desenvolveu para que houvesse a transição da poesia popular oral para o folheto impresso é uma coisa de gênio. A arte do trovadorismo veio da Península Ibérica e floresceu tanto na América Espanhola quanto na América Portuguesa. Houve um tipo de literatura popular em verso no México, Chile, Nicarágua e Argentina, muito parecido com o folheto nordestino... Até a gravura popular usada para ilustrar os corridos é muito parecida com a nossa, sem falar que muitos dos temas aproveitados pelos autores da Literatura de Cordel nordestina também floresceram nesses países. De certo modo, a Literatura de Cordel brasileira surgiu de maneira tardia, porque antes da vinda da Corte Portuguesa em 1808, era proibida a existência de prelos aqui no Brasil. Então, a poesia popular oral, que já existia desde os tempos de Agostinho Nunes da Costa, Hugolino do Sabugi, Inácio da Catingueira e Romano da Mãe D’água ganhou um novo alento quando Leandro mudou-se da Vila do Teixeira, na Paraíba, para Vitória de Santo Antão e passou a editar os primeiros folhetos nas tipografias de Recife. Leandro não se limitou a reaproveitar os temas correntes, como a gesta do boi (Boi Misterioso), o cangaço (já existiam cópias manuscritas dos ABCs de Jesuíno Brilhante e Lucas da Feira) ou temas europeus como o Ciclo de Carlos Magno e os Doze Pares de França, Imperatriz Porcina e Roberto do Diabo. Ele foi mais longe. Criou um tipo de poesia cem por cento brasileiro, destacou-se sobretudo pela sua sátira mordaz e instigante. O estilo de Leandro é inconfundível. Ele teve fôlego para transitar em todos os gêneros e modalidades correntes: Peleja, Romance, Gracejo, Crítica Social e o fez com maestria. Poucos conseguiram igualar-se. No geral, ninguém o superou até hoje. José Camelo de Melo, autor do Romance do Pavão Misterioso, foi um gênio na modalidade Romance, assim como José Pacheco, autor de A Chegada de Lampião no Inferno foi um gênio em matéria de gracejo. Mas ninguém teve a grandeza de Leandro, que foi gênio em todos os estilos.


2) Como se deu a formação intelectual e poética de Leandro Gomes de Barros? O que podemos ver repercutido na sua obra?

ARIEVALDO – Leandro descendia de uma família de pessoas inteligentes. Era parente do padre Vicente Xavier de Farias, que foi vigário e mestre-escola na Vila do Teixeira. Acho provável que ele tenha estudado com o padre entre os 9 e os 15 anos de idade, período em que permaneceu na companhia deste religioso. Ele fez romances de cavalaria baseados no livro de Carlos Magno e os 12 Pares de França com tal fidelidade, que se pegarmos uma versão em prosa da história, ficamos encantados com a maneira como ele aproximava a sua poesia do texto original. Foi um pesquisador incansável dos contos tradicionais, onde buscava argamassa para suas criações e, sobretudo, um bom conhecedor da Bíblia Sagrada. É provável que tenha lido poetas eruditos como Castro Alves, Gonçalves Dias, Camões ou Álvares de Azevedo, mas o que ele gostava mesmo era da poesia dos cantadores, principalmente aqueles que cantavam “Ciência”, que bebiam em fontes como o Lunário Perpétuo. Seu amigo e compadre Francisco das Chagas Batista era editor e livreiro na capital da Paraíba. Seu genro Pedro Batista, irmão de Chagas e esposo de Rachel Aleixo (sua filha mais velha) era membro do Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba e também possuía uma livraria em Guarabira. Leandro conviveu com homens cultos e era uma pessoa antenada com as coisas de seu tempo. Era também muito curioso em relação às coisas do passado. Talvez não tenha aprimorado mais o seu estro para não se distanciar de seu público, pessoas simples, que moravam nos engenhos, nas fazendas ou nos arrabaldes das capitais nordestinas.


3) Como o cordel era visto pelas elites culturais do início do século XX? E a produção do próprio Leandro?

