terça-feira, 29 de outubro de 2019

REMINISCÊNCIAS


BIBLIOTECA SERTANEJA


 O Mártir do Gólgota, O Escudo Admirável, A Bíblia das Escolas, Carlos Magno e os Doze Pares de França, Lunário Perpétuo e folhetos do Romanceiro Popular Nordestino



Lunário Perpétuo


“Para mim o livro era um milagre, nele se encerrava a alma de quem o escrevera; abrindo o livro, eu libertava essa alma, e ela conversava misteriosamente comigo.”
(Máximo Gorki – Ganhando meu pão)

Que tipo de leitura predominava nas fazendas e engenhos nordestinos do Século XIX e primeira metade do Século XX? Essa matéria que sempre instigou a minha curiosidade também despertou o interesse de alguns folcloristas renomados, dentre os quais os potiguares Oswaldo Lamartine de Faria e Pe. João Medeiros Filho, autores de um interessante opúsculo intitulado “Seridó – Sec. XIX (Fazendas e Livros)”, onde apresentam uma lista de obras que constituíam a principal leitura dos nossos sertanejos de antanho. Essa lista divide-se em duas categorias: Livros de Prateleira e Livros de Oratório. 

Na primeira lista figuram o “Lunário e Prognóstico Perpétuo”, “História do Imperador Carlos Magno”, “Formulário e guia médico de Chernoviz”, “Orador Familiar”, “Medicina Caseira”, “Código de bom tom”, “Diccionario da Lingua Portuguesa”, “O advogado da roça” e “Estudo moral e político sobre Os Lusíadas”. Na segunda categoria encontram-se livros sacros, alguns dos quais eu tive o prazer de folhear, pois estavam guardados na gaveta do santuário de minha avó Alzira Viana de Sousa Lima, durante a minha infância no Ouro Preto. Eis a lista: “Bíblia Sagrada”, “Da Imitação de Christo”, “Adoremus”, e “Missão Abreviada”. Os autores esqueceram de enfeixar, pelo menos, duas obras que foram muito populares antigamente, em diversas partes do Nordeste Brasileiro, sobretudo no meio rural: “O Mártir do Gólgotha”, do romancista espanhol Enrique Pérez Scrich, e “O Escudo Admirável (Para os Males da Vida: Torre fortíssima para o instante da morte e patrocínio efficaz no Divino Tribunal)”, esse último um livro de orações contendo a hagiografia e novenário de diversos santos católicos.

Oswaldo Lamartine atesta ainda a existência dos folhetos de feira (a chamada Literatura de Cordel) e almanaques populares, que geralmente eram guardados no gavetão da mesa de jantar. Os livros religiosos ficavam na gaveta do oratório da família e os demais, considerados “livros de prateleira” em estantes ou dentro de malas e baús.

Um dos livros que mais desejei conhecer na infância foi a versão em prosa da “História de Carlos Magno e os Doze Pares de França”. Minha avó fazia referências constantes à saga do Imperador Cristão e até pôs o nome de Ferrabrás num cachorrinho de estimação que possuía. Quando saíamos a tarde, para as visitas que ela costumava fazer aos filhos que moravam na vizinhança, o irrequieto “Ferrabrás” nos acompanhava e a avó geralmente declamava a seguinte estrofe, extraída de “Batalha de Oliveiros com Ferrabrás”, de Leandro Gomes de Barros:

O Almirante Balão
Tinha um filho, o Ferrabrás
Que entre os turcos, era o mais
Que tinha disposição
Mesmo em nobreza e ação
Era o maior que havia
Então em toda Turquia
Onde se ouvia falar
Tudo tinha de respeitar
Ferrabrás de Alexandria.

(...)

Ou esta outra, extraída de “A prisão de Oliveiros e seus companheiros”, também de Leandro:

Ferrabrás era um gigante
De corpo descomunal,
Como nunca teve igual
No reino do Almirante,
Ele só era bastante
Para cinco mil guerreiros
Oito, dez mil cavaleiros
Morreram pelas mãos dele
E só tirou sangue n’ele
A espada de Oliveiros.

Eu olhava a figura minúscula do Ferrabrás canino, acuando preás e lagartixas na beira da estrada e achava um disparate que a avó o tivesse “batizado” com o nome de um guerreiro tão forte e destemido.


Vó Alzira


* * *

De acordo com o eminente folclorista potiguar Luís da Câmara Cascudo, “A História do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares da França” foi o livro mais conhecido das populações rurais do Nordeste brasileiro. Onde havia criações de gado, engenhos e plantações de cana-de-açúcar esse livro, juntamente com a Bíblia Sagrada e o Lunário Perpétuo, eram leituras bastante apreciadas. Raríssima seria a casa sertaneja sem um exemplar dessa obra, nas velhas edições portuguesas. Segundo Cascudo “nenhum sertanejo ignorava as façanhas dos Pares ou a imponência do Imperador da barba florida”.
Tal popularidade fez com que “A História do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França” servisse de inspiração para cantadores e poetas populares, tanto em seus desafios quanto nos folhetos de feira, a começar por Leandro Gomes de Barros e João Melchíades Ferreira da Silva, dois expoentes da fase inicial do Romanceiro Nordestino. Na essência de suas narrativas os poetas destacam os valores da coragem, da honra a palavra dada, da nobreza e da fé.


