Ilustração: Arievaldo Vianna
Em
1934, após uma viagem de 1.307 quilômetros pelos sertões do Rio Grande do
Norte, numa comissão governamental, o grande folclorista Luís da Câmara Cascudo
publicou uma série de artigos no jornal A República que foram enfeixados, logo
a seguir, num livro intitulado “Viajando o Sertão”, um misto de reportagem,
crônica e ensaio, abordando os mais palpitantes temas da vida sertaneja. Nessa
obra, da qual possuo um exemplar da terceira edição, presente do amigo Carlos
Alberto, de Natal, o mestre potiguar faz
uma análise do comportamento dos velhos sertanejos diante da Natureza e da
arte, fazendo a seguinte assertiva: “o sertanejo não tem sentimento decorativo
nem ama sensorialmente a Natureza. Seu encanto é pelo trabalho realizado por
suas mãos. Nisso reside seu manso orgulho de vencedor da terra”. Cascudo se
refere àqueles sertanejos nordestinos da primeira metade do século XX, que
viviam enclausurados em suas fazendas, distantes do litoral e da chamada
civilização.
E
arremata: “Só deparamos um sertanejo extasiado ante a Natureza quando esta
significa para ele a roçaria virente, a vazante florida, o milharal pendoando,
o algodoal cheio de capulhos. Árvore por si só nada quer dizer. A oiticica vale
pela sombra que dá nos meio-dias de queimada. O verde úmido dos juazeiros
lembra sempre forragem fácil e segura. A noção de Beleza para ele é a
utilidade, o rendimento imediato, pronto e apto a transformar-se em função.”
Parafraseando Oscar Wilde, conclui citando a sua frase irônica “a arte é
perfeitamente inútil”, dizendo que ela poderia ter sido proferida por um
comentador sertanejo.
A
música de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, representa tudo isso que foi dito por
Cascudo: o roçado, o milho pendoando, o algodão carregado de capulhos, o
juazeiro, a oiticica, a vazante florida, mas representa também o que há de mais
belo na Natureza: o sabiá, a asa-branca, o mandacaru que ‘fulora’ durante a
seca pressagiando um bom inverno, o coaxar da saparia na lagoa e até mesmo
canto triste da Acauã. A poesia de Humberto Teixeira e Zedantas, dois
sertanejos de boa cepa, está recheada de tudo isso. Essa música tão rica de
sentimento, tão impregnada das belezas da Nação Nordestina, foi a trilha sonora
de minha infância.
MADALENA GANHA MUSEU
EM HOMENAGEM À GONZAGÃO
Matéria publicada no jornal FOLHA DO POVO, de Canindé-CE
Matéria publicada no jornal FOLHA DO POVO, de Canindé-CE
A música de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, foi a trilha sonora de minha infância. Logo cedo, ao acordar, o rádio de minha avó já estava ligado nos programas sertanejos recheados de boa música e poesia. Qual foi o menino sertanejo da década de 1970 que não se encantou com a prosa faceira de Karolina com K e Samarica Parteira?
Certa feita o apresentador Carneiro Portela, criador do Ceará Caboclo, fez um programa especial em homenagem a Luiz Gonzaga, onde afirmava que a música do Rei do Baião representa a alma do Nordeste e, para enfatizar ainda mais a sua teoria, concluiu do seguinte modo: “ Se, por uma fatalidade, o Nordeste fosse destruído por uma hecatombe, seria possível reconstruir a sua história a partir das canções de Gonzagão e seus parceiros. Está tudo ali o lavrador, o vaqueiro, o cangaceiro, a parteira, o tropeiro, a fauna, a flora, os costumes, a casa de farinha, o engenho, as festas juninas, os animais domésticos.” É interessante notar que em todas as canções, sem exceção, está presente a marca da cultura e das tradições do povo Nordestino. Por esta razão, em 2012 ano do centenário de nascimento de Luiz Gonzaga do Nascimento , lancei pela Editora Armazém da Cultura, em parceria com Arlene Holanda, o livro “O beabá do Sertão na voz de Gonzagão”, adotado pelo MEC, através do PNBE (Programa Nacional da Biblioteca da Escola), no ano seguinte.
Disco raro do acervo de Gilvan Sales
Norteado por esse mesmo sentimento, o vereador Gilvan Sales, de Madalena-CE, fã “gonzagueano” desde a adolescência, implanta naquele município o museu LUIZ GONZAGA E O SERTÃO, onde disponibilizará um vasto e precioso acervo composto de discos de cera e vinil, CD's, livros, revistas, cartazes, recortes de jornal e objetos relacionados com a fulgurante carreira do Rei do Baião. Afora esse material, o museu reunirá também centenas de objetos do Nordeste de outrora, muitos já em desuso, como bolandeiras, objetos de cerâmica, artesanato em couro e madeira, além de apetrechos da agricultura e da pecuária que remetem ao sertão cearense dos séculos XIX e XX. Gilvan adquiriu também aviamentos de casa de farinha e um engenho para fabricação de mel e rapadura.