ARIEVALDO – Se pegarmos como parâmetro a obra de Leandro veremos que ele freqüentava livrarias, redações de jornais, cafés, hotéis e, principalmente mercados e estações de trem, principal meio de transporte de sua época. Pegava os temas mais em voga e diluía a seu modo, colocando sua visão crítica e despertando uma consciência crítica nos seus leitores. O preconceito contra a poesia popular sempre existiu e sempre existirá. Talvez fosse mais forte no tempo de Leandro, mas isso não impedia que homens de letras como Sílvio Romero, Leonardo Mota, Gustavo Barroso, Câmara Cascudo, Rui Barbosa e Mário de Andrade se dedicassem à leitura e até mesmo à pesquisa das produções poéticas dos cantadores e poetas de bancada. Aliás, é importante lembrar que Leandro bebeu na fonte da cantoria, mas os cantadores beberam muito mais na obra de Leandro. Você pega livros de Leonardo Mota e encontra vários poetas declamando ou cantando criações de Leandro como O Soldado Jogador, O Boi Misterioso, Padre Nosso do Imposto etc., muitas vezes sem dar o devido crédito ao autor.

O que ocorre com grande parte dos intelectuais brasileiros é a falta de interesse por uma cultura genuinamente nossa. É por isso que surgiram escolas literárias imitando os franceses e os ingleses e devotando um verdadeiro desprezo às coisas de nosso país. Foi preciso que intelectuais vindos da Europa ou da América do Norte viessem aqui pesquisar o nosso folheto de feira e a nossa gravura, que organizassem exposições nas maiores universidades do mundo, para que boa parte dessa gente passasse a ver o cordel com bons olhos. Um aspecto muito positivo nessa virada do milênio foi a adaptação que a Rede Globo fez para O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Hoje você vai numa escola qualquer, nos cafundós do sertão, e toda criança sabe quem é o João Grilo. Sabem que ele é um personagem oriundo da tradição popular cuja popularidade consolidou-se através da Literatura de Cordel.



4) Mesmo reconhecida por escritores e pesquisadores do porte de Ariano Suassuna, Drummond e Câmara Cascudo, a obra de Leandro ainda permanece desconhecida do grande público. A que você atribui esse fato?

ARIEVALDO – Ainda em vida Leandro enfrentou muitos problemas com a pirataria. Havia editores em Belém-PA e Fortaleza-CE que não davam trégua e reproduziam seus maiores clássicos em edições clandestinas. Depois de sua morte, em 1918, sua filha Rachel e seu genro Pedro Batista continuaram editando seus folhetos e colocando avisos veementes contra esse abuso. Rachel morreu prematuramente, aos 27 anos, em 1921. Um desentendimento entre a viúva do poeta, dona Venustiniana e o marido de Rachel acabou provocando a venda de todo o seu espólio ao poeta-editor João Martins de Athayde. João Martins era bom poeta, mas queria superar o mestre e acima de tudo preservar a sua propriedade e começou a eliminar o nome de Leandro da capa dos folhetos, colocando apenas o seu como “Editor Proprietário”. Depois foi mais longe... Adulterou os acrósticos de Leandro e chegou mesmo a lançar uma antologia “O Trovador do Nordeste”, organizada por Valdemar Valente, onde se faz passar por autor de vários poemas de Leandro. A situação foi se agravando com o passar dos anos e piorou ainda mais quando Athayde encerrou suas atividades, em 1949, passando todo o acervo de Leandro e outros poetas para o editor José Bernardo da Silva, de Juazeiro. Muitos pesquisadores desinformados, ainda hoje citam obras de Leandro como se fossem de Athayde e até mesmo de José Bernardo. Foi necessário que surgissem pesquisas sérias, como a de Sebastião Nunes Batista e da socióloga Ruth Brito Lemos Terra para que Leandro voltasse à tona e fosse conhecido pelas gerações atuais. Hoje em dia a Casa de Rui Barbosa mantém, preservado, um precioso acervo de folhetos de Leandro em edições que vão de 1904 a 1920. Muitas delas feitas pelo próprio autor. É isso que possibilita o resgate, mas ainda não colocou Leandro no seu devido lugar. Poetas de menor expressão gozam de muito mais prestígio junto ao público nos dias atuais.


(...) Continua.

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