Casa velha do Castro, onde nasceu minha avó. A construção datava de 1850

O Escudo Admirável e os poderes do
Responso de Santo Antônio


 Escudo Admirável

O meu bisavô Francisco de Assis e Sousa, o Fitico, um velhinho muito religioso e temente a Deus (como se dizia antigamente) possuía alguns livros de orações, dentre os quais um exemplar do Escudo Admirável*, magnífico compêndio editado na cidade do Porto – Portugal, na segunda metade do Século XIX. Essa relíquia bibliográfica, encadernada em capa dura e ainda em excelente estado, apesar do constante manuseio, coube por herança à minha avó Alzira, que m’o deu de presente poucos dias antes de expirar o seu último suspiro aqui na terra.
Minha avó Alzira, antes de morrer, me doou um precioso acervo de livros sacros, alguns dos quais, herdados de seu pai, o velho Francisco de Assis e Sousa, o Fitico do Castro. Dentre esses livros estão dois volumes de O MARTIR DO GÓLGOTHA, tradução de J. Cruzeiro Seixas, impressa em Porto - Portugal, em 1883. Um outro livro precioso é o ESCUDO ADMIRÁVEL. O mais interessante de todos, porém, sumiu misteriosamente de minha biblioteca*. Era um exemplar de A BÍBLIA DAS ESCOLAS ou HISTÓRIA RESUMIDA: ANTIGO E NOVO TESTAMENTO - 4ª Edição, 1905 - Friburgo em Brisgau (Alemanha) pelo editor B. Herder, Livreiro Editor Pontifício.
Este livro era fartamente ilustrado com gravuras e mapas da Terra Santa. Em seu miolo, havia recortes de jornais sobre a história da Matriz de Santo Antônio, de Quixeramobim, e a assinatura do velho Fitico na folha de rosto, com a data de 1912. 
Na imagem abaixo, apresento-lhes a capa da referida publicação, exatamente igual à que herdei de minha avó, que encontrei no site MERCADO LIVRE.


* DETALHE: O livro estava em boas mãos e reapareceu depois dessa postagem. Como dizia a Alzirinha: - A falta de um grito, perde-se a boiada!


Exemplar de A BÍBLIA DAS ESCOLAS, mesma edição que eu possuía

Alzirinha era devota fervorosa de Santo Antônio de Pádua, taumaturgo católico que goza de grande prestígio no Brasil e Portugal, cuja data magna se festeja no dia 13 de dezembro. Vovó costuma rezar a sua trezena, de 01 a 13 de junho e o ponto alto da celebração era a declamação do RESPONSO DE SANTO ANTÔNIO, que assim se apresenta no Escudo Admirável:

RESPONSO DE SANTO ANTONIO

- Se milagres desejais,
Recorrei a Santo Antônio,
Vereis fugir o demônio
E as tentações infernais.

- Recupera-se o perdido.
Rompe-se a dura prisão
E no auge do furacão
Cede o mar embravecido.

- Todos os males humanos
Se moderam, se retiram,
Digam-no aqueles que o viram,
E digam-no os paduanos.

- Recupera-se o perdido.
Rompe-se a prisão
E no auge do furacão
Cede o mar embravecido.

- Pela sua intercessão
Foge a peste, o erro, a morte,
O fraco torna-se forte
E torna-se o enfermo são.

(Rezar um Glória ao Pai).

- Recupera-se o perdido
Rompe-se a dura prisão
E no auge do furacão
Cede o mar embravecido.

V. – Rogai por nós, bem-aventurado Antônio.
R. – Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.


(Fonte: Escudo Admirável, pág. 451)

Atribui-se ao Responso de Santo Antônio o dom de achar objetos perdidos e também desvendar roubos misteriosos. Tal propriedade é citada no romance Luzia Homem, de Domingos Olympio. Sobre o santo Orago português, nos diz Câmara Cascudo, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro: “Um dos santos de devoção mais popular no Brasil. Suas festas quase desapareceram, mas o prestígio se mantém nos assuntos de encontrar casamento e encontrar coisas perdidas. (...) Uma tradição conservada oralmente há mais de um século reza:

Quem milagres quer achar
Contra os males do demônio,
Busque logo a Santo Antônio
Que só há de encontrar.

Aplaca a fúria do mar,
Tira os presos da prisão,
O doente torna são,
O perdido faz achar.

E sem respeitar os anos
Socorre a qualquer idade,
Abonem esta verdade
Os cidadãos paduanos.”