“— Inicialmente eu me interessava apenas pela música e passei a adquirir todos os LP's de Gonzaga, dando preferência aos originais, embora não descartasse os relançamentos. Depois disso passei a comprar discos de cera, LP's de 10 polegadas, CD's e outras mídias contendo a obra do Rei do Baião. Sertanejo que sou, filho, neto e bisneto de fazendeiros da região de Madalena e Quixeramobim, sempre me interessei por esse universo e quando nasceu a idéia de criar o museu, passei a adquirir outros objetos que reforçam essa ligação da música de Gonzaga com o sertão”, conta Gilvan Sales.
Ele relembra que, em meados da década de 1960, Luiz Gonzaga esteve em Madalena, a convite do vigário de então, Padre Gotardo Lemos, lançando o livro “O sanfoneiro do Riacho da Brígida” do escritor Sinval Sá. Padre Gotardo é autor da canção “Obrigado João Paulo II”, feita por ocasião da primeira visita do Santo Padre ao Brasil, gravada por Luiz Gonzaga em compacto RCA, no ano de 1980.
Luiz Gonzaga na Missa do Vaqueiro, em Canindé-CE
Por outro lado, Madalena é berço de grandes sanfoneiros, com destaque para as famílias Araújo (Mário, Nelson, João, Gilberto, Edmundo e Pedrinho), e Carloto (do patriarca Carloto Costa, pai de Raimundo Carloto, Valnir e seus manos), além do conhecido Zé do Norte, instrumentista respeitado e produtor de artistas consagrados, do chamado forró pé de serra.
O pesquisador Reginaldo Silva, que foi secretário particular de Luiz Gonzaga por quase duas décadas, já esteve visitando as instalações do museu, ainda em construção, e orientou Gilvan Sales acerca da catalogação do acervo. O próprio Reginaldo tem uma exposição itinerante sobre a vida e a obra de Luiz Gonzaga, que vem percorrendo o Brasil inteiro, em especial os Estados da Região Nordeste, onde se concentra a maior parte da legião de admiradores do sanfoneiro do Araripe.
Vereador Gilvan Sales, idealizador do MUSEU
Reginaldo Silva, ladeado por Gilvan Sales e sua esposa
Em conversa com Reginaldo Silva, tomamos conhecimento de um fato interessante a respeito dessa visita à Madalena. Padre Gotardo foi buscar Gonzagão e seus músicos em Fortaleza e, durante o trajeto, o Rei do Baião queixou-se de fome:
— Eu sei que padre gosta de jejuar, mas eu estou com uma fome da gôta, padre Gotardo. Vamos parar para comer alguma coisa.
Pararam justamente em Canindé. Procuraram um restaurante próximo à Basílica e Gonzaga perguntou:
— Esta cidade é Canindé?
— É sim, respondeu o padre Gotardo.
— Vixe, rapaz! Eu não posso andar aqui não. Eu e Humberto (Teixeira) fizemos uma música homenageando a romaria (Estrada de Canindé), mas parece que as elites locais não gostaram muito, porque na canção a gente diz que o povo daqui não sabe o que é “automove”.
E caiu na gargalhada, com aquele bom humor que lhe era peculiar.
Prédio que irá abrigar o acervo do museu
MUSEU E CORDELTECA EM MADALENA
O Museu Luiz Gonzaga e o Sertão está sendo construído na fazenda Treme, que fica há poucos quilômetros após o Açude Umari. Esse reservatório também vem se afirmando como um ponto turístico no município de Madalena. A fazenda de Gilvan é herança de seus antepassados: seu bisavô Francisco de Assis de Sousa Filho, sua avó Aldamir Sousa e seu avô Zizi. Parte da propriedade encontra-se coberta pelas águas da represa do açude Umari. Muitas casas da localidade foram tragadas pelo açude. Porém, antes da inundação, Gilvan fez uma pesquisa no local e recolheu muitos objetos como moinhos, pilões, ferros de engomar a brasa, ferros de marcar gado, lampiões a gás, telhas e tijolos bastante antigos. É uma iniciativa privada, feita com recursos próprios.
Paralelo à implantação do museu, que terá uma sala dedicada à história e tradições culturais do município, Madalena receberá também uma biblioteca de cordel a Cordelteca Alzira Vianna de Sousa Lima, iniciativa do escritor Arievaldo Vianna, neto da homenageada. O acervo será constituído de 800 folhetos, de diversos autores, e cerca de 100 livros sobre Literatura de Cordel, cantoria e cultura popular em geral. A implantação da cordelteca conta com total apoio da prefeita Sônia Costa e do vereador Gilvan Sales.
Por Arievaldo Vianna
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