* Sobre o ESCUDO ADMIRÁVEL
Escudo Admirável para os Males da Vida
Padre Manoel José                      
Editora: Casa de Cruz Coutinho
Ano: 1863
Título completo: Escudo Admirável Para os Males da Vida: Torre fortíssima para o instante da morte e patrocínio efficaz no Divino Tribunal. Nova edição, accrescentada com muitas Novenas e outras devoções Pelo Padre J. R. C.

ORAÇÕES DE MINHA AVÓ

Rezava-se bastante no Ouro Preto. Em janeiro, novenas à São Sebastião, para nos livrar da fome, peste e guerra. Em março, novenas para São José, o padroeiro do Ceará, nome fortemente ligado à quadra invernosa. É que a passagem do equinócio praticamente coincide com a data em que se festeja o casto esposo da Virgem Maria. Esta, por sua vez, era regiamente festejada durante todo o mês de maio com rezas em benditos. Terminado o Mês Mariano, tinha início, imediatamente, a Trezena de Santo Antônio, santo de devoção da avó, no período de 01 a 13 de junho. O que eu mais gostava era de ouvir, além do Responso, eram as JACULATÓRIAS, também compostas em quadras, em redondilha maior (versos de sete sílabas), o que lembrava-me sempre os folhetos e romances de cordel que ela lia após o jantar. Ei-las, tal e qual minha avó recitava:

Ó angélico Santo Antônio
Com Deus-Menino nos braços
Fazei com que Ele me prenda
Com seus amorosos laços.

Ó angélico Santo Antônio
Espelho de castidade
Conserve meu coração
Livre de toda maldade.

Ó angélico Santo Antônio
Em milagres portentoso
Pedi a Deus que me dê
Um coração fervoroso.

Ó angélico Santo Antônio
Dai-me a vossa proteção
Na terra guiai meus passos
Pra lograr a salvação.

Ó angélico Santo Antônio
Que deparais o perdido
Alcançai-me uma dor grande
De ter a Deus ofendido.

Ó angélico Santo Antônio
Se vossa língua é bendita
Fazei que vossa doutrina
Na minh’alma esteja escrita.

Ó angélico Santo Antônio
Se os inocentes livrais
Livrai-me de cometer
Horrendas culpas mortais.

Ó angélico Santo Antônio
Esplendor de Portugal,
Valei-me e acompanhai-me,
Que sou vosso natural.

Eu achava cativante a imagem de Santo Antônio, jovem e imberbe, com o menino Jesus nos braços, ao lado de um ramo de lírio. Segundo o folclorista cearense Leonardo Mota, em Prosa Vadia, livro de 1932 (bastante raro hoje em dia), a verdadeira figura do taumaturgo português era completamente diversa da que foi popularizada pela Igreja. Era um santo baixinho, gordo e cabeçudo, porém um brilhante orador, lembrando o próprio Leota, que pesava umas oito arrobas, era cabeça chata da gema e exímio conferencista.


Outros Livros

Outras obras interessantes que tive o prazer de conhecer na infância e não foram doadas para o meu acervo eu procurei readquirir por meio de compra, às vezes sem dar importância ao valor cobrado. Dentre essas figuram “O sanfoneiro do Riacho da Brígida”, biografia de Luiz Gonzaga escrita por Sinval Sá, escritor de quem me tornei amigo tempos depois. A avó tinha um exemplar da primeira edição, de 1966. Readquiri também “Sertão Alegre” e “Cantadores”, de Leonardo Mota e muitos outros que me passaram pelas mãos entre os oito e os quinze anos de idade.
“O Patriarca do Juazeiro”, biografia do Padre Cícero escrita pelo Padre Azarias Sobreira tem uma história interessantíssima. Conforme divulguei no primeiro livro desta série, “Sertão em Desencanto”, Padre Azarias, quando adolescente, hospedou-se na fazenda de meus bisavós Fitico e Mercês, nascendo daí uma amizade que perdurou pelo resto da vida. Foi por orientação do Padre Azarias que o velho Fitico resolveu construir a capelinha do Castro, dedicada à Jesus, Maria e José. Foi nessa pequena igrejinha que recebi a água e os Santos Óleos do batismo e, oito anos depois, recebi a Primeira Comunhão.


Quando o Padre Azarias publicou a primeira edição de “O Patriarca do Juazeiro”, fez questão de enviar um exemplar autografado e com uma bela dedicatória para a minha bisavó. Tive contato com esse livro na infância e depois o perdi de vista. Por um desses milagres do ‘deus’ destino, esse livro retornou às minhas mãos graças ao amigo Jander Araújo, que ao ler na página de rosto a seguinte dedicatória “À Dona Mercês de Sousa – uma humilde lembrança do Autor. Fortaleza, 17 de setembro de 1969, Pe. Azarias Sobreira”, entendeu que o livro deveria ficar em meu poder. Foi um dos melhores presentes que já recebi em minha vida.

Bisavó Mercês de Sousa Vianna


(In ‘Histórias que os antigos me contavam’ – Volume III de Memórias)

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